É muito difícil responder essa pergunta porque, em nosso imaginário, o ideal de infância jamais conjuga criança e morte. Talvez seja porque a gente liga instantaneamente a ideia de criança ao futuro, ao que nos é possível perspectivar no tempo. Temos dificuldade de falar com elas sobre o fim e, na nossa cultura, inventamos recursos e produzimos muitos sintomas para evitar a relação com a finitude como condição humana. Mas, quando o acontecimento da morte se impõe, não temos saída. No Brasil, em meio a uma crise de saúde pública sem precedentes, e muito agravada pelos modos escolhidos para enfrentar a Covid-19, contamos mais de 100 mil mortes em apenas cinco meses.
O que dizer às crianças sobre as 100 mil mortes?
Para começar a responder essa pergunta incômoda, temos que entender com qual criança pretendemos conversar. Com as crianças que esperavam Agatha no balé? Com as crianças que tiramos da sala na hora do noticiário? Ou com aquelas que, devido à sua condição física, encaram a morte nos olhos todos os dias? Vamos falar com crianças órfãs ou com os meninos que esperavam Miguel voltar com a sua mãe do trabalho? Falaremos com as crianças que cercamos de segurança ou com as crianças indígenas que tiveram os ritos de morte de sua cultura violados? Nossa conversa vai se dar com aqueles que andam de carro pela cidade ou com os que escutam de suas mães que não devem sair de casa sem RG e que correr na rua pode ser fatal?
Essas perguntas estão aqui para, mais uma vez, nos mostrar que as crianças habitam o mesmo mundo que nós, supostos adultos. E vivem, também, sob os efeitos do que produzimos. Quando começamos a responder tais questões já entendemos que, além das diferenças singulares na relação com a morte, nem toda experiência de infância nos permite sustentar a cisão entre crianças e notícia sobre o fim da vida.
Falar com elas sobre isso não é, jamais, apresentar algo inédito, porque se engana aquele que pensa que uma criança não se relaciona com aquilo que, por força, tentamos evitar. Ainda assim, é preciso considerar que faz muita diferença o ponto que cada criança, em cada recorte cultural e social, se encontra com a morte; faz diferença se a morte diz da sua própria condição de vida, ou da dos outros, se é fato ou se é ideia.
As crianças não são uma categoria homogênea, definida apenas por sua idade cronológica. O lugar social que ocupam na cultura tece uma infância entre as infâncias possíveis que instituímos em nossa organização social. E é com cada uma dessas crianças que precisamos falar sobre o que vivemos juntos.
A imensa maioria das pessoas que morreu no curso da pandemia deixou uma criança com saudade.
Nós sabemos quem são a maior parte das pessoas que morreram mas, mesmo as crianças que, até aqui, conseguiram evitar o contato íntimo com a morte, não podem escapar do fato que, no país que habitam, 100 mil pessoas morreram. São mais de 3 milhões de infectados pelo novo coronavírus, e todos sentimos medo de perder a vida ou de perder alguém querido.
Já falamos nesse espaço sobre a importância e o valor de conversar com as crianças sobre o que produz sofrimento. “Con-versar” é falar e é também escutar, é ficar junto como medida de cuidado.
Na nossa experiência particular, conversar com quem a gente confia sobre as pessoas queridas que perdemos é, ao lado da ritualização da despedida, o tratamento mais profundo que podemos dar a essa perda. Contar histórias, revisitar lembranças, conhecer episódios da vida de quem não temos mais ajuda todo mundo, adultos e crianças, a encontrar um novo lugar para aquela pessoa na vida da gente. Nossos ritos são coletivos e têm a função de amortecer a dor da gente. Entre acolhimento e abraço, cada um de nós vai encontrando caminho para seguir sem aquela pessoa. É por isso também que nesse instante do mundo em que os ritos de despedida estão comprometidos, obituários públicos e construídos coletivamente, como o projeto Inumeráveis, são iniciativas fundamentais. Eles são amparo para quem perdeu alguém e são também um amplo trabalho de resistência e memória, porque, ao contarmos a história de cada uma das vítimas do coronavírus, não nos deixamos esquecer que cada uma das pessoas mortas não é apenas um número na estatística, é uma vida que deixou de existir.
