Como as crianças aprendem? O especialista Paul Tough explica

"Nossas sociedades só crescerão quando toda criança tiver uma chance justa de uma vida produtiva e feliz", diz o especialista em educação da New York Times

Renata Penzani Publicado em 26.09.2017
Foto em preto e branco de uma criança de cabelos enrolados, com a mão no olho direito.

Resumo

Para o autor, não devemos hipermonitorar as crianças, ou direcionar suas brincadeiras de forma controladora. "Crianças precisam de interação amorosa", diz.

As capacidades não cognitivas das crianças são reflexo, principalmente, dos ambientes em que elas estão inseridas, incluindo a casa, a família e a escola. A afirmação está no livro “Como ajudar as crianças a aprenderem” (Intrínseca), de Paul Tough. A obra é uma continuação do fenômeno de vendas americano “Como as crianças aprendem”,  traduzido para 25 idiomas e também editado no Brasil.

Mas o que seriam, afinal, as tais capacidades não cognitivas? Para além do conhecimento em matemática, língua portuguesa e ciências que a escola tradicional se preocupa em transmitir, existe uma gama de qualidades que está no centro da educação integral. Isso alicerça em grande medida o sucesso de um indivíduo nas sociedades pós-modernas em que estamos inseridos. São as chamadas habilidades socioemocionais – e, portanto, não cognitivas.

Habilidades socioemocionais – Qualidades como determinação, resiliência, flexibilidade, autocontrole, entre muitas outras, são as que determinam como as crianças respondem a situações de conflito, divergência, novidade, desconhecido, frustração, rejeição, ruptura, e por aí vai.

Basta ter experimentado um pouco da vida para saber que nossa trajetória de crescimento está, inevitavelmente, minada dessas experiências. Na infância, por exemplo, são essas vivências que comumente disparam os acessos de “birra”, que, segundo a neurociência, são desarranjos emocionais em resposta a uma situação que o cérebro entende como negativa, confusa, contraditória ou traumática.

Olhando com atenção para essas e outras capacidades dessa natureza, podemos ter pistas conclusivas de como as crianças aprendem – pergunta que costuma afligir os pais e desnortear educadores diante de tantas linhas pedagógicas e abordagens de aprendizado.

Conversamos com o autor, que é colaborador da New York Times Magazine e especialista em educação e desenvolvimento infantil. Longe de apontar para uma receita absoluta e infalível para o modo como as crianças absorvem conhecimento de si e do mundo – como o título do livro ironicamente indica – as evidências científicas ajudam a iluminar pontos importantes do complexo desenvolvimento humano.

Leia a entrevista na íntegra:

  • Lunetas – No seu livro “Como ajudar as crianças a aprenderem”, você menciona um “tipo bom de negligência”. Pode explicar o que é e como se dá na prática? 

No livro “Como as crianças aprendem” (Intrínseca, 2017), eu explico que os psicólogos dizem que as formas mais suaves de negligência – desatenção ocasional de cuidadores – podem efetivamente ter um efeito positivo.

É importante enfatizar que uma negligência mais séria – ou seja, em que os pais não respondem aos gritos ou às perguntas de seus filhos por longos períodos, ou têm apenas interações mínimas com eles – podem prejudicar gravemente o desenvolvimento das crianças.

Isso não significa que devemos ficar em cima das crianças o tempo todo, ou direcionar a sua brincadeira de uma maneira controladora.

“As crianças se beneficiam do tempo e do espaço para explorar o mundo ao seu redor, e se envolvem com colegas, brinquedos e livros sem a intromissão dos pais”

Porém, não devemos permitir que esse fato obscureça um elemento mais importante: especialmente na infância, as crianças precisam de muita interação. Uma interação calma, amorosa e cara a cara com seus pais. Além disso, a interação verbal deve ser calorosa e atenciosa. A pesquisa científica sugere que essas interações podem ser o único fator mais importante que contribui para o desenvolvimento cerebral inicial positivo.

  • Lunetas – Outro ponto que chama a atenção no livro é o efeito do “estresse tóxico”. O que seria esse estresse na vida das crianças? Como evitá-lo?

É bom – e até saudável – que as crianças experimentem certo nível de estresse leve e ocasional. O problema vem quando experimentam estresse intenso e crônico. Isto é o que os médicos chamam de “estresse tóxico”, que pode ter sérios efeitos negativos na saúde mental e física das crianças.

Estresse tóxico – As crianças podem experimentar estresse tóxico se vivem em uma zona de guerra ou em um bairro muito violento. Mas o lugar mais comum onde as crianças experimentam estresse tóxico é em casa. Quando as famílias são caóticas ou profundamente disfuncionais – por exemplo, quando os pais estão sob a influência de doenças mentais ou abuso de substâncias, ou quando as crianças experimentam abuso ou negligência no lar – o estresse as crianças experimentam podem prejudicar profundamente seu desenvolvimento saudável.

Existem duas maneiras principais de ajudar crianças que vivenciam estresse tóxico. O primeiro e mais óbvio é pôr fim a tudo o que está causando esse estresse. Proteger as crianças contra o abuso e a negligência, apoiar e estabilizar a família, e ajudar a criar uma vida doméstica mais estável para eles.

