Como o cinema pode entrar em sala de aula para garantir aos alunos a experiência do olhar e do fazer, e ainda quebrar discursos dominantes e racistas
Profissionais da educação e do cinema debatem caminhos de inserir produções audiovisuais dentro da sala de aula para que crianças possam se expressar e pensar o mundo a partir de uma perspectiva mais plural, inclusiva e diversa.
A potência transformadora do cinema é um dos caminhos para que, junto da educação, possa enfrentar desafios estruturais como o racismo e a desigualdade social. O professor é responsável por criar formas de explorar essas experiências audiovisuais, mas não deve andar sozinho. Esse projeto precisa extrapolar o chão da escola e ocupar também o chão das demais instituições da sociedade brasileira.
Foi para refletir sobre os pontos de encontro entre cinema e educação na promoção dos direitos humanos que o Instituto Alana, com patrocínio do Videocamp, celebrou esse dia dos professores com a estreia da iniciativa No Chão da Escola. O objetivo é fomentar projetos que valorizam e investem na formação continuada de profissionais da educação básica, que podem contribuir, a partir de culturas e linguagens artísticas, para uma sociedade mais justa, sustentável, pacífica e democrática. Afinal, os filmes são capazes de despertar reflexões sobre o mundo e mobilizar pessoas a protagonizar narrativas de mudança em seu entorno.
A conversa formativa on-line que aconteceu nesta quinta-feira (15/10) reuniu profissionais para debater essa relação e levar inspiração aos participantes, com mediação de Josi Campos, coordenadora do Videocamp, e Raquel Franzim, coordenadora de educação do Instituto Alana. Para a antropóloga e professora da Faculdade de Educação da UFRJ Sônia Beatriz dos Santos, que abriu o encontro, “não é possível pensar educação e direitos humanos sem trazer como pilar principal a educação étnico-racial que carrega consigo outras diferenças humanas, como sexismo, discriminação de classes, diferenças de gênero”, aponta. Só assim, revisitando essas ideias que configuram a nossa cultura e vão negando o direito do outro de ser humano, é que poderemos, segundo ela, “romper com os estigmas e a inferiorização de crianças e adolescentes não-brancos invisibilizados dentro e fora da escola”.
“A população infantojuvenil, que tem sido invisibilizada, precisa ser prioridade”
Para ela, apesar de avanços e conquistas, a escola continua produzindo “uma visão distorcida e daltônica do seu público, respaldada por um projeto de rejeição à diferença, do ser humano homogêneo. Com um falso discurso de não discriminar, tem naturalizado desigualdades e excluído a maior parte dos estudantes, inferiorizando e estigmatizando-os”.
O racismo está presente no livro didático, no prédio, nas relações atitudinais, na comunicação, no comportamento, nas tomadas de decisão, com o potencial de criar processos de desumanização e anular políticas de direitos humanos, lembra ela. “Só é possível mudar quando assumirmos que o projeto de branqueamento no Brasil representa a rejeição institucionalizada trazida pelo colonialismo. Um projeto de dominação que impede que nos relacionemos como iguais através de nossas diferenças.”
Sônia indica que as pessoas precisam também “trazer para si o problema e assumir que o racismo tem efeitos nefastos. O chão da escola é cruel, porque é um lugar onde crianças ainda vivem essa realidade”.
“O racismo adoece todo mundo. Todos perdemos com o racismo”
Para aprofundar essas relações possíveis entre cinema e educação, numa primeira rodada de bate-papo, se juntaram a fotógrafa e educadora Val Lima, coordenadora de formação do Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias, e Day Rodrigues, cineasta, pesquisadora, escritora, produtora cultural e educadora social.
Val defendeu pensar uma educação para a diversidade a partir da pluralidade de olhares e de uma dimensão poética, porque “uma educação para os direitos humanos não pode ser uma educação universal: branca, masculina, elitista, heterossexual, colonizadora e que mata”, pontuou ela. “A gente não precisa negar a diversidade, ela é bem-vinda como possibilidade de crescimento. Nós olhamos pro mundo a partir de janelas diferentes”. Então, para ela, pautar outros imaginários e perspectivas, respeitando a realidade social e respeitando cada experiência, principalmente dos alunos pretos e alunas pretas, é uma forma de não precisar mais reproduzir essas estruturas racistas.
“O que o silêncio dos estudantes nos conta? Precisamos olhar para as tensões ocultas nos processos de opressão, porque elas atrapalham o processo de aprendizagem”
Já Day reforçou a importância de trazer o audiovisual para a sala de aula, pois é uma oportunidade para crianças e adolescentes criarem narrativas a partir das suas histórias pessoais, dando espaço para o “sentir” na elaboração dos processos pedagógicos. “Contar histórias através do audiovisual faz parte da resistência. A escola deve ser um campo de saberes para a emancipação política de sujeitas e sujeitos”, diz ela.
“O cinema só poderá fazer sentido quando nós, como sociedade, pudermos sonhar e imaginar novas narrativas. E isso começa na sala de aula”
Ela também destacou que, sendo a população negra 54% dos brasileiros, é preciso que “negros e negras existam pelo menos em metade do cinema e contem essas histórias de corpos-memória que resistiram e seguem resistindo para ter uma voz livre”. Além de garantir um acervo plural, a escola precisa “permitir que a criança construa sua própria narrativa, para criar outros imaginários a partir de cada sujeito, e pensar como contar essas histórias de forma propositiva”, arrematou.
Para falar mais sobre os encontros e as oportunidades do cinema no chão da escola, participaram também do encontro a pesquisadora e professora da Faculdade de Educação da UFRJ Adriana Fresquet e o cineasta e arte-educador Felipe Barquete, um dos idealizadores do Semente Cinematográfica.
“Assistir filmes e produzir narrativas plurais dentro da escola tem uma grande potência para subverter as lógicas hegemônicas e desnaturalizar o racismo, o machismo, o sexismo e outras opressões”, diz Adriana sobre a construção de direitos humanos e a desconstrução de padrões hegemônicos. Ela também defende uma participação ativa da criança e do adolescente, de modo que possam “alterar a luz, o ângulo da câmera, imaginar as imagens de outro modo como se fosse de sua autoria aquela produção”. Isso porque os filmes são sempre construídos a partir de um ponto de vista que tem a ver com poder, que não é universal, complementa, mas que ajuda a modelar a “hierarquia de valores e subjetividades”.
Para além da diversidade que deve pautar a curadoria de cinema como experiência intelectual e sensível na escola ao trazer gêneros, formatos, épocas, culturas diferentes para a sala de aula, educadores podem explorar “exercícios para inventar e criar a partir do que vemos e dos recursos que temos à mão, do que é possível fazer dentro do espaço escolar”, recomenda a professora Adriana.
Para Felipe, é a partir da escuta das crianças que é possível trabalhar a linguagem do audiovisual e produzir “narrativas que tragam a possibilidade delas comunicarem suas próprias sensibilidades e afetos”.
Comunicar erro“Quando a câmera vai para as mãos das crianças, elas subvertem todas as lógicas e lugares comuns já estruturados, e passam a produzir a sua própria voz. Essa é a potência da produção do audiovisual no chão da escola”
Perdeu a transmissão ao vivo?
Assista aqui como foi esse primeiro encontro de No chão da escola
… enquanto aguarda chegar a sua segunda edição!
Outras ações com e para educadores e educadoras estão programadas para os dias 25, 26, 27, 28 e 29 de janeiro de 2021.