Mais do que nunca, precisamos ouvir as crianças

Estar em casa é uma oportunidade para estreitar as relações e ouvir de fato o que as crianças estão dizendo, aponta especialista

Laís Barros Martins Publicado em 28.04.2020
Imagem preta e branca de mãe e filha sentadas de costas. Elas estão conversando em sintonia. A mãe está dedicada a ouvir a criança.
OUVIR

Resumo

A escuta pode revelar o que as crianças sentem a partir de como se expressam. Para a pedagoga Ana Cláudia Arruda Leite, o retorno à casa durante a quarentena favorece essa relação e, com mais atenção e menos pressa, podemos entender o que realmente importa.

Crianças têm um jeito próprio de se expressar de acordo com as particularidades de cada faixa etária e do desenvolvimento infantil. “Esse imaginário da criança traz vestígios que contam sobre quem ela é”, explica Ana Cláudia Arruda Leite, pedagoga, consultora de infância e educação do Instituto Alana, e que alerta para a necessidade de pais e educadores pararem para ouvir as crianças.

Abordamos a seguir as principais questões sobre escuta de crianças e sobre reconhecê-las como pessoas, sobretudo em tempos difíceis como esse que estamos atravessando devido à pandemia de coronavírus. “Ler” esses sinais não demanda técnicas, basta a disponibilidade em acolher o que se passa em seu mundo interno, recomenda a especialista. Acompanhe a nossa conversa na íntegra.

Lunetas – Como ouvir as crianças especialmente em tempos de crise provocada por uma pandemia?Ana Cláudia Arruda Leite – A escuta das crianças, considerando-as sujeitos de direito à participação, tem sido cada vez mais relevante tanto no âmbito da educação como das instâncias de políticas públicas, mas ainda é um desafio saber como de fato ouvi-las respeitando a infância. Nesse contexto de pandemia sem precedentes, que traz essa necessidade de isolamento, o lado interessante seria esse retorno à casa, o primeiro mundo onde a criança consegue expressar a sua imaginação e a sua subjetividade. Paradoxalmente, é uma oportunidade de famílias, cuidadores ou outros adultos de referência estarem com elas e esse é um bom ponto de partida para conseguir ouvir as crianças.

A ideia de escuta não prevê um papel ativo, de atividades para ocupar as crianças. Pelo contrário, o convite é para que esse ambiente da casa possa ser experimentado para estreitar as relações.

Antes, pouco tempo se tinha com os filhos, e agora podemos observar as crianças nas suas expressões mais genuínas, na sua forma própria de exprimir sentimentos, pensamentos, gestos, imaginação, que é principalmente o brincar livre e não dirigido, bem como outras expressões demonstradas no dia a dia, como o desenho, construções plásticas em objetos, composições, suas narrativas, como ela nina a boneca, participa da rotina da casa, guarda suas coisas. A partir desse imaginário da criança, vestígios nos contam sobre quem ela é. Muitas vezes o adulto vai ao encontro da perspectiva própria da criança com expectativas das mais singelas (que ela desenhe a árvore com folhas verdes, por exemplo), segundo uma lógica guiada por um pensamento extremamente racional, linear, preocupado com resultados externos à experiência e que tendem a uma fragmentação da vida, da vivência e do próprio conhecimento. O olhar da criança para o mundo é diferente da lógica do adulto; a criança vive na totalidade da experiência, integrando as coisas, inclusive dissonantes e opostas. Neste lugar, tudo cabe, mesmo uma árvore que voa e que é roxa. Devemos respeitar e entender que ali mora nossa potência criadora, a imaginação como potência do viver, da esperança, dos sonhos, da criatividade.

Como propiciar esse espaço dedicado à escuta infantil?
AC – O adulto deve chegar menos como sujeito ativo e mais como alguém com disponibilidade de tempo, de espaço e também internamente para construir uma relação mais empática com a criança, respeitando sua perspectiva para então praticar essa escuta sensível das infâncias e de suas múltiplas linguagens e expressões. Para o desenvolvimento integral e saudável da criança, é importante o adulto criar um ritmo, que traga durante o dia uma alternância entre momentos de concentração (escuta de histórias, desenho, cozinhar, escrita) e expansão (pular corda, inventar jogos, dançar, hora do banho, fazer pão). Oferecer materiais não estruturados ou sintéticos, com diversidade de textura e formas, para a livre expressão e para o brincar, que possibilitem a imaginação, que tragam uma memória, que tenha uma ligação com sua fonte primária.

Qual a necessidade de considerar o lugar simbólico dos dizeres das crianças, inclusive de bebês? Como expressam seus sentimentos e como trazer à consciência essas emoções na primeira infância?
AC – No contexto familiar, pais e cuidadores não precisam se preocupar com o nível da interpretação simbólica das expressões das crianças e em obter as condições de entender o que estão intuindo da humanidade e do planeta. Só de acolher suas percepções sobre o mundo já é muito positivo. Assim, vamos exercitando nossa capacidade de ler as produções dentro da cultura da infância, que também produz significados, sentidos e conhecimento.

