O afeto e a construção de família em ‘Manhãs de Setembro’

Existem diversos tipos de famílias e nós precisamos ver, pensar e falar sobre isso

Camila Santana Publicado em 02.08.2021
Uma família está sentada em uma sala de aula: a mãe Leide, mulher branca, à direita, está sorrindo; Gersinho, menino negro, ao centro, que olha sorrindo para sua outra mãe, Cassandra, mulher negra e trans, que está à esquerda
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Resumo

Conversamos com a psicóloga Mônica Angonese e com mulheres trans para refletir sobre as famílias e suas novas formações apresentadas pela série “Manhãs de Setembro”, da Amazon Prime.

Lançada em junho de 2021 pela Amazon Prime Video, “Manhãs de Setembro” é a primeira série nacional protagonizada por uma mulher trans. Estrelada pela cantora e compositora Liniker, a obra apresenta, de modo tocante, diversas possibilidades de afeto, em meio a um país cheio de desigualdades. 

A série conta a história de Cassandra, uma mulher trans que trabalha como motogirl e cantora na cidade de São Paulo. Após anos de muita luta, a protagonista acaba de conquistar seu próprio apartamento e vive sua vida com autonomia e certa estabilidade. Mas, um dia tudo, isso vira do avesso quando ela descobre a existência de um filho de dez anos de idade.

Cheia de detalhes realistas, a série reflete o Brasil atual e traz em primeiro plano as vivências da comunidade trans. A obra fala também sobre a falta de moradia, a precarização dos empregos, o preconceito e as dificuldades de viver em grandes centros urbanos. Todas essas questões contemporâneas são fundamentais para gerar identificação com a produção e empatia pelos personagens.

Manhãs de Setembro ganha grande relevância no atual momento político ao trazer uma mulher trans e negra como protagonista, como sugere a psicóloga Mônica Angonese, mestre em direitos, saúde reprodutiva e parentalidades para a população de travestis e transexuais.

“Há uma invisibilidade na vivência da parentalidade por pessoas trans e há, inclusive, uma esterilidade pressuposta a essa população, como se não houvesse a possibilidade de constituição de família e de ter filhos como um direito”

Para Mônica, ao terem filhos, as pessoas trans desestabilizam ainda mais as normas de gênero. “Parece haver um interdito que define quem pode ou não reproduzir, adotar, ou mesmo cuidar de alguém”, complementa.

O Brasil ocupa a primeira posição entre os países que mais matam pessoas trans no mundo, segundo pesquisa divulgada em 2020 pela ONG Transgender Europe. “Sem o reconhecimento enquanto sujeito e sem acesso a direitos básicos, essa população fica ainda mais vulnerável”, explica Mônica.

A diversidade de famílias e de afetos

A narrativa da série traz a família ao centro. Ao longo dos episódios conhecemos uma diversidade de arranjos familiares que vão adicionando camadas à trama: a família de Leide, Gersinho e Cassandra; Grazy e sua mãe solo; o casal homoafetivo Aristides e Décio; a família heteronormativa de Ivaldo e também a união de Renata e suas amigas que moram juntas. “Essa diversidade é importante, porque mostra a realidade: família não é necessariamente uma formação nuclear, cis e heterossexual”, lembra Mônica.

“Família é uma construção. Não é algo que se  restringe a laços consanguíneos, mas diz mais das relações de cuidado, afeto e convivência. Assim, não há um modelo ‘natural’, ‘verdadeiro’ ou universal de família”

Hoje, no país, existe uma agenda política que busca reduzir a noção de família a uma formação específica. Contudo, a série questiona esse paradigma ao construir um enredo repleto de diferentes formações familiares no entorno da protagonista.

Segundo a psicóloga, reconhecer como família apenas a união entre um homem cis e uma mulher cis por meio do casamento ou união estável é excludente. Esse modelo seria restritivo e violento, na medida em que visa retirar a legitimidade de outras modalidades de famílias.

Enquanto acompanhamos a evolução dos sentimentos de Cassandra pelos personagens ao seu redor, somos levados a refletir como o conceito de família pode ser bem mais amplo e bonito.

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Divulgação/Amazon Prime Video

Gersinho, filho de Cassandra e Leide, conversa com o casal homoafetivo Aristides e Décio

A relação entre Gersinho e Cassandra

Além de abraçar as diversas construções familiares, Manhãs de Setembro aborda o convívio de crianças com pessoas da comunidade LGBTQIA+. Gersinho não tem preconceitos marcados, mas nessa primeira temporada ainda está entendendo como se referir a Cassandra. Ao longo dos episódios, ele vai aprendendo com doçura e inteligência a ressignificar sua relação com ela. O arco da relação entre os dois personagens é baseado na busca por serem aceitos, um pelo outro.

“Você é muito bonita, pai” – Gersinho

Mônica explica que para as crianças a diversidade sexual e de gênero parece muito mais natural do que costuma ser aos adultos. “Gersinho compreende que uma mulher pode ser seu pai ou que ele pode ter duas mães e não parece ter questões quanto a isso. Também convive muito bem e começa a criar relações de afeto e amizade com o casal homossexual Aristides e Décio”, pontua.

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Divulgação/Amazon Prime Video

Gersinho e Cassandra conversam sobre sua relação

A construção de afeto entre Cassandra e o filho é um processo gradual e de reconhecimento mútuo. Da parte do garoto, isso acontece de forma imediata: ele reconhece aquela mulher como seu pai. Mônica ressalta que para a protagonista este é um processo mais difícil, mas ela vai descobrindo o sentimento de afeto ao filho no decorrer da série.

“Aos poucos, ela identifica nele características que também são dela e abre espaço para conhecer e estar com esse filho, em um papel que, para ela, ainda parece bem confuso. Ela não se coloca como pai, tampouco como mãe, mas vai correspondendo ao lugar solicitado por Gersinho e Leide. As relações são formadas pela construção.”

Outras realidades possíveis nas telas

Manhãs de ​​Setembro é um drama comovente que convida o espectador a olhar para protagonistas do cotidiano, muitas vezes, marginalizados pela sociedade. O audiovisual brasileiro ainda precisa avançar muito na criação de produtos que contemplem maior diversidade na frente e por trás das câmeras. Ainda assim, a produção dessa série contribui com esse movimento.

 “Que as pessoas entendam que nós, mulheres pretas, pessoas trans, também temos a possibilidade de sermos amadas e de amar. E reconhecer nosso afeto no mundo” – Liniker, em material de divulgação da série

De acordo com a psicóloga, para desconstruir preconceitos e legitimar a diversidade das famílias na sociedade, é preciso reconhecer o sentimento e as relações de afeto em vez de seguir a norma aceita socialmente. As diferenças não podem ser excluídas e invisibilizadas, mas deveriam ser vividas e representadas, inclusive na mídia, porque isso também contribui para a construção de outras realidades possíveis.

O que mulheres trans pensam sobre a série ‘Manhãs de Setembro’

Mulher negra de cabelos longos e pretos, vestindo camisa preta, sorrindo
Alexya Salvador – pastora, coordenadora pedagógica, transfeminista e primeira travesti a adotar uma criança no Brasil

“Manhãs de Setembro traz, antes de mais nada, a vivência de uma travesti negra no Brasil, país que mais mata travestis no mundo. Além de todo sofrimento e a luta pelo direito de ser quem se é, a série mostra também uma possibilidade de construção da identidade familiar por uma mulher trans. Os espectadores precisam refletir que existe uma diversidade de vivências e que a narrativa da série não pode ser entendida como regra. Não existe fórmula pronta a ser seguida por todas as pessoas trans. A obra não fala só sobre a questão familiar, mas também como o corpo travesti é um corpo que ama, que quer ser amado, que quer carinho e ter pessoas caminhando lado a lado.”

Mulher negra de cabelo black power, com a mão direita apoiada embaixo do queixo, usando brincos grandes, lenço colorido e uma jaqueta de couro preta
Matuzza Sankofa – fundadora da Casa Chama e coordenadora do núcleo de práticas de redução de danos do Centro de Convivência É de Lei

“Manhãs de Setembro traz uma reflexão importante sobre o lugar que as corpas transvestigêneres se encontram no Brasil. O lugar de ausência do afeto, ausência da família e também dos conhecimentos e saberes para lidar com essa situação. Também traz uma reflexão sobre o que a gente pode construir a partir dos nossos traumas e das nossas vivências, ressignificando tudo isso em possibilidades de construção familiar. E são tantas as possibilidades de família! A série aborda a possibilidade de começarmos a enxergar as corpas transvetigêneres em um lugar mais humano. E retoma também esse lugar que nos foi tirado: a família – um dos primeiros espaços que as nossas corpas trans são evadidas. A obra é uma contribuição muito potente para entender as possibilidades de trocas afetivas que nossas corpas também podem ter com as pessoas cisgêneras.”

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