No RJ, festas inspiradas no Bope expõem crianças à violência

A festa, oferecida por uma casa de festas de Jacarepaguá, foi justificada pela empresa como uma alternativa para que as crianças possam ter heróis de verdade

Da redação Publicado em 19.05.2017

Resumo

No RJ, Bope vira tema de festa infantil. Convidamos Reinaldo Nascimento, educador de vítimas de traumas de guerra, para falar sobre as consequências dessa exposição precoce à violência.

Esta semana, uma notícia causou alvoroço na redes sociais: no Rio de Janeiro, lojas especializadas em artigos de festas infantis apostam na temática “Bope” (Batalhão de Operações Especiais) para oferecer uma decoração inspirada na tropa de elite da Política Militar carioca. No site da empresa Brincadeira é Coisa Séria, de Jacarepaguá, é possível ver as fotos dos temas disponíveis, entre eles o do Bope, que coloca o ‘caveirão’ da Polícia, cujo logo traz duas armas cruzadas, em posição de destaque. O serviço inclui doces, balões e acessórios personalizados nas cores do Batalhão, acompanhados do lema “Lealdade e Destemor”.

Segundo a reportagem do jornal O Globo, a ideia surgiu depois do pedido de uma mãe:

“Meu filho fez quatro anos em junho do ano passado, e desde o dia que ele assistiu ao filme ‘Tropa de Elite’, diz que quer ser policial. Quando eu perguntei qual era o tema que ele queria para a festa de aniversário dele, ele respondeu: ‘Bope’. A gente acaba embarcando na ideia da criança, então eu conversei com a casa de festas e eles me ajudaram” – contou ao Globo Thaís Piquet, mãe de Guilherme, de quatro anos.

A festa, encampada pela casa de festas de Jacarepaguá, foi justificada por Pedro Ganaça, proprietário da empresa, como uma alternativa para que as crianças possam ter heróis de verdade. Já a Polícia Militar do Rio de Janeiro, em nota, afirmou que se trata de uma “saudável iniciativa”, e que a presença da instituição no imaginário das crianças as aproxima da sociedade.

“As crianças têm a necessidade de ter um super-herói, estão acostumadas com o Batman, o Homem Aranha”, explicou Ganaça ao Globo – clique aqui para ler a matéria na íntegra.

O Lunetas convidou o educador e terapeuta social Reinaldo Nascimento, coordenador pedagógico do projeto Pedagogia de Emergência para debater o caso.

Afinal, quais as consequências de apresentar às crianças esse referencial de “herói”?

Como a criança apreende o discurso da violência e quais traumas ele pode causar? Foram estes os questionamentos que fizemos a Reinaldo, que trabalha diretamente com crianças vítimas de traumas de guerra e vulnerabilidade social.

Image

Divulgação/Brincadeira É Coisa Séria

Um tema de festa infantil inspirado no Batalhão de Operações Militares da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

O perigo do contato precoce com a violência

Em novembro de 2016, Reinaldo, de 38 anos, foi até o Iraque para integrar uma equipe internacional que implantaria na região a chamada “Pedagogia de Emergência”, uma experiência educativa que aposta no potencial curativo das brincadeiras.

Mantido por uma associação alemã e fundamentada na metodologia Waldorf, o projeto tem o objetivo de minimizar a condição traumática de crianças que vivem em zonas de conflito e vulnerabilidade. A pedido do Lunetas, ele comenta sobre as festas infantis inspiradas na Polícia Militar. Não se trata de blindar as crianças da violência do mundo, mas sim de escolher como apresentar a elas que ela existe.

“Os nossos super heróis surgem das pessoas que nos protegem e nos oferecem bons exemplos, por meio de pessoas que nos encorajam a entrar na cachoeira gelada, sim, mas que nos recebem com uma toalha seca na saída”, diz ele, com uma metáfora que explica como deveria ser uma abordagem mais humana da violência, que se preocupa sim em mostrar a realidade, mas com afeto e cuidado.

“Impressiona-me uma criança de apenas quatro anos de idade ser convidada à assistir Filmes como “Tropa de Elite”, “Cidade de Deus”, “Carandiru” e tantos outros que tenham suas indicações para maiores de 16″

“Me assusta uma criança tão pequena desejar o Bope como pano de fundo para celebrar o seu aniversário.
Infelizmente, tenho presenciado um grande movimento de pais dizendo que as crianças precisam aprender a decidir cada vez mais cedo o que é melhor para si. O estranho nisto tudo é que muitos destes pais acreditam que cantar “atirei o pau no gato” ou que abrir a barriga do lobo mau e colocar pedras lá dentro é terrível e que crianças não deveriam ouvir estas histórias e nem cantar estas músicas”, defende Reinaldo.

A importância de oferecer boas referências

“Crianças pequenas vivem no seu intimo a ideia de que o mundo é bom. Tudo é bom! Elas sugam inconscientemente tudo o que as cerca no âmbito físico, mas também nos sentimentos e no caráter das pessoas que estão por perto”

Pessoas carinhosas, amorosas, protetoras, aconchegantes. Pessoas que darão o melhor alimento físico e espiritual. Uma blusa para se esquentar do frio, mesmo quando ela teima que está com calor. Uma comida amarga, mesmo sabendo que o doce é o preferido.

Mas o amargo também tem limites. Crianças expostas a milhares de tiros, à uma violência extrema, a gestos brutais dentro de sua própria casa por pessoas que deveriam protegê-las de tudo isto pode ser sim muito traumático e não seria uma surpresa estas crianças, depois de assistir a um filme assim, quererem somente brincar de machucar os outros.”

Por uma educação mais afetiva

“No Iraque, tenho trabalhado com muitos pais que sofrem horrores por não terem tido a chance de proteger seus filhos dos horrores da guerra, por não conseguirem proteger seus filhos de terem visto o que viram. Aqui no Brasil, levamos estas “guerras” para os nossos filhos pequenos na sala de estar e com pipoca porque queremos acreditar que nossos filhos precisam viver a realidade como ela é.

Vivemos desigualdades enormes. Temos que trabalhar para dar o melhor aos nossos filhos, mas o melhor nem sempre – quase nunca, aliás – é o mais caro, o mais complicado, o mais perigoso ou o mais assustador, e sim o mais simples. Lembro-me com carinho de um amigo que me disse que um dia perguntou à sua filhinha o que ela gostaria de fazer. Ele esperava algo muito complicado e ela respondeu: ‘Tomar sorvete com você, pai!'”.

 

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS