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Para todes: os impactos da linguagem neutra na infância

Três crianças brancas sentadas na grama se olhando e conversando. Ilustrações de balões coloridos indicam um diálogo entre eles.

“Se usamos a linguagem para a existência, é preciso considerar todas as pessoas que existem”, afirma Letícia Góes, professora de Língua Portuguesa e mestre em Letras. Para alguns especialistas, a linguagem neutra, não-binária ou inclusiva é uma via, na fala e na escrita, para se referir às quase três milhões de pessoas trans, não-binárias e agêneros no país. Para outros, a norma culta da língua deve prevalecer. Mas será que esse movimento de usar termos como “todes” e “delx”, cada vez mais comuns, tem algum impacto na construção da identidade das crianças e pode contribuir para relações mais respeitosas entre elas?

Para Thiago Ranniery, pedagogo e vice-diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a linguagem neutra pode contribuir para entender que o masculino não é um gênero universal e que é possível indicar outras formas de identificação. “É importante que crianças e jovens trans não-bináries reconheçam suas identidades de gênero para além do estigma da violência e isso acontece quando elas se sentem acolhidas também pela língua.

O que é a linguagem neutra?

Sistema linguístico que propõe a não marcação do gênero feminino e masculino nas palavras que se referem às pessoas. A ideia é ter uma terceira opção para se referir a pessoas não-binárias.

 

Contudo, além de marcar o gênero em artigos e pronomes, há vários sistemas para se referir a pessoas não-binárias. Pensar em formas de incluir as pessoas durante a fala e a escrita pode seguir a simples substituição por sinônimos ou palavras que representem coletividade, como “estudantes”, “juventude”, “diretoria”, “organização”.

Como usá-la? 

Um dos sistemas é o “ile”, que utiliza essas letras como marcador de gênero. Exemplo: “o gato é dile” ou “Ile é minhe amigue”.

Outro forma é substituir as palavras usando o próprio vocabulário da língua. Exemplo: trocar “alunos” por “estudantes”; “professor” ou “professora”, por “docente”.

Problemas da linguagem neutra podem ser mais sociais do que linguísticos

Entre os profissionais da língua portuguesa que discordam do uso da linguagem neutra, Cíntia Chagas, professora especialista em comunicação, que se diz “linguisticamente conservadora”, afirmou que o dialeto não-binário “não possui embasamento linguístico, científico e é um desrespeito à língua portuguesa”, no programa “Opinião no ar”, da Rede TV, em 2021. Para ela, trata-se de uma “pseudo-inclusão”, já que pessoas com deficiência física e cognitiva ficariam de fora. “Além das limitações linguísticas no dia a dia, essas pessoas teriam que se adaptar a um novo modo de falar, que beneficiaria apenas uma ínfima minoria, que devemos respeitar, mas que não deve ter a vontade prevalecida às demais.”

Para Silvia Cavalcante, doutora em linguística e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a linguagem neutra levanta alguns questionamentos do ponto de vista estrutural, como a marcação das vogais temáticas com “@” e “x” em leitores automáticos, que são usados como ferramentas auxiliares por quem tem baixa visão, por exemplo. “O ser humano ao ler ‘car@s alun@s’ substitui mentalmente esse ‘@’ por uma vogal, mas as máquinas não”. Já o uso do “x” implica na criação de um padrão silábico que não é próprio do português, porque altera o núcleo da sílaba, que necessariamente é uma vogal. Outra questão é com a terminação com a letra “e”, que poderia causar confusão na interpretação de leitores ou ouvintes.

Como fica a acessibilidade?

As terminações de palavras com “x” ou “@” poderiam dificultar a compreensão da leitura para pessoas cegas, surdas ou com dislexia, de acordo com alguns especialistas. Recomenda-se o uso do “e” no lugar do “x” e “@” para abordar a linguagem de maneira adequada, com o suporte para uma melhor leitura que pessoas com deficiência necessitam.

Mesmo diante de ressalvas sobre a construção dessa linguagem, a pesquisadora afirma que o problema é mais social do que linguístico, levando em conta que o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBT+. “Quando surge uma forma linguística exclusiva para pessoas não-binárias, a reação é que estaria contra as regras gramaticais ou poluindo o português. Mas essas justificativas são dadas por conta da homofobia. Não há problema linguístico ter um morfema novo como forma de marcar a identidade de gênero”, diz.

Luiz Gustavo Simi, psicólogo e pesquisador da Associação Brasileira de Dislexia, explica que a ausência de gênero nas palavras pode ser uma barreira na aprendizagem de estudantes com dislexia, porque o transtorno afeta a habilidade na decodificação e na compreensão de palavras escritas. “A linguagem neutra pode aumentar a confusão desses alunos e dificultar a compreensão de textos escritos, já que ela pode ser menos intuitiva”. Para garantir um aprendizado eficaz, ele recomenda que educadores considerem essa questão e ofereçam suporte adequado a esses estudantes ao abordarem a linguagem neutra.

Já Isadora Nascimento, advogada e criadora de conteúdo sobre inclusão, considera que a linguagem neutra não atrapalha na acessibilidade, desde que utilizada da forma correta. Segundo ela, que tem baixa visão e usa o recurso do leitor de tela, quando uma palavra termina em “x” ou “@”, a fluidez da leitura é um pouco perdida. “Nesse caso, preciso parar para entender o que significa ou tirar alguma dúvida. Substituir esses termos para a terminação com ‘es’ resolve, porque o leitor funciona normal”, explica. A favor da discussão sobre o assunto, ela comenta que, “se existem corpos, vivências e formas diversas de estar no mundo, precisamos respeitar e saber se comunicar sem engessar um único caminho”.

Relações sociais se constroem também pela linguagem

Para Ranniery, é viável apresentar às crianças a linguagem neutra de uma maneira natural e livre de preconceitos, o que beneficiaria as relações sociais entre elas e a diversidade das pessoas. Em vez da linguagem estacionar na ideia de “coisas de menino e coisas de menina”, o principal seria “aprender a conviver com diferentes identificações de gênero que habitam o nosso mundo e entender que essas experiências não são sinônimos de erro ou desvio”.

Na transição da infância para a adolescência, quando começou a se entender como uma pessoa não-binária, que não se identifica com o gênero masculino nem feminino, Igor Sudano, 30, sentia um estranho alívio quando o questionavam se era menino ou menina. “Tentava me encaixar nos padrões e não me reconhecia em nenhum. Então, eu me sentia à vontade quando recebia esse tipo de pergunta porque achava bom as pessoas não me definirem só como menina.”

Mas foi só na vida adulta que Sudano descobriu a linguagem neutra e percebeu como “o neutro teria feito total diferença na minha infância, porque eu teria me reconhecido e ficaria em paz comigo desde cedo. Quem se identifica com essa linguagem se sente à vontade e bem ‘respeitade’, isso só incomoda quem não tem empatia”, diz. Por isso, ele considera importante que as crianças tenham outra opção para se referir às pessoas. “Quanto mais cedo, mais natural será o entendimento da diversidade.”

É “libertadora” a possibilidade de uma linguagem representar identidades até então invisibilizadas, acredita Cristina Judar, jornalista e escritora, que destaca os pronomes “elu, ela e ele” em suas redes sociais por sua identidade não-binária. Pela intimidade com a língua portuguesa na profissão, adotou os termos neutros em seus escritos, que incluem livros premiados, HQs e um título infantil. “Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a linguagem neutra/não-binária não é excludente”, diz. “Ela abre espaço para que existências e identidades fora do binarismo homem-mulher sejam igualmente contempladas e respeitadas. Não há motivos para entender a inclusão como algo negativo.”

Tentar deixar as crianças alheias às transformações sociais da língua que elas falam seria também uma forma de negar o direito de escolha.