Enlaçados com os outros, somos amparados na construção desse novo lugar para o qual vamos passando com aqueles de quem sentimos falta. Em português, chamamos isso de saudade.
(Uma vez, alguém me disse que saudade é um tipo de recibo que a vida passa, pra dizer do que foi bom e que não está mais com a gente. Eu não lembro quem me disse, mas eu não esqueci).
A ideia de fim incide radicalmente na nossa relação com a vida: pode nos organizar, nos colocar em movimento e precipitar a condição de usufruir da nossa experiência cotidiana. Podemos, também, nos desesperar ou nos tornar “contabilizadores de risco” e paralisados. Há ainda o recurso, mais grave, que consiste em negar a morte como tentativa de desviar do nosso próprio limite.
Estamos, com nossas crianças, diante de um fato histórico: a marca de mais de 100 mil mortos no curso de uma grave crise sanitária que ainda não foi controlada. Quando me referi à diversidade das infâncias, não foi pra dizer que para cada uma dessas infâncias temos uma receita diferente pra falar “melhor” sobre o fim da vida. Foi para nos lembrar que chegamos até aqui produzidos e tecidos pelo desrespeito à diversidade cultural, pela desigualdade social e pela negligência no enfrentamento dessa condição. Esses fatores, sabemos, potencializam a violência do coronavírus na marca das mais de 100 mil saudades com as quais, agora, precisamos lidar.
A pergunta insiste: como vamos fazer isso?
A resposta é complexa e condicionada por muitas variáveis. É certo que a negação ou a paralisia diante da morte não vão nos ajudar. Atravessados pelo que nos trouxe até aqui, é cada vez mais urgente que nos relacionemos com a morte para cuidar da vida.
Para construir saídas e caminhos de elaboração, precisamos escutar os movimentos do tempo em que vivemos. Precisamos colocar na nossa conta que o corte real que a contaminação descontrolada da Covid-19 produziu, com todo o horror que imprimiu em nossas vidas, contestou o argumento de que não mudamos e não conseguimos fazer diferente porque “não podemos parar”.
Nós já paramos ou fomos parados. Nós sentimos medo. O funcionamento instituído da vida das crianças já foi suspenso. As escolas estão fechadas. Colecionamos perdas que incidem na vida de cada um, mas também produzem efeitos sociais importantes.
Para cuidar da vida, precisamos considerar a dimensão do compromisso que assumimos com o outro, com todos os outros.
Na procura por respostas, neste instante do mundo, é a densidade impressa nesse “todos os outros” que a vida em pandemia não nos deixa esquecer nem por um segundo.
A vida, agora demarcada por mais de 100 mil mortos, tem sido insistente em nos mostrar que precisamos rever nossos modos de relação com a alteridade. Não acredito que teremos chance maior para entender que cuidar de si é algo que se faz considerando o outro: a saúde é uma experiência coletiva. Nesse sentido, devemos nos incluir a todos nas transformações que queremos produzir, porque se não sairmos juntos dessa, redistribuindo forças e perdas na estrutura social das nossas vidas, vamos chafurdar nas nossas mesmices. É a partir dessa ideia do “juntos”- implicados e responsabilizados uns com os outros – que devemos recolocar nossas práticas na dimensão do interesse público e mudar a lógica que rege nossos laços com as pessoas.
A prática urgente é a da solidariedade em direção ao que nos é comum.
E solidariedade não é sinônimo de caridade. Solidariedade é reconhecer o outro a partir da voz dele, não a que eu emito em nome dele, escolhendo, sozinho, o que mais lhe falta.
Para encontrar uma saída possível, precisamos refazer nossas contas e lidar com as mais de 100 mil saudades que nos acompanham. Em hebraico, existe a expressão tikkun olam. “Tikkun” seria algo como uma reparação: consertar, preparar, arrumar. E “olam” seria mundo. Tikkun olam, cuidar do mundo. Um entendimento de que, no mundo, nos cabe sempre fazer algo em direção ao que Pierre Dardot e Christian Laval chamam de “comum”, porque
O justo só pode ser construído em conjunto.
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Por favor, não deixe de assistir a esse vídeo sobre como é ser mãe de meninos pretos em uma sociedade racista.