Meninas da Amazônia ajudam a escrever o futuro da ciência

Em dez anos, mulheres dominarão a pesquisa científica do país. No interior do Pará, meninas ribeirinhas se preparam para ocupar esse espaço por meio da educação

Célia Fernanda Lima Publicado em 03.11.2022
Um grupo de meninas estão de jaleco branco e máscara
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Resumo

Meninas podem ocupar espaços na ciência e na pesquisa desde cedo através da educação. Em vilas pesqueiras no Pará, uma nova geração de meninas ribeirinhas alimenta o sonho de serem grandes cientistas, derrubando as barreiras de gênero e socioeconômicas.

“Psicóloga, pesquisadora, bióloga, cientista”. As muitas possibilidades sobre o que ser quando crescer inspiram meninas na vila do Bonifácio e na vila dos Pescadores, comunidades pesqueiras de Bragança, nordeste do Pará. Yasmin, 12, não pensou duas vezes e respondeu de pronto: “Quero ser bióloga marinha”.

Após um histórico de lutas, esse movimento de novos sonhos compartilhados entre meninas que descobriram que podem ir além do espaço que lhes foi reservado – o de cuidar da casa e da família, via de regra – quebra alguns ciclos de gerações de mulheres que se fixaram na comunidade para viver da pesca. “A minha vida era sair para pescar depois da escola. A gente ia com linha ou com rede. Eu subia no barco com a minha mãe e meus irmãos e, na volta, cuidávamos dos peixes, salgando para vender e alguns guardávamos para comer”, conta Aline Queiroz, mãe de Yasmin. 

Com a mãe, a menina aprende sobre os peixes que vê todos os dias. “Eu sempre fico olhando a mamãe limpando e cortando o peixe. Já conheço alguns como gó, pescada, mas gosto mesmo do bandeirada”, conta. Da avó, ela escuta as histórias de quem conhece a maré e o tempo como ninguém. Pode falar de pesca comigo que a minha mão ainda está pelando aqui de tanto que já trabalhei com isso. Já fiz rede, já fui no mangal pegar sururu, saía para pescar e tirava turu dos troncos. Tudo o que eu sei ensinei para os filhos”, conta dona Gracinha, 72. “A Yasmin é inteligente que só. Acho bom ela aprender, pois é bonito isso o que ela estuda. Sei que vai ser feliz, se Deus quiser”, diz a avó, que agora recebe dos mais novos o que trazem da maré, porque a idade não lhe permite mais sair para pescar.

A educação como catalisadora de sonhos

Yasmin tem hoje o que as mulheres que vieram antes dela não tiveram: a oportunidade e o tempo para estudar. Além de cursar o sétimo ano na escola, ela participa do projeto “Ciência é praia das meninas”, desenvolvido por pesquisadores e estudantes do Instituto Tecnológico Federal do Pará (IFPA), campus Bragança, que está formando a terceira turma. A ideia é despertar o interesse nas meninas da comunidade para o fazer científico com temas pesquisados na região em que vivem, o que a leva a aprender mais sobre a importância de seu lugar e como preservá-lo. “Esses projetos não chegavam aqui quando eu tinha a idade dela. Como tive ela com 20 anos e depois já tive outra filha, parei os estudos. Sei como é importante poder estudar ainda nova. O que ela escolher ser eu vou apoiar”, conta a mãe.

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Célia Fernanda

Filha e neta de mulheres pescadoras da vila do Bonifácio, em Bragança (PA), Yasmin (12) tem hoje a oportunidade de estudar para realizar o sonho de ser bióloga

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Arquivo pessoal

Meninas que vivem nas vilas pesqueiras da região participam do projeto "Ciência é praia das meninas", do IFPA, que estimula o fazer científico na comunidade

Reunidas semanalmente no barracão da igreja da vila, as turmas aprendem sobre ecologia, vida marinha, preservação da natureza, astronomia, saúde da mulher, primeiros socorros, e direitos das crianças e dos adolescentes. Além de fomentar o interesse para a pesquisa na Amazônia entre as meninas ribeirinhas, o projeto atinge outra camada da barreira para o avanço na educação: a situação socioeconômica da comunidade. A maior parte das famílias, que vive à beira do rio e da praia nas vilas do Bonifácio e dos Pescadores, distantes mais de 30 km do centro de Bragança, sobrevive essencialmente da pesca. 

Durante o projeto, meninas que têm suas rotinas de estudo e lazer dentro das vilas, sendo que muitas nunca tiveram oportunidade de conhecer os lugares de pesquisa da própria cidade, visitaram os laboratórios do IFPA, tiveram aulas de campo e curso de informática. “A gente incentiva essas meninas a continuarem o estudo. Infelizmente, algumas ainda precisam parar de estudar porque se casam ou têm filhos muito novas. Quando visitam esses espaços, entendem que podem ser elas ali pesquisando também”, explica o coordenador do projeto, professor Cleidson Gomes.

Mostrar na prática a importância da pesquisa científica aguçou a curiosidade das meninas para valorizar o ambiente que vivem. Marjorie, 12, se interessou pela biologia. Agora, ela ensina para as mais novas e para a família o que aprendeu no projeto. “Temos que preservar a praia porque os peixes podem um dia entrar em extinção por causa do lixo que jogam aqui. Esse lixo pode chegar nos peixes e é dos peixes que a gente se sustenta”, explica. Neiva Martins, mãe de Marjorie, percebe a diferença da filha após os estudos. “A gente nem sabia tudo o que o nosso ecossistema poderia oferecer. Hoje, é a Marjorie que ensina. Ela ficou mais interessada pelas coisas da praia, da vegetação e do trabalho do pai dela, que é pescador. Virou monitora da turma nova”, conta.

Neiva tem mais dois filhos. Além de cuidar da família, trabalha como atendente em uma das pousadas à beira da praia e está prestes a concluir o ensino médio. Inspirada na filha, quer seguir carreira acadêmica. Ela lembra como era difícil ver uma menina sair para estudar fora da vila. “Antes o futuro das meninas aqui na praia era casar, ter filhos e ser uma boa mãe de família. Poucas saíram para estudar. Esse projeto ampliou os horizontes dessas meninas aqui dentro da comunidade, e eu fico muito feliz e realizada de ver minha filha estudando. Sei que ela vai ser o quiser”, diz.

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Marjorie (12) ensina para a família a importância da biodiversidade do lugar em que vivem

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As meninas que participam do projeto sonham hoje em seguir a carreira científica e progredir nos estudos. Todas são de uma geração de famílias de pescadores

Na região metropolitana de Belém, o “Clube do pesquisador mirim”, um projeto do Museu Paraense Emílio Goeldi, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação, também incentiva, há 25 anos, o interesse pela ciência e pela pesquisa entre as crianças. Em 2022, o Clube ofereceu 60 vagas para meninas e meninos do 4º ao 9º ano do ensino fundamental de escolas públicas e privadas da região metropolitana de Belém. Com três turmas anuais, os alunos selecionados estão divididos em frentes temáticas específicas: biodiversidade amazônica, segredos amazônicos e o mundo dos fósseis amazônicos. Além das pesquisas, os participantes têm atividades práticas, como visita ao Museu Goeldi e conversas com pesquisadores. Para fechar cada ano, eles elaboram um produto final (um jogo, uma cartilha ou um kit, por exemplo), a ser disponibilizado no museu para que outras crianças acessem.

Mais meninas na ciência

Incentivar a participação das crianças na ciência é fundamental para despertar novos sonhos. Quando pensamos especificamente nas meninas, entendemos que o esforço para que elas ocupem esses espaços é ainda maior. As mulheres sempre foram minoria no quadro de pesquisadores científicos no Brasil, como aponta um levantamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). De acordo com a entidade, as pesquisadoras totalizam 43% do cadastro nacional. A nível mundial, esse valor desce para 30%, segundo a ONU. Já para os cargos de lideranças, as mulheres aparecem em menos de 10% dos membros da Academia Brasileira de Ciências. 

Alguns dos fatores que colaboram para essa situação é a construção histórica e social de que meninas e meninos possuem papéis diferentes desde a infância.  “Atualmente, existem iniciativas que tentam reverter isso, como os projetos que incentivam a participação de mulheres em áreas majoritariamente masculinas e estudos que mostram as dificuldades em produzir ciência e lidar, ao mesmo tempo, com o peso do trabalho doméstico e da maternidade, e que resulta na desigual produção científica”, comenta Carla Moreira, socióloga do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de Gênero, da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Vale lembrar que o avanço na educação de meninas no país é fruto também da luta dos movimentos feministas, que questionaram a educação desigual”, complementa. 

