Maioria das mães de crianças com deficiência deixa de trabalhar

Pesquisa aponta que 70% dessas mulheres interrompem o trabalho; especialistas reforçam falta de acolhimento do Estado e das empresas

Madson de Moraes Publicado em 08.05.2025
Imagem mostra uma mulher de cabelos curts usando camisa xadrex e um menino em uma cadeira de rodas.
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Resumo

Mães que deixaram de lado suas carreiras para cuidar dos filhos com deficiência enfrentam uma rotina exaustiva e a falta de apoio para seguirem a vida profissional.

Elas são chamadas de “guerreiras”, um termo que, mais do que elogiar, mascara a carga emocional e social que essas mulheres carregam. Quem exerce a maternidade de filhos com deficiência tem o direito de rejeitar esse rótulo, pois sabe que a tarefa exige muito mais do que força física ou psicológica.

Com uma rotina muitas vezes atravessada por consultas médicas, terapias, exames e um cuidado constante, a maioria dessas mães precisa interromper a carreira profissional. Mas isso exige uma reconfiguração profunda, tanto da identidade pessoal quanto dos planos de vida.

“Tudo mudou. Meus planos, rotina e minhas prioridades. Antes eu pensava em carreira, viagens, estabilidade. Hoje vivo um dia de cada vez, celebrando cada pequena conquista do Gabriel como se fosse uma medalha de ouro.”

O relato é de Fernanda Deliberali, do Mato Grosso, mãe de Fellype, de 15 anos, Gabrielly, 9, e Gabriel, 2. Ela precisou abandonar a carreira que tinha na área da saúde pública para cuidar do caçula, que nasceu com microcefalia, hidrocefalia e paralisia cerebral. No início, ela tentou conciliar o trabalho com a intensa rotina de cuidados médicos e hospitalizações do menino, mas logo percebeu que não era viável.

“Foi uma decisão que não veio de uma hora para outra, mas foi se tornando inevitável”, conta. Atualmente, ela trabalha como artesã para compor sua renda e mantém um perfil do Instagram, onde compartilha a rotina e desafios de sua maternidade.

Conciliar trabalho e cuidado integral nem sempre é uma opção

Esse abandono do mercado de trabalho não acontece da noite para o dia, pois é reflexo de uma série de fatores que impossibilitam continuar com a profissão enquanto se cuida de um filho com deficiência.

Em São Paulo, a empreendedora Camila Chain deixou o trabalho no mercado corporativo de tecnologia para dar conta dos cuidados do filho Arthur, de 10 anos. Diagnosticado com a síndrome de Cri Du Chat, uma doença genética rara que afeta todo o sistema neuropsicomotor da pessoa, ele precisa de terapias intensivas para qualidade de vida. Por isso, Camila e o marido se viram imersos em uma rotina totalmente diferente. “Tentamos seguir com nossas carreiras, mas percebemos que os cuidados com o Arthur estavam sendo deixados de lado”, conta.

Em um primeiro momento, o marido deixou o trabalho para ficar com o filho. Mas assim que ele completou um ano de idade, optaram por colocá-lo na escola para Camila poder manter o trabalho durante o dia, enquanto ficava com os cuidados noturnos. No entanto, aos três anos de Arthur, ela percebeu que seria necessário interromper a carreira e pediu demissão.

“Notei que, devido à nossa rotina de trabalho, ele estava sem acompanhamento médico e com pouquíssimas terapias”, lembra. “Todo nosso compromisso de oferecer qualidade de vida ao Arthur tinha se perdido na correria. Foi então que decidi que alguma coisa precisava mudar. Sempre soubemos que essa hora chegaria, mas acreditamos que seria mais pra frente”, diz Camila. Ela costuma compartilhar a rotina do filho em um perfil compartilhado nas redes sociais.

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Arquivo Pessoal

Fernanda Deliberali é mãe de três filhos e deixou o trabalho para se dedicar integralmente aos cuidados de Gabriel, filho mais novo, que nasceu com microcefalia, hidrocefalia e paralisia cerebral.

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Arquivo Pessoal

Camila Chain percebeu que a rotina do trabalho não permitia dar mais atenção aos cuidados necessários que o filho Arthur, 10 anos, precisava. “Sempre soubemos que essa hora chegaria, mas acreditamos que seria mais pra frente.”

Abandono da carreira tem raízes na falta de rede de apoio formal

Fernanda e Camila fazem parte de milhões de mães no país que compartilham do mesmo problema: a romantização da mãe guerreira e a ausência de apoio concreto. “Não se trata de superação individual, mas sim de criar estruturas que permitam nossa plena participação social e econômica”, afirma Patrícia Salvatori, mãe de uma menina com deficiência e pesquisadora sobre maternidade.

