Além de celebrar turnê internacional e o lançamento de um novo álbum, a cantora fala sobre os contrastes que percebe entre sua infância e a maternidade
Enquanto conta as horas para ver o filho, a cantora Luedji Luna desbrava o mundo, valoriza o sossego e se reconecta com a infância.
A chegada do pequeno Dayo, em 2020, firmou a importante ocupação de “mãe” à artista baiana Luedji Luna, 35. Em um passado não muito distante, a maternagem de mulheres negras era negada devido à escravidão e, ainda hoje, se dedicar à maternidade é algo distante para muitas. Se inspirar pela maternagem de Luedji é, antes de tudo, permitir que histórias de pessoas negras não sejam pautadas apenas pela dor, mas conhecer a história dessa mulher que, apesar de ter frustrações como todo mundo e muitos cansaços, se declara uma “preta feliz, sossegada e satisfeita”.
Apesar de cantar desde os 17, seu primeiro álbum “Um corpo no mundo” é recente – foi lançado em 2017. “Bom mesmo é estar debaixo d’água” (2020), segundo álbum de Luedji – que ganha uma versão “Lado B” nesta sexta-feira (25), com 10 faixas inéditas, nas plataformas digitais – marca uma série de produções realizadas enquanto seu filho ainda estava em sua barriga, mas os versos acolhedores da obra também remetem às nuances da sua infância: quando criança, a vida da cantora oscilava entre a violência racial quando pisava os pés para fora de casa e o afeto materno e paterno em uma família preta, que a protegia dessas violências. O mar e roupas vermelhas marcam o conceito estético do disco, com alusões sutis ao útero e seus líquidos enquanto Luedji gestava, mergulhava e cantava sobre dores, afetos e sentimentos vividos em sua jornada.
Eu danço a dança das tuas marés
Eu danço a tua dança
Dayo, hoje com dois anos, embalou os versos de “Ameixa” (2021), música produzida por Luedji e Zudizilla, seu marido. Na canção, conhecemos as preocupações dos pais no exercício da parentalidade, a predileção de Dayo pela fruta ameixa e as alegrias que ser mãe e pai proporciona ao casal.
Perco sono só de pensar
Em algum mal que te alcance
Rezo tua cabeça sempre quando deita
Deus tе proteja
Para conhecer Luedji além da música, o Lunetas conversou com a cantora sobre infância, maternidade e futuro!
Lunetas – Há quase dois anos, “Bom mesmo é estar debaixo d’água” estreou no YouTube. No vídeo, você ainda estava grávida, mas Dayo já completava dois meses em seus braços. O que mudou de lá pra cá?
Luedji Luna – Mudou muita coisa. O contexto que a gente vive hoje mudou, a pandemia não foi boa pra ninguém, exceto pro Dayo que teve pai e mãe disponíveis para ele o tempo todo. Eu sempre quis ser mãe e minha experiência inicial com a maternidade foi em tempo integral. Na medida em que a pandemia foi diminuindo, as coisas abrindo e shows acontecendo, precisei fazer um esforço pra estar perto dele, traçar estratégias pra ele se incluir na minha rotina caótica. Hoje, o grande desafio é me fazer presente na vida dele. É um esforço, um movimento pra fazer essa maternidade ser presente, do jeito que eu quero que seja.
Como você explica a sua relação com a água, elemento que rege o último álbum, e como proporcionar para Dayo mais contato com a natureza?
L.L. – O elemento água está presente no disco por conta de várias referências e acho que fazia todo sentido por falar de amor e afeto. Construí os meus afetos em torno da água, por ser de Salvador, cidade litorânea, e a água vem muito nesse sentido.
Quando preciso fazer viagens longas, deixo Dayo com meus pais que moram em uma cidade próxima a Salvador, mais arborizada, perto da praia, rio… Meus pais deixam ele solto pra brincar! Apesar de ser paulistano, Dayo tem essa graça de ter pais de fora de São Paulo, sempre viajando, entrando em contato com outras culturas e paisagens.
Na música “Ameixa”, você canta “como vou comprar essa fruta tão cara que você gosta?”. Com quais outras dificuldades você se deparou após a maternidade?