A situação socioeconômica também influencia na construção desses índices. Meninas de famílias de baixa renda e que vivem em cidades do interior são culturalmente impedidas de avançar em seus direitos à educação porque precisam cuidar da casa, dos irmãos mais velhos ou até mesmo por se tornarem mães muito cedo. Na região Norte, essa realidade ainda é muito forte, comprovada pelos índices de gravidez na adolescência e abandono escolar, que são os mais altos do país. Por isso, quando uma menina da vila sonha em ser cientista, o acesso à educação é transformador na vida dela e de suas famílias. “Para meninas de comunidades rurais ou da periferia, esses projetos são essenciais, porque valorizam os conhecimentos locais e os articulam com o conhecimento científico, mostrando que elas podem fazer ciência a partir do lugar onde estão inseridas e trazer melhorias transformando suas comunidades”, pontua Carla. 

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Arquivo pessoal

Meninas estudando no barracão da vila dos Pescadores sobre a biodiversidade da região. Elas se preparam para, no futuro, serem maioria na ciência

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Arquivo pessoal

"O avanço na educação de meninas no país é fruto também da luta dos movimentos feministas que questionaram a educação desigual", diz a socióloga Carla Moreira

 

A educação baseada em referências é de suma importância para uma construção social em que as meninas possam se enxergar como futuras cientistas, inventoras e pesquisadoras. “Ainda hoje é difícil dissociar a imagem do cientista de estereótipos como de um homem branco, por exemplo. Incentivar dentro das escolas a visibilidade das mulheres na ciência é importante para que as meninas conheçam a atividade e as histórias de mulheres cientistas. Só assim as meninas poderão se reconhecer e se identificar nessa profissão”, ressalta a socióloga. 

Apesar do panorama atual, o índice de mulheres na produção científica é crescente. O CNPq estima que, em uma década, o número de mulheres pesquisadoras vai superar o de pesquisadores do gênero masculino. É para essa virada que as meninas de Bragança e tantas outras interessadas pela ciência estão se preparando. Elas mostram todos os dias que são de uma geração que já nasce quebrando barreiras, naturalizando a ideia de que meninas e meninos podem ocupar os mesmos espaços sociais e que elas podem ser o que quiserem. 

Mulheres cientistas

A extensa lista de mulheres que contribuíram para a ciência e tecnologia revela que desde muito tempo foi preciso resistir. Confira algumas das mulheres que carregaram grandes sonhos quando menina e hoje têm seus nomes marcados na história:

  • Hatexepsute: médica faraó do Egito Antigo que organizava expedições para buscar plantas curativas.
  • Hipátia de Alexandria: contribuiu para os primeiros estudos de álgebra na Antiguidade Clássica, foi professora de filosofia e astronomia, tendo participado de grandes invenções, como o astrolábio (calculadora astronômica) e hidroscópio (aparato de medir líquidos). 
  • Maria Kirch: astrônoma alemã, foi a primeira mulher a descobrir um cometa, em 1702. 
  • Marie Curie: polonesa, ganhadora de dois prêmios Nobel em química e física pela descoberta da radioatividade e novos elementos químicos no início do século 20. 
  • Hedy Lamarr: atriz e cientista austríaca que criou, na década de 1930, a teoria para as tecnologias utilizadas hoje nas redes móveis com Wi-Fi e bluetooth. 
  • Chung-Pei Ma: astrofísica de Taiwan, liderou a equipe de cientistas que descobriu dois dos maiores buracos negros já observados no espaço. 
  • Gertrude Belle Elion: bioquímica americana, venceu o Nobel de Medicina, em 1988, por criar medicamentos para os sintomas de leucemia, herpes e HIV/aids. 
  • Nise da Silveira: médica psiquiatra brasileira, de Alagoas, inseriu o tratamento humanizado a pacientes com transtornos mentais, utilizando atividades artísticas e eliminando os tratamentos agressivos.
  • Jaqueline Góes: biomédica da Bahia, doutora em Patologia Humana e Experimental, foi líder da equipe que mapeou o genoma do novo coronavírus (SARS-CoV-2) no Brasil. 

Fonte: Kovaleski, N. V. J., Tortato, C. S. B., & De Carvalho, M. G. (2014). As relações de gênero na história das ciências: a participação feminina no progresso científico e tecnológico.

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