O Lunetas conversou com o educador Reinaldo Nascimento, da 'Pedagogia de Emergência', que atua com crianças em situação de violência e vulnerabilidade
"Queremos dar às crianças a chance de no futuro, não precisarem fazer com os outros o que fizeram com elas", diz educador que trabalhou com crianças no Iraque.
Em novembro de 2016, o terapeuta social e educador brasileiro Reinaldo Nascimento, de 38 anos, foi até o Iraque para integrar uma equipe internacional que implantaria na região a chamada Pedagogia de Emergência, uma espécie de experiência educativa “de guerrilha”. E o que uma zona de guerra, extremamente marcada pela violência, tem a ver com brincadeira? Por incrível que pareça, tudo.
Mantido por uma associação alemã fundamentada na metodologia Waldorf, o objetivo do projeto é minimizar a condição traumática de crianças que vivem em locais de conflito e vulnerabilidade.
O Lunetas noticiou a iniciativa, e muitos leitores nos procuraram. A vontade é de saber mais sobre o tema e sanar muitas dúvidas que passam pela cabeça ao conhecer uma iniciativa como essa. Como fazer parecido no Brasil? Por que ir tão longe para fazer a diferença na vida das crianças? Como dar mais espaço à importância na brincadeira da infância até a vida adulta?
Longe de casa e muito perto do seu sonho de transformar a brincadeira em uma experiência de aprendizado e ressignificação da realidade, Reinaldo já passou por lugares como Líbano, Nepal, Equador e diversas vezes Iraque, de onde voltou dezembro de 2016. De volta ao Brasil, o educador conversou com a gente sobre o que experenciou por lá e como a metodologia do grupo se aplica ao Brasil.
Falamos sobre o valor da brincadeira para curar traumas de guerra e de fraturas sociais, limites da educação e também sobre a dificuldade de os educadores se manterem firmes em seus propósitos diante dos duros revezes que a Educação vem sofrendo.
Reinaldo falou também sobre a Pedagogia de Emergência no Brasil, projeto que vem sendo implantado por aqui para levar educação, brincadeiras e, com sorte, um pouco da infância de volta para crianças em situação de vulnerabilidade social, extrema pobreza e violência.
Certo de que o tema é da maior importância e não se esgota em uma conversa, Reinaldo, mesmo sem querer, define o trabalho da Pedagogia de Emergência em uma fala simples e direta.
“No fundo, o que buscamos é oferecer a essas crianças a oportunidade de no futuro não precisarem fazer com os outros o que foi feito com elas”
Lunetas – Você nasceu e cresceu na comunidade de Monte Azul, mas decidiu usar o que seriam as fragilidades da sua infância a favor de outras crianças. A violência – direta e indireta – deixou algum trauma na sua vida?
Reinaldo Nascimento – Eu cresci vendo e presenciando coisas que acreditava ser normal, pois era o que tínhamos. Havia sim muita violência nas ruas, nas comunidades, nas casas. Mas eu tive também a oportunidade de frequentar Associações Comunitárias, como a Associação Comunitária Monte Azul, que sempre me mostraram novos caminhos. Eu pude, mesmo com toda a violência, brincar muito nas ruas. A amizade era algo muito presente na minha vida. Minha família sempre precisou trabalhar muito, mas nunca me senti largado.
“Na Monte Azul, eu podia cantar, dançar, fazer teatro, aprender a tocar flauta, fazer crochê e tricô. Havia muitos passeios que nos tiravam daquela violência para um local bonito e seguro, nem que fosse por algumas horas”
Durante muito tempo, eu tive que lidar com a situação de ter visto um homem ser assassinado na minha frente. Foi duro, pois quem atirou sabia que eu tinha visto e eu não sabia qual seria a reação dele. Esta pessoa também foi assassinada alguns anos depois e a vida parecia realmente não ser tão valiosa. Muitas dessas pessoas eram amigas e “de repente” elas sumiam. Deixavam de estar conosco. Isto foi duro. Traumático.
Mas eu não me sinto uma pessoa que teve uma infância fragilizada. Consegui aproveitar as oportunidades que tive. Havia ao meu lado pessoas que acreditavam em mim e eu fui fazendo o que era possível na época.
Como você foi parar na Alemanha? E qual foi o caminho até chegar à Pedagogia de Emergência?
RN – Eu tinha 19 anos quando fui para a Alemanha pela primeira vez. Fui trabalhar como voluntário numa Fazenda de Biodinâmica. Sempre tive uma ligação especial com a natureza. Minha avó sempre morou na roça e estar ao lado dela era uma das minhas maiores alegrias. Depois de um ano nesta fazenda, fui convidado para fazer um teste numa comunidade que acompanhava adultos com necessidades. Eu fui aceito e fiz a formação de Terapia Social por três anos.
