Em parceria com a Mama Ekos, parteiras tradicionais indígenas e ribeirinhas constroem casa de parto para assistência à maternidade e valorização da cultura
Resgatar o conhecimento de parteiras tradicionais, levando assistência à maternidade e incentivo ao parto humanizado em regiões de vulnerabilidde social. Conheça o trabalho da ONG Mama Ekos, que está construindo coletivamente uma casa de parto na região amazônica.
Elas guardam os segredos de quando no mundo não havia doutores de jaleco nem hora marcada para chegar. Aprenderam com suas mães, tias e avós, que aprendiam com outras mães, tias e avós. São os saberes da floresta ensinados de geração em geração que as fazem conhecer mais o poder das ervas e dos ventres que o português do homem branco.
Acocoradas entre as pernas das mulheres elas celebram cada existência: partejar é uma arte milenar.
Quando a doula e fisioterapeuta paulista Patrícia Mandí Delpino Martins chegou em 2016 pela primeira vez ao município de Maués, interior do estado do Amazonas, ela estava em busca dos enredos tradicionais umbilicalmente ligados à maternidade, mas não podia imaginar a nova vida que as parteiras indígenas da etnia satere mawe e ribeirinhas trariam a sua própria história. Primeiro, veio a mudança definitiva para a região em 2017, depois a mobilização de uma rede de apoio a comunidades locais e, em abril de 2018, o filho Luan Guilherme, que foi recebido em meio à natureza pelas mãos de dona Amazonildes, primeira parteira que Patrícia conheceu em Maués.
O único tempo que impera é o de nascer naturalmente.
Ou talvez o filho tenha chegado primeiro e orientado seus passos até ali. Difícil saber. A verdade é que no calendário dos saberes ancestrais a cronologia dos fatos se confundem, assim como para as mulheres que tem o dom de “pegar criança” o único tempo que impera é o de nascer naturalmente. E, apesar de ser atividade liderada sobretudo por mulheres, seu Edium, artesão e parteiro da etnia satere mawe, é prova de que homens também se envolvem nesse ofício tão tradicional.
Antes de se estabelecer em Maués, a fisioterapeuta Patrícia Mandí atuava junto ao Instituto Favela da Paz com a prática de prevenção a doenças durante a gravidez, na periferia de São Paulo. “Havia trabalhado oito anos com materiais cirúrgicos na área da saúde e então percebi o quanto este mercado movimenta dinheiro a custa das pessoas, sem precisão”, afirma Patrícia.
Após estudar empreendedorismo social e se conectar com o propósito de trabalhar com assistência à saúde e à maternidade no Brasil, ela reuniu a força de alguns profissionais para a criação da ONG Mama Ekos, com a proposta de aliar antigos saberes e medicinas naturais aos conhecimentos atuais, levando informação e incentivo ao parto humanizado, diminuindo a violência obstétrica em regiões de vulnerabilidade social.
Em Maués, as atividades promovidas pela Mama Ekos giram em torno de encontros de gestantes com oficinas de trocas sobre a maternidade, vivências com integrações e intercâmbios culturais. Além disso, a organização investe no fomento ao empreendedorismo relacionado a produtos de maternidade com medicinas naturais, artesanato e gastronomia local.
Banha de arraia para untar a barriga, o preparo do chá de gengibre, tala de inajá (fibra de palmeira) para cortar o umbigo. Esse procedimento é visto com estranheza pela rotina hospitalar, mas integra a medicina ancestral das parteiras da região amazônica. Um conhecimento que foi desaparecendo conforme os hospitais tomavam as cidades e chegavam a zona rural, movimento que incentivou a migração dos partos domiciliares para os centros cirúrgicos.
“Os saberes ancestrais foram dominados pela classe médica e o discurso das parteiras, que não foram às universidades, foi sendo bloqueado ao longo do tempo”, explica Patrícia Mandí.
São elas, no entanto, que seguem povoando as regiões de difícil acesso. Seja pela ciência da necessidade ou por missão delegada pelas divindades – como muitos antigos acreditam – o fato é que, quando chega a hora, elas colocam gente no mundo independente do avanço tecnológico. E grande parte desses saberes, transmitidos principalmente por meio da oralidade, ficam ameaçados diante da desvalorização cultural.
Foi justamente o mistério dessas mulheres e homens que atraiu a fisioterapeuta para a região amazônica: “De onde vem a fonte dos estudos da obstetrícia? Em que se baseiam as práticas aplicadas na humanização do parto?” A quilômetros de distância, Patricia já intuía a resposta, mas resolveu conferir de perto. Ali, resgate e reencontro se cruzaram e, durante sua gestação, vivenciou na prática a “puxação”, uma das técnicas tradicionais centrais do trabalho relacionado ao parto e que, de acordo com Patrícia, é uma das responsáveis pela diminuição da taxa de cesárias.
“Puxar a barriga é endireitar o feto, encaixando ele na posição de vir ao mundo, diminuindo o risco e também o desconforto da mulher. Faz parte do pré-natal das parteiras”, descreve.
O resgate da ancestralidade tem sido pilar no desenvolvimento de ações para a assistência humanizada pela ONG – Organização não governamental Mama Ekos. Para Patrícia Mandí, é difícil explicar com palavras a dimensão desse trabalho. “Tem que vivenciar”, sugere.
Mas, segundo ela, entre as lições aprendidas no convívio com as comunidades locais indígenas e ribeirinhas está a cooperação em detrimento da competição, valorizando uns aos outros. “Todos os saberes são importantes e a troca é fundamental. Portanto, é preciso perceber que existe muitos recursos que são valiosos e que o dinheiro é apenas um deles.”
Reconhecendo o valor dos saberes, novos projetos ganham corpo, entre eles uma casa de parteiras para acolher gestantes e famílias na região amazônica, em Maués. Ainda aberta a contribuições financeiras e apoio, a Casa Eko Maués é um sonho em gestação. Aos poucos, se prepara para ser um local de referência no resgate de saberes tradicionais ligados à arte de partejar. O espaço é fruto do trabalho conjunto entre a Mama Ekos, lideranças indígenas, parteiras tradicionais, artesãos, profissionais da saúde, mães, pais e cuidadores.
Após uma campanha de financiamento coletivo começaram os “puxirum”, como os satere mawes denominam os mutirões em que todos se reúnem para realizar feitos importantes para a comunidade “A casa está sendo construída no meio da natureza, em uma região de fácil acesso. Além de ser a alguns minutos do hospital, para garantir a segurança da atualidade”, diz Patrícia.
O projeto estrutural reúne técnicas de permacultura, agroecologia e outros conhecimentos indígenas locais. O desenho em mandala destaca a “maloca do amor”, local central para encontros e vivências da maternidade, rodeado de espaços comuns para gestantes, parteiras, enfermeiras e famílias. Além disso, como explica a doula e fisioterapeuta Patrícia Mandí, a casa terá horta medicinal comunitária e locais destinados à arte e à produção artesanal, uma oportunidade de estímulo à criatividade e ao empreendedorismo, garantindo reforço para a sustentabilidade econômica das comunidades.
O incentivo financeiro que possibilita a atuação da Mama Ekos vem do financiamento coletivo, de um investimento da própria fundadora e de colaborações pontuais e prêmios, como o recebido pela Brazil-Foundation. A comunicação também é ponto-chave do trabalho e a vontade é de que a mensagem das parteiras tradicionais possa ecoar longe com o vento das florestas. Como o primeiro lar habitado por cada ser, a Casa Eko Maués será ventre de resgate, trocas e vida. Um local em que as origens não sejam, assim, esquecidas pelas fronteiras linguísticas, em que “temosyat”, no idioma dos satere mawes, tenha o mesmo valor da palavra “parto”.
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Perfil da região
Com pouco mais de 62 mil habitantes, de acordo com o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Esatatística – Maués está localizada no estado do Amazonas, em região de fronteira com o Pará. A população se divide entre áreas urbanas e rurais, sendo estas compostas por aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas que enfrentam barreiras como distância, deslocamento de barcos e custo de combustível para ter acesso aos serviços de saúde.
De acordo com a doula e fisioterapeuta Patricia Mandí, a desatualização do sistema de saúde somada à padronização dos procedimentos médicos impacta diretamente a qualidade do atendimento às culturas locais. “Para quem pari filhos de cócoras em troncos de árvores, é difícil se imaginar em macas de hospitais. Há mulheres que não se sentem à vontade nesses espaços e têm dificuldade de falar em virtude do idioma”, relata Patrícia. Segundo ela, é recorrente a violência obstétrica no parto, com cesáreas desnecessárias e falta de apoio pós-parto. “Para as mulheres ribeirinhas é ainda pior, pois as indígenas possuem um sistema próprio.”