Parto seguro: ‘uma mãe não deveria ter que lutar para ter isso’

Conversamos com a parteira neozelandesa Anne Sharplin sobre modelo de assistência ao parto e o que ainda falta alcançar quando o assunto é a forma de nascer

Camilla Hoshino Publicado em 18.07.2017
Uma senhora toca a barriga de uma mulher grávida que está deitada recebendo esse cuidado para o parto.

Resumo

Em visita ao Brasil, a parteira neozelandesa Anne Sharplin, reconhecida internacionalmente por assistir partos domiciliares, conversou com o Lunetas sobre sua vivência e aprendizados como parteira. Em 30 anos de atuação, ela já realizou mais de 2.500 partos.

A palavra “midwife” significa “guardiã do normal”, explica a parteira neozelandesa Anne Sharplin. Em visita ao Brasil, Anne, que é reconhecida internacionalmente por assistir partos domiciliares, conversou com o Lunetas sobre sua vivência e aprendizados como parteira.

Anne acumula mais de 30 anos de trabalho como parteira, e contabiliza em seu currículo mais de 2500 partos realizados. Como ela diz: é uma parteira-avó: “Já estou assistindo aos partos de três gerações de algumas famílias: mães, filhas e netas”.

“Conhecimento é poder, e acho que temos que falar sobre isso violência obstétrica, no boca a boca mesmo”, defende Anne

Atualmente, a Nova Zelândia é uma referência mundial em atendimento humanizado ao parto, e a atividade parteira é regulamentada pela lei desde os anos 90, quando mulheres e parteiras do país, entre elas Anne, que é defensora implacável do parto normal e também uma grande crítica da cultura da cesárea, protagonizaram uma luta política para garantir essa conquista.

