“Disseram-nos que a gestação é sublime. Estado de graça. Se não a melhor, uma das melhores experiências da vida. Mas não nos disseram o que fazer com todos os outros sentimentos, bem diferentes destes, que insistem em aparecer.” O trecho está na quarta capa do livro “Maternar: gestação, parto e criação de uma nova consciência materna” (Appris) e antecipa que são muitos os sentimentos envolvidos nessa fase.
Porém, em meio aos desafios físicos e emocionais de receber uma criança e se tornar mãe, ainda se discute pouco sobre a dificuldade em criar laços afetivos com o bebê. A atriz e escritora Karla Tenório, mãe de Flor, 12, lembra que demorou para entender o vínculo materno e sentir o amor florescer por completo. “Quando eu fiquei grávida foi tudo muito místico. Estava feliz e comecei a construir um caminho de idealização. Por isso, a queda depois foi grande.”
Para ela, a pressão para alcançar o status de uma mãe cuidadora perfeita fez o sentimento de culpa tomar conta naquele momento. “Nos primeiros 20 dias, tive lapsos de memória e passei por isso sozinha. Foi como um buraco dentro de mim. Na minha cabeça, eu não podia reclamar e tinha que ser forte”.
Entre o afeto e a saúde mental
Especialistas explicam que a falta de vínculo imediato entre mãe e bebê está mais relacionada aos sentimentos confusos do que a questões de saúde mental. Assim, nem todo o caso se trata de uma depressão pós-parto, por exemplo.
A psicanalista Fabiana Guntovitch, especialista em neurociência e comportamento feminino, explica que a maternidade traz à tona sentimentos contraditórios. Então, é preciso observar os sinais. Com a ideia de que “o vínculo é formado para além do cordão umbilical, mas a partir do desejo e da disposição de investir na relação, o cansaço extremo e a ansiedade podem pesar nesse caminho. Por isso, a psicanalista sugere que as mães não se culpem nem queiram corresponder a todas as expectativas relacionadas à romantização da maternidade. “Só assim, a mulher pode tentar encontrar um ponto de equilíbrio interno e trabalhar melhor o vínculo afetivo com o seu bebê.”
Por outro lado, Guntovitch deixa claro que isso também pode mostrar que a mãe precisa de ajuda, e que a rede de apoio deve oferecer suporte, além de manter a presença constante. Outra questão é tentar proporcionar à mãe um acompanhamento psicológico desde o pré-natal, para que ela se sinta confortável em falar sobre seus sentimentos.
É possível amar os filhos e não amar ser mãe?
As discussões sobre a dualidade do que se sente pelos filhos e pelas obrigações da maternidade ganharam mais espaços nas trocas entre mães e nas redes sociais. Essa ideia pode parecer polêmica, mas, segundo Guntovitch, espera-se que a mãe seja afetuosa desde a descoberta da gravidez. “Isso é algo construído culturalmente”, diz.
Portanto, com a família, amigos e outros círculos sociais cobrando um afeto instantâneo da mãe com o bebê, a mulher tende a achar que seu sentimento não é suficiente. Contudo, a psicanalista defende que “é possível amar um filho de todo coração. Mas, ainda assim, ter uma dificuldade imensa com as demandas da maternidade, que são impostas pela sociedade e recaem principalmente sobre a mãe”.
Essa imposição social faz parte da chamada “maternidade compulsória”, que se resume na pressão cultural que impõe à mulher o papel de mãe, a ponto de não ser uma escolha. Foi ao se posicionar contra essa ideia que Karla Tenório criou o Movimento Mãe Arrependida. O objetivo é justamente combater a construção da maternidade perfeita. “É um aprofundamento da maternidade real, como um refúgio para que as mães falem o que precisam e procurem ajuda, principalmente para a saúde mental”, explica. A atriz também levou o assunto ao teatro, com a peça “Mãe arrependida”, que apresenta o lado complicado da maternidade.
Quais caminhos ajudam a criar esse vínculo?
De acordo com Betina Abs, obstetra, homeopata e pioneira no atendimento de parto humanizado, não existe um passo a passo para construir laços afetivos com o bebê. Porém, há caminhos que podem trazer mais leveza a esse percurso. “Não há técnica para isso, mas o principal é ter calma e não se cobrar. Não precisa amar desde o primeiro dia. São muitos os sentimentos nesse momento”, explica. Portanto, o importante é aceitar que o vínculo está em fase de construção.
Além disso, a obstetra ressalta que a troca de experiências com outras mães ajuda bastante. “O momento inicial é muito solitário, pois a criança ainda não é, de fato, uma companhia. Ela não troca com você, a mãe só doa”. Por isso, procurar grupos de mães e socializar é uma boa opção.
E o vínculo paterno?
O abandono paterno influencia diretamente na falta de vínculo com o bebê. Nesse sentido, como mais de 100 mil crianças por ano ficam sem o registro do pai na certidão de nascimento, a discussão sobre o vínculo paterno se limita à presença. Porém, mesmo pais presentes na criação dos filhos relatam dificuldade em criar vínculos. Diante disso, a obstetra Betina Abs reforça que, “se a escolha de ter um filho foi um projeto em conjunto, o pai precisa ser parceiro em todas as atividades que a criança demanda e, principalmente, cuidar das necessidades da mãe”.
Outro ponto é compreender que o afeto fica mais forte conforme o bebê vai crescendo. “Na gravidez, é comum a mulher se preparar para se tornar mãe, para o que vai mudar em relação a ela. Mas, é bom entender que ela ainda sequer conhece quem está dentro da própria barriga. Para algumas, as relações acontecem quando essa nova pessoa nasce. Para outras é mais rápido”. Assim, Abs recomenda deixar a culpa de lado. “Você ainda vai descobrir do que sua criança gosta e vocês vão entender como se gostam juntas.”
Foi o que aconteceu com Karla Tenório e Flor. Entre elas, o laço afetivo foi mesmo uma construção, e não algo instintivo. “Tive aquele vínculo físico dela na minha barriga, mas só lá pelos dois ou três anos que fui invadida pelo tal do amor incondicional. É uma construção, como em qualquer relação”. Atualmente, Tenório pode afirmar o quanto a relação com a filha a transformou de maneira positiva. “Hoje somos eu e ela. Além de ser o amor da minha vida, a nossa parceria me fez ajudar muitas mulheres a refletirem e buscarem ajuda antes de passar muito tempo, como foi no meu caso”.
De acordo com uma pesquisa da organização inglesa National Childbirth Trust, não criar vínculos nos primeiros momentos com o recém-nascido é uma realidade para 32% das 1.500 mulheres entrevistadas. Já 12% delas admitiram que sentem vergonha de falar sobre o assunto com os profissionais da saúde. Além disso, elas afirmaram sentir “culpa e inadequação”.