Judar defende que apresentar a linguagem neutra às crianças é considerar que a língua, inevitavelmente, está sempre em transformação. “A linguagem é praticada e ouvida nas ruas, nas letras das canções, na publicidade e em todos os cantos. Fingir que não está acontecendo não é, definitivamente, a melhor escolha”, argumenta. Outro argumento é que o acesso às diversas possibilidades de expressão para reconhecer o outro e a si mesmo por meio de jogos, livros, cantigas e histórias, por exemplo, beneficiaria o processo de adaptação “àquilo que já é uma realidade e que, cedo ou tarde, a criança ou adolescente irá se deparar, tornando tudo menos traumático”.

As regras da língua são feitas por pessoas que se comunicam

A professora Letícia Góes considera que a língua está em constante mudança e movimento, por isso, a inclusão de vocábulos acontece apesar da norma padrão. “É a sociedade que vai determinar se a linguagem vai se popularizar ou não, independente das normas, e isso leva tempo.” O exemplo que ela traz é o que aconteceu com o termo “vossa mercê”, que foi reduzido até chegar à palavra “você” e atualmente ganhou abreviações não oficiais como “vc” e “cê”.

Outro ponto importante para Góes é lembrar que a linguagem neutra visa incluir as pessoas não-binárias no sistema de comunicação da língua, o que não significa que as palavras no masculino e no feminino serão abolidas. “A proposta é adicionar um novo tipo de palavra que vai contemplar as pessoas que não se sentem pertencentes aos gêneros masculino e feminino.”

As escolas vão ensinar linguagem neutra aos alunos?

De acordo com a BNCC, as instituições devem ensinar a norma padrão da língua portuguesa, que não inclui oficialmente o sistema da linguagem neutra. Mas o professor pode ensinar que o uso de diferentes tipos de linguagem, como gírias, dialetos e a própria linguagem neutra, depende do contexto de comunicação.*

Para Gustavo Paraíso, pesquisador do Núcleo Estudos Críticos do Discurso e Teorias Queer e Decoloniais, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), a importância da linguagem neutra não está somente na questão gramatical, mas também nas perspectivas políticas e sociais. “A linguagem neutra existe para validar existências humanas que são rejeitadas no idioma falado e escrito. É um modo sensível de ajudar pessoas a não sofrerem.”

Negar a linguagem não-binária é negar a variação e a mudança linguística. É também negar a existência da população trans que, no Brasil, morre por ser quem é.

Paraíso diz que apresentar os termos neutros para crianças e adolescentes não ameaça a língua portuguesa. Isso porque, em nenhum momento, a proposta é impor o seu uso. “Trata-se de dar a oportunidade de aprender e decidir se usarão ou não uma linguagem inclusiva.”

Tentativas de proibir a linguagem neutra

Em Sorocaba (SP), uma lei municipal que proibia o uso da linguagem neutra em instituições de ensino e em bancas de concursos públicos foi invalidada, no início de junho. A Justiça usou o argumento de “censura pedagógica”, pois a lei era incompatível com a Constituição e passava por cima da competência do Governo Federal em estipular as diretrizes e bases da educação nacional. Já em Rondônia, uma lei estadual proibia “expressamente” a linguagem neutra em escolas. O texto foi derrubado em novembro de 2021, pelo Supremo Tribunal Federal, que determinou ao Ministério da Educação definir as diretrizes sobre o ensino da linguagem neutra. Na época, a secretária de educação básica do MEC, Kátia Schweickardt, esclareceu que a língua portuguesa pode ser um objeto de estudo e reflexão, e defendeu que os estudantes dominem a norma culta mas também compreendam as variações que circulam na sociedade e que podem ser mais inclusivas. No país, vários projetos de lei que proibiam a linguagem neutra também foram derrubados pela Justiça.

* Lunetas consultou a professora Letícia Góes, que produziu uma aula virtual no YouTube sobre linguagem neutra, para responder às quatro questões destacadas no texto.

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