Segundo ela, o mito da mãe que dá conta de tudo reforça a negligência institucional. “A maioria dessas mães é forçada a abandonar seus empregos formais, não por falta de competência, mas pela falta de condições no mercado de trabalho para adaptar as necessidades dessas mulheres.”

Fundadora da Rede Mães Atípicas, organização de apoio ao empreendedorismo materno, Patrícia comenta os primeiros resultados de seu estudo em curso sobre mães que abandonam o trabalho para cuidar dos filhos. Conforme os dados preliminares, 70% das mulheres interrompem suas carreiras após o diagnóstico ou nascimento de um filho com deficiência.

No entanto, a saída do mercado de trabalho não é a única dificuldade. Salários menores, cobranças mais altas e a constante ameaça de demissão também fazem parte da rotina dessas mães. “Muitas de nós caímos na pobreza”, lamenta Patrícia, ao apontar o impacto financeiro, emocional e social do abandono da carreira. Além disso, existe a falta de políticas públicas voltada para o cuidado.

“O Estado trata a mãe atípica como cuidadora, não como cidadã que precisa trabalhar e tem direitos”. Patrícia diz ainda que a falta de creches especializadas e incentivos à reintegração profissional torna a permanência no trabalho ainda mais difícil.

“Somos potências econômicas subutilizadas e isso impacta diretamente toda a sociedade. A individualização do cuidado interessa a quem não assume suas responsabilidades”, reforça. “A Rede Mães Atípicas existe justamente para transformar essa narrativa porque precisamos incluir essas mães em todos os espaços de decisão, desde conselhos empresariais até formuladores de políticas públicas.”

Quando uma mulher precisa interromper sua carreira para cuidar de um filho, a sociedade perde uma profissional qualificada e a família perde uma fonte de renda.”

Impactos econômicos e questões de identidade

Somente sete anos depois do nascimento do filho Heitor, a acompanhante terapêutica Daiane Gomes, de Niterói (RJ), conseguiu voltar ao mercado de trabalho. A rotina continua puxada, já que o menino tem hemimelia fibular – má formação rara em que a perna pode não crescer tão rápido ou tão longa quanto deveria -, e autismo. Desde o tempo em que precisou parar até agora, ela percebe que não houve grandes mudanças no pensamento social em acolher as mães de crianças com deficiência.

“Ainda vivemos no estereótipo de que somos guerreiras e aguentamos tudo. Na verdade, estamos cansadas, sozinhas e sem rede de apoio. Ainda não existe empatia com a nossa realidade como mães. No pouco tempo livre ainda temos que tentar conscientizar as pessoas”, pontua. No seu perfil no Instagram, Daiane costuma falar sobre os desafios e as vivências sem “romantizar a maternidade”, como diz.

Ela lembra das dificuldades em deixar o trabalho logo depois da licença-maternidade. “Não foi uma decisão fácil, mas extremamente necessária na época. Os gastos eram enormes com apenas um trabalhando. Foi necessário um planejamento para o orçamento.”

Os impactos econômicos na vida familiar afetam diretamente o emocional dessas mães. “Gera um sentimento profundo de injustiça e fracasso porque deixamos de ser ‘profissionais’ para sermos apenas ‘cuidadoras’. Então, perdemos não só a renda, mas parte da nossa identidade”, explica Patrícia Salvatori.

Questionar a identidade é um sinal constante dessas mães, afirma Mariana Bonnas, psicóloga especializada no tema. Ela explica que as pacientes enfrentam exaustão física e emocional, além de um sentimento constante de culpa. “Muitas relatam tristeza, frustração e perda de identidade, com a sensação de vergonha por não conseguirem conciliar todas as demandas da vida.”

Na realidade, se manter no mercado de trabalho é um desafio porque, segundo a psicóloga, muitos benefícios oferecidos às famílias não contemplam as demandas específicas de quem tem um filho com deficiência. “Elas têm uma rotina cheia de terapias, consultas e imprevistos. O acolhimento a essas mulheres precisa se traduzir em ações concretas”, defende.

Como as empresas poderiam acolher?

Patrícia Salvatore explica que seu estudo se baseia no ranking das Melhores Empresas Para Trabalhar, do selo GPTW (Great Place to Work). Segundo ela, “não há nenhuma menção a ações para mães atípicas”. Por isso, a Rede Mães Atípicas lançou um programa para empresas focado em dois pilares.

O primeiro é a inclusão na cadeia produtiva, com a contratação dessas mães como fornecedoras. O segundo é um programa para mães colaboradoras, composto por políticas de trabalho flexíveis, grupos de apoio e mentorias.