Voltei ao Brasil para estudar Educação Física e quando terminei, em 2006, fui convidado para acompanhar 17 jovens da Associação Comunitária Monte Azul em um grande evento para jovens em Stuttgart, na Alemanha. Era Copa do Mundo, e a Alemanha estava vivendo um momento muito especial. Durante o evento, Israel e Líbano entraram em guerra e os jovens do Líbano não puderam voltar para suas casas.
O professor Bernd Ruf organizou a volta deste jovens para o Líbano e com o que viu nos campos de refugiados, ou seja, a situação terrível em que as crianças se encontravam, decidiu organizar um time para cuidar delas. Ali se criou a Pedagogia de Emergência.
Eu me integrei ao time em outubro de 2011. Fui convidado para organizar e traduzir o seminário em São Paulo. Em janeiro de 2012, fui para a minha primeira intervenção, em um campo de refugiados no Quênia, onde na época viviam mais de 80 mil pessoas. Hoje, já são mais de 170 mil.
Em 2013, fui para o Líbano trabalhar com refugiados da Síria e depois para as Filipinas por causa do ciclone que devastou muitas cidades. Em 2014, fui para o Curdistão, no Iraque, duas vezes para trabalhar com refugiados da Síria e com os Yazidis. Neste mesmo ano ainda fui trabalhar na Faixa de Gaza.
Em 2015, fui trabalhar no Nepal duas vezes com crianças e jovens que perderam suas casas e família por causa do terremoto e voltei para o Curdistão. Este ano, fui para o Equador em maio e acabei de voltar de uma intervenção, também no Curdistão.
Lunetas – Quando e como surgiu o grupo Pedagogia de Emergência no Brasil? Onde ele atua?
RN – Em 2011, quando organizei o primeiro seminário da Pedagogia de Emergência em São Paulo, eu tinha certeza de que ela faria muito sentido ao Brasil. Cada vez que eu entendia mais sobre o que era o trauma e suas sequelas, tinha mais certeza disso.
Pensando nisso, consegui organizar mais um Seminário em 2012 e neste mesmo ano um grupo de pessoas se juntaram para pensar em como solidificar a Pedagogia de Emergência no Brasil.
Nos primeiros anos, nos focamos em traduzir o livro que o professor Bernd Ruf escreveu. Depois, vimos que no Brasil faria mais sentido trabalharmos na formação de educadores e interessados do que atuarmos diretamente com as crianças, já que somos todos voluntários e não temos condições de nos dedicar nas proporções que as crianças precisam.
Hoje, somos uma Associação, e oito voluntários coordenam todo o trabalho no Brasil. A ideia continua sendo o trabalho de formação para educadores, assistentes sociais e terapeutas que trabalham com crianças traumatizadas.
“No futuro, queremos criar um centro também atender crianças e jovens, e proporcionar um local seguro para superar suas experiências traumáticas”
O que é preciso fazer para se tornar um voluntário do projeto?
RN – Nós estamos sempre nos preparando para também atuar em casos de catástrofes no Brasil e no mundo. Para uma pessoa se tornar voluntária, ela precisa ser educadora, pedagoga, terapeuta, médica, enfermeira, etc. Mas é muito importante que a pessoa tenha participado do seminário que oferecemos para entender nossas propostas e objetivos.
Em uma entrevista recente, você disse que dá até vergonha saber que do lado da sua casa existe a Cracolândia. Pode falar um pouco sobre isso?
RN – Na verdade, esta é uma questão. Muitas pessoas me procuram e querem saber como ir trabalhar em Gaza ou no Iraque. Eu pergunto se as pessoas têm experiências no trabalho com crianças e jovens e muitas me dizem que não. Eu tenho ido para todos estes lugares por ter experiência neste trabalho.
No time internacional da Pedagogia de Emergência, é necessário também falar o idioma do chefe da intervenção, e na maioria das vezes é a língua alemã. A Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil foi criada para apoiar crianças e jovens brasileiras e, se precisarmos ir a outros países, iremos, pois estamos nos preparando para isso.
No Brasil, há milhares de crianças e jovens passando por situações de extrema pobreza, violência. Crianças que são abandonadas e abusadas sexualmente por seus familiares. Crianças que são forçadas ao trabalho para sustentar vícios de adultos.
“Conversei com uma jovem de 17 anos que foi morar na rua porque sua madrasta tinha ciúme dela. Seu pai que deveria protegê-la não disse nada e ela se foi porque não queria a infelicidade do pai”
Depois, essa mesma jovem acabou “adotando” um garoto de 11 anos que também foi morar nas ruas porque apanhava demais dos pais. O que quero dizer é que, aqui no Brasil, há muito o que fazer.
Em uma entrevista recente, você diz que trabalhar a Pedagogia de Emergência nas periferias brasileiras é mais difícil porque o trauma, aqui, já se tornou uma ‘doença crônica’. Como agir então?RN – No Brasil, dez pessoas são assassinadas por dia. A quantidade de mulheres agredidas aqui é um absurdo.
“Dizem que não temos guerras, que não temos terremotos. Será que não mesmo?”
Em qual guerra hoje tantas pessoas são assassinadas? Em quais países hoje tantas mulheres sofrem tantos abusos e agressões? Em quantos países há vagões especiais no metrô para que as mulheres não sejam molestadas sexualmente.
O pior trauma é aquele causado pelas pessoas que deveriam nos proteger. E no Brasil, a maioria dos casos de agressão às mulheres ou abusos contra crianças são feitos dentro de casa por pessoas muito próximas.
No Brasil, precisamos trabalhar com a pedagogia do trauma. As crianças precisam de locais seguros. Seus pais precisam de apoio para lidar com suas frustrações e seus traumas não curados.
“Muitos desses agressores de hoje são vítimas que não receberam ajuda e por isso fazem o que fazem, daí a dificuldade de se trabalhar no Brasil”
Qual a metodologia de aproximação, desenvolvimento e ações que o grupo adota nessas regiões consideradas mais difíceis?
RN – No momento, o que fazemos é um trabalho com os educadores locais. Eles já estão instalados em suas comunidades. Conhecem suas crianças e seus familiares. O que podemos oferecer é apoiar este educador, professor, coordenador, assistente social todos os conhecimentos que temos sobre o que é o trauma e suas fases e como ajudar as crianças pedagogicamente.
Quais critérios definem uma infância em crise?
RN – No Brasil, por exemplo, a situação diária nas periferias é de guerra civil; quer dizer, embora não seja uma guerra declarada, ela está lá. Pode explicar que critérios norteiam a ação do grupo?
Como tem sido a recepção das crianças brasileiras ao projeto?
RN – Muitos educadores têm nos escrito ou mandado vídeos deles utilizando o que aprenderam conosco com os alunos; eles ficam surpresos com o resultado.
“O que propomos é o espaço para que a criança possa se expressar. Expressar seus problemas, suas dores, seus traumas”
Sabemos que muitas destas crianças não podem falar pois a dor ao lembrar do que aconteceu é forte demais. Por isso, com a formas criativas de expressão que usamos, como a música, o desenho, a pintura, a aquarela, os ritmos, as danças circulares, os desenhos de forma, a euritmia, a ginástica Bothmer, contar história, contos, lendas, teatro, circo e pedagogia de vivência trazem para muitas dessas crianças um grande alívio.
O educador não precisa saber fazer tudo, mas aquilo que ele sabe fazer é de grande ajuda e com os seminários que estamos organizando, eles podem se capacitar melhor. Muitas vezes, ele precisa encaminhar a criança, pois a situação dela requer mais atenção, mas o educador se sente seguro quando ele sabe o que fazer e por que fazer.
Falando especificamente sobre direitos humanos, o grupo trabalha para garantir um direito fundamental: o de brincar. Como a criança transforma sua realidade por meio da brincadeira?
RN – Não há nada melhor para uma criança do que o brincar. Brincar é divino! As crianças saudáveis brincam. Brincam com tudo o que encontram e não precisam de muito para fazer as brincadeiras mais divertidas. Para a Pedagogia de Emergência, o brincar é fundamental. Os jogos, as brincadeiras de roda, etc. Muitas das crianças no Quênia me disseram que suas brincadeiras sempre tinham a guerra como tema. Eram crianças que desde muito cedo já estavam sendo transformados em soldados.
Em muitas intervenções, os adultos não entendem a nossa proposta. Eles querem comida, roupas, sapatos e eu entendo isso. Depois de alguns dias, esses pais vem nos agradecer, pois suas crianças estão dormindo, comendo e se comportando melhor. Pararam de fazer xixi na calça. Não estão mais com medo de sair de casa.
“Brincar é coisa séria! Brincadeira traz alegria e alegria cura. Com muitas brincadeiras, fortalecemos a confiança destas crianças no mundo em que vivem. Com muitas brincadeiras elas conseguem sair do abismo em que se encontram”
Em uma sociedade ideal, o termo “Pedagogia de emergência” deveria ser uma redundância, afinal, toda educação é urgência. Mas sabemos que não é vista dessa forma. O que falta?
RN – A Pedagogia de Emergência tenta de forma bem concreta e com a pedagogia Waldorf e as terapias ampliadas pela Antroposofia ajudar as crianças a superar suas experiências traumáticas em oportunidades para as suas vidas.
“A Educação hoje é sim um caso de emergência. Precisamos assumir que a Educação no Brasil é traumática”
Muitos professores estão ficando doentes pois muitos alunos chegam doentes nas salas de aula. Muitas das escolas públicas são comparadas às cadeias. A arquitetura assusta, falta cuidado, falta carinho.
Não podemos aceitar que as escolas sejam palcos de medo e terror.
As crianças deveriam sair da sala de aula entusiasmadas por aprender coisas que realmente fazem sentido na vida. Ela deveria sair com o rosto vermelho daquele calor gostoso que temos quando estamos bem.
Comunicar erro“A verdade é que em muitas escolas as crianças saem pálidas e assustadas, e muitas não querem voltar. Temos que criar escolas onde se aprende com pensar, com o sentir e com o querer”