Mães em defesa dos filhos evidenciam as marcas do racismo

Viviana Santiago compara as histórias de uma mãe preta e de uma mãe branca que defenderam seus filhos do racismo, mas tiveram desfechos diferentes

Viviana Santiago Publicado em 17.08.2022
Marcas do racismo: Foto em preto e branco de uma mãe negra beijando seu bebê negro e intervenções de rabisco em vermelho
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Resumo

Apesar de muito parecidas, duas histórias reais de mães leoas em defesa dos filhos se distanciam ao evidenciarem as marcas do racismo.

Recentemente, assistimos indignados ao trecho de uma gravação que ocupou praticamente todas as mídias: num restaurante na praia, no meio de um grupo de pessoas, vemos uma mulher estapear e confrontar diretamente uma pessoa que havia desferido ofensas racistas contra seus filhos. De pé, dedo em riste na cara da acusada, a mulher vira mãe leoa aos olhos de quem assiste e faz a intransigente defesa dos direitos de sua filha e seu filhos, crianças negras que haviam sido violentadas.

A cena se refere à atriz Giovana Ewbank que se envolveu em uma briga com uma mulher que praticou ato racista contra os filhos Titi, 9, e Bless, 7, em frente a um restaurante em Portugal no final de julho passado.

Meses atrás, o Brasil viu outra cena que coloca crianças negras numa posição parecida. Um vídeo, que viralizou em todas as redes sociais, mostrava uma criança negra de aproximadamente cinco anos de idade vestindo uma máscara de macaco enquanto outras crianças estão em volta e cantam a afirmação “você virou um macaco”. Ao acessar o vídeo, a mãe vira leoa e, inconformada, vai à polícia denunciar o ocorrido. Depois de alguns dias de compartilhamento, a história cai no esquecimento.

Duas histórias que se encontram ao desembrulhar a perversidade do racismo e suas formas de atuação na vida de crianças. As histórias também se encontram ao demonstrar que  crianças não estão imunes ao processo de desumanização e inferiorização em curso nas sociedades racistas. E seguem próximas até o momento em que refletimos sobre a maneira como a sociedade lida com a reação das mães.

O caso de uma mãe que denunciou uma escola municipal da Zona Leste de São Paulo por racismo contra seu único filho de 3 anos no final de maio viralizou na redes. Por meio de um comunicado, a escola pediu que as crianças fossem fantasiadas a partir do tema “circo”. O menino, que é negro, foi para a escola vestido de palhaço, mas, ao chegar na instituição, teve sua fantasia trocada por uma máscara de macaco. Em seu perfil nas redes sociais, a escola publicou vídeos em que duas educadoras e outras crianças cantavam uma música que dizia “você virou um macaco”. O menino não voltou à escola desde o ocorrido e a mãe, que denunciou o caso, agora é processada por calúnia pela escola.

Na sociedade racista e perversa, a mãe do primeiro exemplo é uma mulher branca, seu brado indignado ante o racismo comove por semanas e continua comovendo pessoas no Brasil inteiro que se solidarizam com a sua ira. A mulher mãe branca é alçada à condição de heroína. 

Do outro lado, temos a mãe do menininho fantasiado de macaco pela escola que, como consequência de seu grito de denúncia, recebe alguns dias de atenção, depois o esquecimento e, por fim, a notícia de que está sendo processada pela escola.

O racismo atingiu frontalmente essas mulheres, suas maternidades e suas capacidades de proteger os filhos. 

É a mesma violência, mas por que histórias tão parecidas tomam rumos tão diferentes?

O que não é parecido é o lugar social ocupado pelas duas mães. O que confere autoridade e valida a reação da mãe branca é a branquitude. A branquitude acolhe a sua palavra e lentamente transforma esse episódio não no racismo sofrido pelas crianças negras,  mas na mudança de narrativa que culmina no êxtase da adoração da heroína branca – é seu sentimento, sua reação, sua fúria de mãe/mulher branca que vai se destacar a partir de então. A sua autoridade enquanto pessoa branca é inquestionável ao ponto de ser ela a porta-voz das reações de racismo às violências sofridas por crianças negras. 

Nessa sociedade racista, a palavra de uma mulher negra não tem valor, a construção social de sua imagem a partir do estereótipo de “mulher negra raivosa”, sem noção, é imediatamente acionado para desqualificar a gravidade do fato denunciado. Sua palavra vem de um lugar destituído de humanidade e incapaz de possibilitar a autoridade.

O que viabiliza a comoção social pela dor e fúria da mãe branca parece ser muito mais o fato dela ser branca do que a violência sofrida pelas crianças negras. A reação da sociedade ao processar a mãe negra por calúnia confirma isso. Sua luta para atrair pessoas dispostas a contar essa história revela que, ao contrário da mulher branca, sua dor não tem espaço. A não ser por um punhado de mulheres negras ativistas e outras pessoas sensíveis, ninguém quer saber da sua história, os seus cinco minutos já acabaram.

Desde a escravidão e a lei do ventre livre, nossa sociedade não faz outra coisa senão tentar interditar o direito de mulheres negras maternarem suas filhas e seus filhos.

No país em que a população carcerária mais cresce no mundo, no país em que se mata um jovem negro a cada 23 minutos, quando não se mata e se prende os filhos, tentam encarcerar e silenciar as mães.

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