O segundo fator-chave que protege as crianças dos efeitos do estresse tóxico é um processo que os psicólogos chamam de “apego seguro”. Quando os bebês formam um vínculo próximo e seguro com os pais nos primeiros meses de vida, isso funciona como um tipo de isolamento contra alguns dos piores efeitos do estresse tóxico.

A melhor maneira de proteger as crianças contra o estresse é melhorar os ambientes em que estão crescendo; a segunda, é ajudar seus pais a criar relações estreitas, estáveis ​​e nutridas com eles.

  • Lunetas – Qual sua opinião sobre linhas pedagógicas que defendem a escuta das crianças? 

Essas práticas – que às vezes também são chamadas de “instrução baseada na pergunta” – não são particularmente complicadas. Os professores que usam essa abordagem calculam menos suas práticas e encorajam muito mais discussões em sala de aula. Eles estimulam a curiosidade e o pensamento profundo de seus alunos, fazendo-os aprender por meio de experiências e projetos criativos. Incentivam os estudantes, mesmo as crianças menores, a se considerarem verdadeiros cientistas e pesquisadores – desenvolvendo teorias, debatendo possibilidades, fazendo perguntas e investigando, ao invés de simplesmente aceitar o que os professores dizem.

“A instrução baseada na pergunta é especialmente valiosa para criar o que chamamos de “habilidades do século 21”

Habilidades socioemocionais são essenciais no mercado de trabalho e no mundo moderno; análise de problemas, comunicação efetiva, trabalho em grupos, pensamento criativo.

Muitos professores se mostram inicialmente céticos em relação a essas abordagens, porque envolvem abrir mão de um certo controle na sala de aula. Mas, depois de um tempo, se eles recebem um bom desenvolvimento e apoio profissional, os professores costumam adotar esses métodos. Isso porque levam a salas de aula mais enérgicas e consequentemente a estudantes mais envolvidos; isso tudo, em última instância, acarreta em mais aprendizado.

  • Lunetas – Ao seu ver, o conceito de professor como “transmissor de conhecimento” e a criança como “receptora” já foi superada? Se o professor não mais “ensina”, qual o seu papel hoje? 

É verdade que no tipo de sala de aula que estou descrevendo, os professores passam menos tempo simplesmente transmitindo conhecimento. Mas eles ainda têm um enorme papel a desempenhar. E, de fato, esse tipo de abordagem exige mais experiência e trabalho mais criativo por parte dos professores. Sob esta nova abordagem, o “ensino” evolui a partir da transmissão de fatos para um processo mais complexo de facilitar a aprendizagem dos alunos.

Para fazer isso, os professores precisam de uma compreensão clara do repertório. Ou seja, o que seus alunos já conhecem, também daquilo com que ainda estão lutando; eles precisam ajudar os estudantes a aprender como trabalhar de forma colaborativa e criativa; eles precisam fornecer projetos e atribuições que inspirem trabalho árduo e compreensão profunda; e precisam oferecer comentários e críticas que incentivem as crianças a aprender com seus erros, a rever e melhorar seu trabalho.

  • Lunetas – A ciência é unânime ao afirmar que os primeiros anos de vida são os mais importantes. No entanto, essa importância não se reflete no investimento em educação infantil. Por que ainda existe tanta negligência nesse sentido? 

Os Estados Unidos têm o mesmo problema. Na ciência, estamos aprendendo cada vez mais sobre a importância dos primeiros anos de vida, mas em nossa política pública, estamos fazendo muito pouco para refletir esse conhecimento. Não investimos o suficiente em programas de primeira infância, especialmente para crianças de menor renda. E os investimentos que fazemos tendem a ser dirigidos a crianças de quatro anos, em vez de crianças e bebês – apesar de sabermos agora que os primeiros anos são os mais importantes, em termos de desenvolvimento. Muitas vezes me pergunto por que nossas políticas não seguem nossa ciência.

“Nossas sociedades só crescerão e prosperarão quando toda criança tiver uma chance justa de uma vida produtiva e feliz”

Em parte, acho que é porque os bons programas de educação infantil são caros, e as pessoas que mais os necessitam – e não apenas as crianças, mas também os pais desfavorecidos – têm menor poder político em nossa sociedade. Mas também há outro motivo.

A ciência do desenvolvimento inicial pode muitas vezes contradizer nossa intuição sobre o que acontece na infância. Cognitivamente falando, as crianças não recordam muita coisa de sua infância. Esse fato simples pode nos levar a acreditar que tudo o que nos acontece na primeira infância não pode ter um impacto duradouro. Na verdade, agora sabemos que é exatamente o oposto que é verdadeiro: experiências iniciais – especialmente muito negativas –, podem ter um efeito profundo em nosso desenvolvimento.

O que seria necessário para mudar a conversa política? Primeiro, acho que precisamos promover uma compreensão mais ampla e profunda da ciência da primeira infância. Essa é uma das razões pelas quais eu escrevi esses livros: para tentar tornar a ciência da adversidade precoce e do estresse tóxico acessível e claro para uma ampla quantidade de pessoas. O conhecimento está se espalhando. Mas ainda há muito trabalho a ser feito.

“Precisamos expandir nosso pensamento político para que possamos ampliar a nossa preocupação com o bem-estar de nossos próprios filhos para incluir também o bem-estar dos filhos de nossos vizinhos”

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