Já Mariana Bonnas, que tem experiência em ofertar cursos e palestras para empresas sobre acolhimento de profissionais com filhos com deficiência, diz que conciliar esta maternidade com a vida profissional não é impossível. Porém, depende de um suporte amplo, como mais políticas públicas e empresas com visão humanizada.

“A luta dessas mães é, na verdade, uma luta por reconhecimento e por uma sociedade mais justa e inclusiva, em que o trabalho e a maternidade atípica possam coexistir de maneira mais equilibrada”, completa. A psicóloga reforça os seguintes pontos para as empresas:

  • Políticas de flexibilidade

É essencial que as empresas compreendam que mães de filhos com deficiência lidam com demandas imprevisíveis. Portanto, ter flexibilidade de horário ou a possibilidade de trabalho remoto pode fazer toda a diferença para que permaneçam no mercado de trabalho com dignidade.

  • Jornadas adaptadas

Nem sempre a jornada de 8 horas faz sentido para quem precisa lidar com terapias, consultas ou emergências. Então, oferecer formatos adaptáveis, como poder trabalhar de forma híbrida ou criar sua própria jornada de trabalho dentro das possibilidades são formas de inclusão, que respeitam os limites e as necessidades dessa maternidade.

  • Apoio psicológico

A sobrecarga emocional dessas mães é imensa. Por isso, é importante oferecer um programa de saúde mental com escuta qualificada e acolhimento. É uma estratégia de bem-estar, mas também de retenção de talentos.

  • Incentivo ao autocuidado

Muitas dessas mulheres colocam suas próprias necessidades sempre por último. Quando a empresa estimula pausas, oferece benefícios ligados à saúde e bem-estar, e valida o tempo de autocuidado, ela está ajudando a reconstruir a autoestima e a saúde dessa mãe.

  • Segurança para compartilhar a realidade sem medo de represálias

Criar um ambiente onde a funcionária possa falar sobre sua realidade sem ser penalizada é fundamental. Isso inclui escutar sem julgamento, respeitar as ausências justificadas e não reduzir sua competência à sua condição de mãe.

  • Formar lideranças empáticas

Lideranças empáticas são essenciais para que a inclusão aconteça de fato. Capacitar essas lideranças amplia a visão sobre as múltiplas camadas dessa experiência e desperta uma escuta mais sensível, respeitosa e acolhedora.

  • Humanizar as relações de trabalho

É preciso lembrar que, antes de metas e resultados, existem pessoas com histórias, dores e contextos únicos. Humanizar o trabalho é reconhecer que acolher essas mães também é transformar a cultura organizacional para melhor.

Mães querem oportunidade e não apenas assistência

“Empresas têm medo de contratar mães de filhos com deficiência. Escolas evitam nossas crianças. Amigos somem, vizinhos reclamam, e, na rua, somos julgadas. As cidades não foram feitas para nossos filhos nem para nós”, desabafa Camila.

Assim como ela, Daiane lembra que não existe nada de extraordinário em conseguir atender as demandas na maternidade de uma criança com deficiência. “Somos de carne e osso, sentimos tudo como qualquer outra pessoa. Já ajudaria muito se nos enxergassem como pessoas reais e não como heroínas ou mártires.”

Ao mesmo tempo, Fernanda reforça que, nesse processo de descobertas, o que mais dói não é o diagnóstico, e sim a exclusão diária. “Não precisamos de pena, mas de respeito e apoio. Nossos filhos têm valor, têm potencial e merecem ser incluídos, amados e estimulados”, diz.

Mães de filhos com deficiência: Imagem mostra uma muher abraçando um menino em uma casa.
Daiane Gomes só conseguiu retornar ao trabalho sete anos após o nascimento de Heitor, que nasceu com uma má formação rara. Ela precisou se reorganizar financeiramente após a licença-maternidade.

“Por trás de cada mãe atípica, há uma mulher que sente, que cansa, mas que ama incondicionalmente.”

Dentre os conselhos que essa rede de mães troca, o principal revela que desistir não é uma opção. “Faça o que puder, mas nunca se abandone. Converse com outras mães, tenha um hobby, pois um filho merece também uma mãe feliz”, pontua Daiane.

Já Fernanda destaca que é permitido chorar e pedir ajuda, mas nunca esquecer: “você é a melhor mãe que seu filho poderia ter.” Ao mesmo tempo, Camila orienta as mães a encontrarem algo que faça bem e parear renda ao cuidar do filho. “Grupos de apoio vão te entender. Você não está sozinha, por mais que pareça.”

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