Confira a entrevista com Anne Sharplin

  • Lunetas: O que podemos aprender com o exemplo da Nova Zelândia onde as mulheres conquistaram o direito ao parto domiciliar assistido por uma parteira?
  • Anne Sharplin: A lição mais importante é que as mulheres realmente têm o poder, mas elas não sabem que têm o poder. Quando tivemos que lutar nos anos 90, as mulheres tiveram que se levantar e dizer: “não vamos dar à luz no hospital com esse médico. Nós temos esta parteira e vamos ficar em casa”. Uma parteira não pode fazer a mulher ir ao hospital, isso seria violência. Então as mulheres entenderam que eles tinham muito poder. E nós dissemos à elas ‘vocês têm o poder. Por favor, exerçam seu poder, e nós as atenderemos em casa’. Até então, se a mulher estivesse em casa e em trabalho de parto, eu diria para ela que ela deveria ir ao hospital, e ela me diria que não iria. Eu, então, deveria telefonar para o departamento de saúde do governo e explicar a situação pedindo aconselhamento. Então eles falariam que era melhor eu, enquanto parteira, permanecer com a gestante e assistir ao parto. Nesse momento minha atuação se tornava legal, caso contrário, eu poderia ser indiciada criminalmente. Essa situação era difícil para nós, parteiras. Mas isso foi há 30 anos, atualmente a situação mudou e está maravilhosa.
  • Lunetas: Aqui no Brasil fazer um parto domiciliar é muito caro, quase inacessível para boa parte da população. Na nova Zelândia o governo paga as parteiras para realizarem partos domiciliares?
  • Anne Sharplin: Sim. As mães não precisam pagar nada. Mas saiba que há algumas mães, em geral de famílias ricas, que pensam que estarão mais seguras com um obstetra. Então elas pagam o parto em instituições privadas. Sabe o que elas obtêm? Uma cesariana. Mesmo na Nova Zelândia, há essa falta de entendimento sobre o parto, e também um domínio patriarcal sobre o parto.
  • Lunetas: Há muito medo em torno da ideia de fazer um parto domiciliar. Como combater esse medo?
  • Anne Sharplin: O que acontece é que a sobreposição do instinto é falsa. Há muita informação falsa. Nos últimos 50 anos, as mulheres deixaram de ouvir outras mulheres. O poder e o pagamento passou das parteiras para os médicos, obstetras e ginecologistas. E médicos e obstetras estão falando aos homens e mulheres, principalmente aos homens, que há risco no parto, que a gestante e o bebê podem morrer. E isso são informações falsas. E é uma verdade falsa. Não é o que as evidências científicas demonstram. Na Nova Zelândia, temos um novo estudo feito com 700 partos que mostram que a mulher dar à luz em casa ou em casas de parto é tão ou mais seguro do que dar à luz em um grande hospital. É verdade, é um dado científico. Mas o senso comum é o medo, a cultura é a cultura do medo. E isso está errado. Se a mulher chegar a uma parteira como eu, ela terá 85% a 90% de chance de um nascimento natural e humanizado. Se ela vai ao hospital, ela terá 85% a 90% de chance de realização de uma cesariana. As mulheres precisam começar a se informar e fortalecer o conhecimento de que para 85% a 90% das mulheres o parto normal é a opção mais segura. 10% a 15% das mulheres precisarão de uma cesárea  e ainda bem que a cesária existe para esses casos. Mas não é uma operação necessária para todos.
  • Lunetas: É muito comum quando as mães falam sobre os partos de seus filhos, trazerem histórias de violência obstétrica. Depois que os bebês nascem, muitas desistem de acessar a lei, denunciar a violência sofrida. Como podemos combater a violência obstétrica?
  • Anne Sharplin: Após o parto as mulheres não querem tomar providências judiciais porque tomar uma ação política requer muita energia, e não é a ocitocina, é a adrenalina. Não é fazer amor, é fazer guerra. É diferente. Na Nova Zelândia não temos mais por partos domiciliares, temos sorte. Mas isso não significa que não tenhamos que cuidar dessa conquista. Lá, quando eu comecei a trabalhar, há mais de 30 anos, as taxas de cesarianas giravam em torno de 15%, um índice muito bom na verdade. Agora estamos em 30% dos partos. Os partos domiciliares são em torno de  7% a 10%. Isso porque os partos domiciliares ainda são culturalmente menos apoiados.
  • Lunetas: Muitas vezes quando abordamos a temática da cultura da cesárea recebemos de nossas leitoras comentários dizendo: ‘meu corpo, meu direito, minha decisão. Farei uma cesárea e vocês não tem nada com isso…’
  • Anne Sharplin: Essa é uma opinião fundamentada na emoção, não é uma decisão baseada em evidências científicas. Há cada vez mais evidências científicas sobre o valor para a raça humana do nascimento pela vagina. Houve um grande estudo na Europa em que os médicos, após o nascimento dos bebês via cesárea, cobriam o rosto e a boca do bebê com secreção vaginal. Isso é louco. É como se eles reconhecessem que a cesariana tem consequências negativas para a saúde do bebê e para toda a sociedade.
  • Lunetas: É comum agendar a cesárea antes do trabalho de parto começar…
  • Anne Sharplin: Uma coisa que eu digo para todas as mulheres: espere pelo trabalho de parto. Os benefícios disso são os hormônios. E busque apoio com outras mulheres. Eu gostaria até de dizer.. evite obstetras. Eles não sabem fazer partos normais. Não estão acostumados, e têm medo. Mas não é preciso fazer muito, é a mulher que vai fazer o trabalho pesado. Nós temos que estar lá para ajudar, se necessário. Então, espere pelo trabalho de parto, você vai se surpreender.
  • Lunetas: Qual é o papel da parteira no trabalho de parto?