Como lidar com os pontos críticos que podem ser levantados durante a conversa, sendo que muito provavelmente não teremos respostas, como o mundo ainda também não tem?
AC – O primeiro ponto de atenção é zelar pelo direito da criança a ser criança e ter uma infância digna. Costumamos antecipar processos ao trazer mais explicações do que elas precisam, querem e têm condições de apreender e digerir, gerando preocupações e angústias. Muitas vezes, explicamos as perguntas que as crianças nos fazem além do necessário numa tendência de intelectualizar que acaba interferindo no processo delas.

Devemos oferecer informações de qualidade e adequadas à sua faixa etária, de acordo com as suas perguntas e anseios, principalmente num contexto como este que estamos vivendo onde ninguém sabe sobre o futuro e há muito medo.

Precisamos acolher suas aflições junto do seu direito ao brincar, à cultura, à educação, e também ao sonho e à esperança. É importante que ela participe e vivencie essas experiências, sem minimizar a dor nem infantiliza-las, para poder elaborar aquilo que está sentindo, e não transformar esses processos em algo estranho à experiência humana. Às vezes, a resposta é direta; outras, a resposta pode vir por meio de uma história, como os contos originais que trazem uma carga de imagens e dramas, por exemplo, que lhe permita lidar com aquela questão colocada.

Outra alternativa é não responder, dizer que não sabe, e perguntar o que ela acha, o que ela sugere. Assim, poderão imaginar alguma solução juntos. Não é preciso ter resposta para tudo.

Também podemos alargar nossa escuta e ver o que há por trás da pergunta (medo de a escola não voltar, da avó morrer, saudade dos amigos): será que ela precisa de colo, de um abraço que traga aconchego e segurança, de um gesto ou uma palavra que renove a confiança, o vínculo?

Como ressignificar uma ideia de futuro, já que o tempo foi suspenso por tempo indeterminado enquanto durar a quarentena?
AC – Sobre o futuro, embora se saiba apenas que as coisas não serão mais como era antes, acredito que seja importante trazer sempre para a criança e mesmo para o adolescente uma perspectiva positiva, porque é vital para a saúde mental e física. Isso não significa mentir, inventar algo, mas dizer que, apesar dos pesares, a humanidade está aprendendo, a natureza está revigorando e vamos sair desta. Embora as crianças sejam atores políticos e protagonistas, apresentando resiliência e até mais naturalidade para encarar os fenômenos da vida do que o adulto, se lhe é permitido viver os processos com integridade, respeito e acolhimento, cabe aos adultos essa responsabilidade sobre o que fazer, aguentar o tranco como geração. A criança precisa ser resguardada, não numa bolha ou numa redoma de vidro, como se devesse ser poupada de tudo e fosse imatura para lidar com a vida, mas não pode ser bombardeada de notícias ruins e pessimismo. Depende do adulto mediar a relação da criança com a crise, oferecendo suporte e transmitindo segurança e confiança.

Qual o desafio de escutar a criança quando não conseguimos escutar nem a nós próprios, tamanho o ruído de sentimentos intensificados pelas constantes notícias ruins?
AC – Antes do isolamento já havia dificuldade em se escutar a si mesmo e não escutar o planeta. A criança sempre desafiou o adulto ao esperar dele coerência, integridade entre o que fala e faz, pois aprende por imitação, pelo exemplo, e a todo momento nos convida a nos ouvir. O que implica em estar no tempo da experiência em sua totalidade, não no passado ou no futuro. A Covid-19 é uma grande oportunidade para nos escutarmos, acolhendo inclusive nossas sombras e nossa luz, e a entrar em contato com as contradições de um modelo de vida que já estava em si doente por ser injusto, desigual, baseado no consumo, no lucro, e na exploração e devastação da natureza.

Agora todos têm de estar em casa, e as crianças mais do que nunca precisam da qualidade da presença.

Se não conseguimos nos escutar, podemos aproveitar para aprender com o que elas nos mostram a cada dia sobre nós mesmos, nossas melhores qualidades e piores defeitos. O convite é fazer o que sempre precisou e não se achava tempo: exercitar nossa capacidade de estar no aqui e agora, viver um dia após o outro. O direito à casa e os aprendizados do cotidiano são grandes escolas de valores, habilidades, saberes, de ver o todo da experiência e ainda abrir a porta para a interioridade, o autoconhecimento, para o que realmente importa. A peneira do que é essencial está posta para todo mundo.

É preciso construir um espaço, dedicar um tempo para ouvir as crianças e validar suas emoções, ou esse processo funciona mais naturalmente, devendo estar atento aos detalhes o tempo todo?
AC – Não. Acredito que o importante seja compreender a vida na totalidade da experiência, num modo mais sistêmico, em que corpo, mente e emoções estão sempre interligados, como as crianças. Nós é que, na maioria das vezes, estamos ocupados demais. Basta dedicar mais atenção para o momento delicado e perceber, no campo emocional, como ela externa suas dores a partir de suas reações e oferecer acolhimento para as emoções que precisam de amparo. Agora é uma oportunidade para aprendermos muito sobre, com e a partir dos nossos filhos. Isso implica em, talvez pela primeira vez na história da humanidade, colocar o adulto e seu ego em segundo plano, fazendo de fato valer o artigo 227 que coloca as crianças como prioridade absoluta.

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS