Muitos de nós assistimos, atônitos, à profusão de novas versões de um conto que nos contaram às avessas
Alexandre Coimbra Amaral nos convida a pensar, a partir do Carnaval da Mangueira, a história do Brasil: "Enquanto as alegorias verde-e-rosa dançavam através da avenida, lembrávamos que há versões de uma história que nunca puderam ser contadas nos bancos de escola.
Quando recebemos um filho nos braços, passamos a ser contadores de histórias. Não apenas dos livros que temos o imenso prazer em ler para aqueles olhinhos curiosos e sonolentos, na hora de dormir. Somos os portadores da história de como ser gente, de como ser família, de como ser criança, estudante, cidadã ou cidadão. Todas as histórias começam oralmente, a partir de uma pergunta deles ou do nosso desejo de contar-lhes algo sobre a vida. Os diálogos mais lindos que podemos viver com uma criança são sentidos por elas como uma história que se revela, que se decifra dentro do labirinto da existência. Quando estamos dispostos a fazer do tempo juntos um momento para ampliar a forma deles verem o mundo, conseguimos ser os heróis que fazem de poucos instantes um encontro de rara beleza, e de que se recordará sempre. Este foi o Carnaval em que a Estação Primeira de Mangueira, em 2019, nos ensinou a redescobrir o Brasil.
Muitos de nós assistimos, atônitos, à profusão de novas versões de um conto que nos contaram às avessas.
Não fomos descobertos, e sim invadidos.
Há populações inteiras, desde a invasão portuguesa, que foram sendo subtraídas, em número e em grau de visibilidade de sua cultura originária. Enquanto as alegorias verde-e-rosa dançavam através da avenida de queixo caído, lembrávamos que há versões de uma história que nunca puderam ser contadas nos bancos de escola. Há um ponto de vista dominante, majoritário, na maneira de se ver o que o Brasil fez do Brasil. Há vencedores, há opressores, há vozes que puderam contar o que viveram, há outras que só puderam contar os seus mortos. E isto é importante demais para não ser contado para as crianças! Não há como negarmos a elas o direito de conhecerem o país que chamam de seu. Elas merecem a possibilidade de entender nossas raízes, para a partir daí crescerem com o desejo de operar sobre elas. As crianças de hoje precisam aprender sobre nossas cicatrizes, para olharem para ela sem fingir que elas não existem – como nós, os grandes, fomos ensinados a fazer, e sabemos o quanto nos custa desconstruir cada pedaço de desensinamento que tivemos que aprender vida afora.
A Mangueira é o prólogo de um livro que temos que contar.
Um livro composto de inúmeras histórias que ficaram caladas, mas que ainda pulsam nos corpos, nas almas e nos espíritos de indígenas, negros e pobres – aqueles que não conseguem ver ordem no caos em que vivem, nem tampouco progresso no transcurso dos séculos que lhes entregaram silêncio, sombra e desaparecimento físico e cultural. O livro que precisamos começar a contar sobre a história brasileira provavelmente ainda não esteja escrito de forma estruturada, pronto para ser lido e debatido em escolas e famílias que queiram fazer da história uma ação reparatória com as populações oprimidas. Mas, se este livro ainda não existe, se aquele desfile é um primeiro arregalar de olhos, mentes e corações, como contar uma história que não está impressa?
Para isto existe a ideia do lugar de fala – talvez a maior revolução em curso nas relações sociais deste século. A voz branca e hegemônica sempre teve o microfone, o trono, a cara colocada no Jornal Nacional, a autoria dos livros que seriam lidos como a história oficial. Agora isto não existe mais – ainda bem, já que escutar quem nunca falou é dar a todo o território nacional um grau maior de dignidade humana.
A hora é do silêncio dos brancos, como o instrumento mínimo para uma escuta respeitosa.
Aprender a escutar, sem querer explicar, sem querer complementar. Simplesmente escutar. Transformar o lugar de quem sabe num lugar de aprendiz. Fazer da boca que sempre tem o que dizer um coração disposto a escutar a versão da história que esteve na mordaça invisível da moral e dos bons costumes.
Experimente chegar numa livraria, numa biblioteca, e pesquisar literatura infantil escrita pelos três povos da bandeira mangueirense: indígenas, negros e pobres. Há histórias maravilhosas, contadas com o esmero de quem está podendo falar como gostaria de si pela primeira vez na história. Eu sempre sou tomado de uma emoção incontestável quando estou diante de um livro assim. Eu imagino aquela autora ou autor, crescendo sem se ver representado no mundo de quem fala (mídia, lugares de poder político, social e econômico). E eu fico me colocando no lugar desta pessoa, com o coração em pulos, sem saber muito bem como resumir tantos séculos, tantas gerações, tanta ancestralidade, em uma história infantil. E, como pessoas francamente resilientes, estas autoras e autores conseguem extrair de si e de seu povo contos que nos fazem suspirar, pensar, querer agir de forma diferente no mundo. Estas pessoas são Mestras, e nós somos seus discípulos, no ofício de recontar quem fomos, quem somos e assim poder passar a ser outro povo, diferente do que temos sido.
Então tome para si este convite, compre ou peça emprestado livros infantis escritos por pessoas que estão em lugares sociais e históricos absolutamente diferentes dos seus.
Leia para eles sobre as dores e as cores da vida que não é a vida de vocês. Ensine-os, assim, a honrar esta história bendita, sagrada, imprescindível. Quando o livro terminar, aproveite para conversar mais sobre como estas pessoas foram tratadas pela história. Leia biografias para crianças de grandes figuras de que não se fala nos livros oficiais. Leia. Mostre entusiasmo de aprendiz para seus filhos. Aprender com eles pode ser uma aventura deslumbrante, porque outra mentira que nos contaram é que mães e pais precisam saber de tudo. A nossa vontade de aprender sobre a vida é um abraço que damos nos pequenos curiosos, para juntos catarmos pedrinhas históricas largadas no chão da floresta do passado. E, assim, convidar nossos filhos a serem os novos autores da história de um país que abrace, veja, sinta e respeite a diferença, as culturas e o direito de existir plenamente. Esta é uma forma de você fazer Marielle – e todas e todos os que tiveram o mesmo fim que ela – estar presente no quarto dos seus filhos.
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