  • Anne Sharplin: O que eu digo às minhas alunas, que ensino individualmente, é que devemos ficar em um lugar de amor e confiança, não de medo. Quando estamos amorosas e confiantes, e a mulher está amorosa e confiante, então o resultado será o esperado, a ocitocina fluirá. Ocitocina é o hormônio do amor, o corpo produz durante relações sexuais, na gravidez e quando damos à luz; Então, o amor e a confiança são ocitocina. Medo é adrenalina, hormônio que fecha o corpo.
  • Lunetas: No livro “Pode a Humanidade sobreviver à medicina”, Michel Odent, o autor, fala sobre como o parto é um processo fisiológico, e como racionalizar esse processo pode atrapalhar…
  • Anne Sharplin: Nós somos mamíferos. Animais. Não há diferença. Sempre digo às mulheres que acompanham para assistirem a vídeos de elefantes e outros animais dando a luz.  Nós somos outro animal. É simples, não é complicado. O parto não é fácil, mas é simples. Temos que estar em nossos corpos. Temos de ter a conexão corpo e mente e coração.
  • Lunetas: Como as mulheres podem se preparar para construir essa conexão entre mente, coração e corpo?
  • Anne Sharplin: Basicamente, nós temos que comer bem, uma dieta saudável e termos um corpo forte e flexível. Porque o trabalho de parto não é algo idealizado, é um trabalho duro, dói e temos que estar preparadas. Às vezes, pode demorar até 20 horas. A dor vem e vai. É a ocitocina preparando o corpo para o nascimento. E as mulheres precisam estar com seus corpos fortes para poderem suportar a dor. Leveza na mente também é importante. Mente leve, relaxamento e confiança. Confiar no processo é fundamental. Sensação de segurança também. As mulheres precisam ter segurança e privacidade. Uma mãe não deveria ter que lutar para ter isso. A luta deve acontecer antes do trabalho de parto. E quando a mãe estiver nesse momento, deve ter apoio. As mulheres precisam de apoio. Então, ela está segura. Todos ao redor estão quietos, dando o apoio, e é ela que está fazendo o trabalho.
  • Lunetas: Privacidade e segurança: talvez seja por isso que as mulheres se sentem bem nos partos domiciliares?
  • Anne Sharplin: Sim. No hospital as luzes são fortes, e há aquele entra e sai da sala. Em casa elas se sentem seguras, tem privacidade e não estão sendo observadas. Sim, a parteira está lá, mas está sentada em silêncio. Então esse é o trabalho da parteira, nós não fazemos nada.
  • Lunetas: Vocês cuidam da energia do ambiente?
  • Anne Sharplin: Sim. Mas as parteiras também precisam ser treinadas e ter as habilidades técnicas necessárias para contornar alguma situação que eventualmente aconteça. É muito incomum, mas às vezes o bebê precisa de ajuda para respirar, e nós temos que ser treinadas para lidar com uma situação como essa. Ou então para conter um sangramento na mãe. Estou falando de uma mistura da arte de ser uma parteira com a ciência.
  • Lunetas: Você disse que é considerada ‘radical’ na Nova Zelândia porque, entre outras coisas, não usa o ultrassom nas gestantes que acompanha. Por que?
  • Anne Sharplin: O ultrassom é uma tecnologia desenvolvida na II Guerra Mundial, e a ciência nos diz que essa alta frequência pode mudar as células com sua vibração. Mas também não uso porque não é necessário. É mais uma tecnologia que tira as mulheres do seu corpo. Eu falo para as gestantes que não precisamos de uma foto, e que elas devem me dizer o que estão sentindo. O bebê está chutando e se mexendo diariamente? Elas estão sentindo ele crescer na barriga? As mulheres têm que confiar em seus corpos. Há muitos interesses de venda e marketing por trás do ultrassom.
  • Lunetas: Não apenas do ultrassom, há muitas propagandas, por exemplo, de UTIs neonatais em hospitais, saúde da gestante e do bebê me parece um grande mercado
  • Anne Sharplin: Mais uma vez, são falsas verdades sendo disseminadas. Vou dar um exemplo: há estudos científicos e dados sobre os partos na água, e eu também tenho meu próprio estudo empírico sobre isso, dos partos que realizei. Os médicos sabem muito pouco sobre partos na água, e dizem que vai entrar água nos pulmões do bebê, o que pode causar infecções. Mas, os bebês que têm água nos pulmões são bebês que nascem via cesariana. Quando um bebê passa pelo canal vaginal, os pulmões estão espremidos, nós vemos que sai água pelo nariz e pela boca do bebê. E então o bebê nasce e vemos uma linda primeira respiração, que expande os brônquios dos pulmões. Mas quando o bebê nasce via cesariana, ele não está pronto para respirar, ele não tem ocitocina e nem os outros hormônios que preparam o corpo dele para o mundo fora da barriga. Eles são subitamente arrancados de dentro da barriga da mãe. E aí, eles ficam com água em seus pulmões porque não sabem como expulsar essa água, eles não tiveram a compressão ao passar pelo canal vaginal. Ninguém vai contar isso para as mães. Então, aqueles bebês que nasceram via cesariana podem acabar precisando de ajuda para respirar, de máquinas auxiliares, e aí os hospitais podem oferecer os equipamentos de suas UTIs neonatais.
  • Lunetas: Temos também uma indústria de fórmulas muito forte aqui no Brasil
  • Anne Sharplin:  Posso dizer com autoridade que o parto normal domiciliar está ligado à amamentação. Cerca de 95% das minhas mulheres amamentam seus bebês.
  • Lunetas: Qual é o papel do pai durante o trabalho de parto?
  • Anne Sharplin:  Os homens precisam conversar com suas avós e não ter tanto medo. Eles precisam ler algumas pesquisas e precisam confiar no processo, mas precisam de apoio também. Durante o trabalho de parto, o homem pode apoiar a mulher. O parto normal também é importante para a saúde emocional da família, e depois da sociedade. É sobre relacionamentos. Durante o trabalho de parto, o homem está ocupado, participante, no final do processo ele se sente vitorioso junto de sua mulher.  Quando a mãe e o pai estão em casa, eles fazem o nascimento. Não é sobre nós, é sobre a família.
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