Há, dentro das instituições e naturalizado por nós adultos, uma espécie de tratado de desimportância com muita coisa que as crianças fazem e sentem
O pesquisador Paulo Fochi fala sobre o "Tratado de (des)importância": "essas naturalizações mostram como ainda não conseguimos reconhecer nas crianças sua dimensão de humanidade, de alguém que sente, gosta, não gosta, deseja".
Estou há alguns dias pensando como escrever meu primeiro texto para o Lunetas. Iniciei diversas vezes algumas frases, anotei algumas ideias, mas nada parecia ser suficiente para ser o início. Ficava pensando que esse texto deveria dar o tom daquilo que gostaria de compartilhar com os leitores nos textos que virão a seguir. Deveria mostrar o modo como eu quero tratar as discussões em torno do tema da educação e da infância.
Foi então que uma amiga querida me ligou, ficamos mais de 40 minutos conversando sobre tantos assuntos, quando por algum motivo que já não lembro qual, eu contei a ela uma história para exemplificar o quanto precisamos parar para estranhar o óbvio. Pronto! Ali estava: o óbvio é o que eu gosto de compartilhar quando falo e quando escrevo.
Um óbvio, tão óbvio, que ele está naturalizado em diversas ações, gestos e falas que adultos utilizam para se relacionar com as crianças e então passa despercebido.
Vejamos esse exemplo
Era uma missão científica que eu estava fazendo no norte da Espanha, acompanhando o trabalho que era feito em escolas de educação infantil públicas. O grupo que eu observava naquele dia tinha 22 crianças, de três e quatro anos. A professora reúne o grupo para avisar que em função de um pequeno atraso na proposta anterior, o tempo que teriam no quintal seria um pouco menor que o usual, pois na sequência chegaria a hora do almoço. Eis que Ivan interpela a professora e diz: “- Você pode avisar antes de acabar nosso tempo no quintal?”. A professora parece estranhar a provocação, mas confirma a possibilidade. Seguem para o lado de fora brincar.
Quando o menino interpelou a professora, imediatamente percebi o conteúdo da reclamação dele. Foi instantâneo visualizar o modo como normalmente ocorre a hora de sair do quintal: o adulto anuncia em alto e bom tom – geralmente seguido de três palminhas – “vamos lá pessoal, tá na hora do almoço”. E quando o adulto dá esse sinal, tudo precisa ser paralisado imediatamente para seguir para a próxima tarefa, para o próximo momento.
Como fui professor de crianças mais de 10 anos e continuo pesquisando, trabalhando e investigando sobre as crianças na educação infantil, me identifiquei e me reconheci naquela cena. Decidi não descolar mais da professora aguardando a solução que ela daria ao problema revelado por Ivan.
Aproximando-se do horário do almoço, a professora começou a passar pelos pequenos grupos de criança e avisar que em poucos minutos seria necessário entrar. De grupo em grupo, ou mesmo, de criança em criança, ela calmamente anunciou o tempo que teriam ainda disponível no quintal. As crianças, continuaram suas brincadeiras tranquilamente. Passados uns cinco minutos, a professora começa a organizar a entrada e as crianças pouco a pouco vão deixando as brincadeiras do quintal e se dirigindo para lavar as mãos.
Acompanhando o desenrolar da história e muito curioso com o que Ivan estava pensando a respeito do encaminhamento da professora, perguntei a ele: “- E então, gostou do aviso da professora?” Ele, com um semblante sereno e com um ar de obviedade me responde, “-Claro! Eu até consegui avisar meus super heróis que depois eu volto.”
Poderia ser uma cena banal do dia a dia de uma instituição educativa. Ocorre que por trás dessa banalidade estão escondidas nossas concepções de crianças.
Há, dentro das instituições e naturalizado por nós adultos, uma espécie de tratado de “desimportância” com muita coisa que as crianças fazem e sentem, e isso se revela no modo como tocamos na criança para saber se ela precisa ser trocada, ao dizermos “levanta que não foi nada” quando ela cai no chão, ou, “dá um abraço no amigo” depois de uma disputa de brinquedo.
Oras, nenhum adulto quer abraçar alguém depois de discutir e para nenhum adulto nós falamos que não foi nada quando ele está se recuperando de uma queda, ao contrário, perguntamos “Está tudo bem? Precisa de ajuda”.
Essas naturalizações mostram como ainda não conseguimos reconhecer nas crianças sua dimensão de humanidade, de alguém que sente, gosta, não gosta, deseja. Não dar importância para a brincadeira e dizer para largar tudo e entrar é o exemplo reclamado por Ivan. Mas esse é um, dentre tantos. O gesto da professora tem sido desde então uma grande inspiração, espero que inspire a vocês também.
Pois bem, voltando ao meu dilema inicial. Encontrei o que quero contar em meus textos. Tratarei da importância daquilo que fica esquecido, perdido, naturalizado. Aprendi isso com os bebês e com Manoel de Barros: dar a importância as coisas desimportantes. São nelas que sempre encontro o frescor da vida.
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