L.L. – Acho que o mais difícil foi o adoecimento, que é normal as crianças ficarem doentes quando a imunidade delas está em construção, principalmente as crianças da pandemia que não ficaram muito expostas [a outros microorganismos]. Dayo já teve pneumonia e foi a primeira vez dele internado, tirando sangue, tomando remédio na veia, a experiência mais difícil que eu gostaria de não ter passado.
De que maneiras Dayo te faz se conectar com a Luedji criança?
L.L. – Dayo é muito diferente de mim criança. Ele é muito expansivo, tem autonomia, “poucas ideias”, parece um adolescente. Ele é muito ele mesmo, é gostoso de ver. Mas ele traz um gatilho para mim: eu não fui uma criança muito livre, minha mãe era bastante controladora, e ele é muito livre – deixo que ele se expresse, coma sozinho, ensino a tomar banho, deixo ele subir nas coisas – com observação de um adulto que possa o proteger. Quero que ele se sinta capaz pra ser, pra fazer, esse jeito de educar vai permitir que ele cresça sem medo.
Se eu tivesse oportunidade de experimentar mais coisas na infância, eu cresceria com menos medo.
Seu marido, também artista, é bastante presente na criação do filho de vocês. Como conciliar carreiras e qual é a importância de dividir papéis?
L.L. – Não sei como a gente faz porque a gente ainda tá aprendendo a fazer. Geralmente eu tenho uma agenda de shows e viagens mais robusta e o Dayo fica com o pai, mas também acontece o contrário. Quando coincide de ambos terem a mesma agenda, ele fica com a vovó na Bahia ou vai com nós dois. Além desse cuidado com o Dayo, tem o cuidado da casa, mas sinto que está desequilibrado e precisamos ter mais tempo pra ele. A gente vai descobrindo, não tem muita fórmula de como fazer dar certo. Conforme a pandemia foi acabando e os trabalhos foram voltando, fomos descobrindo novos jeitos de ser pai e de ser mãe.
Durante as turnês, Dayo costuma ficar com os avós. Qual é a importância de ter e manter essa rede de apoio?
L.L. – Importantíssimo e pra gente é novidade, porque num primeiro momento da pandemia não tivemos rede de apoio. Nossos pais não viajaram por nada e eu pari sozinha, só com o Zudi. Agora estamos aprendendo a compartilhar essa criação: tem sempre uma amiga, babá, avós. A gente só conhecia a maternidade em tempo integral e era extremamente cansativo. Agora o Dayo tem até a agenda dele, compromissos dele, tá tudo mais legal, mais leve.
Pensando em educação, o que você espera para o Dayo nos próximos anos? Como foi o processo de escolher creche?
L.L. – Ele está numa escola particular com uma proposta decolonial, que possui pretos no corpo docente e coleguinhas negros. A minha preocupação é sempre a qualidade de ensino, mas não quero que ele seja uma figura única nos espaços onde ele ocupar. Deu muito trabalho pra encontrar essa escola, mas está acontecendo um movimento de pensar antirracismo, cotas… Quando o Dayo for pro ensino médio, espero que esse debate esteja mais avançado.
O que você falaria para a Luedji criança? Como você enxerga a infância hoje?
L.L. – Falaria “Pô nega, tá vendo? Você venceu querida! Não precisa ser tão triste, chorar todas as noites, se sentir culpada, feia, porque você é linda, perfeitinha, você brilhou! A coisa mais linda que seus pais fizeram. Todo mundo tem orgulho de você.”
Minha infância foi boa, com pai e mãe, primos, tios. Pouco tempo depois tive um irmão, coisa que eu mais quis na vida, um presente. Fui feliz, uma infância na rua, subindo em árvore, comendo manga no pé, indo pra praia. Fui muito protegida, bem cuidada e respeitada. Mas óbvio que como uma menina negra, atravessada pelo racismo, houve violência, bullying na escola, privações afetivas. Poucos amigos, zero experiência afetiva na adolescência, mas o saldo é mais positivo do que negativo.
“Foi uma ótima infância, porque a violência só estava lá fora. Lá eu era feia; dentro de casa era só amor, eu era linda. Conforme a gente cresce vai aprendendo a lidar com essas contradições”
Como é criar uma criança negra no Brasil atual?
L.L. – Eu acredito muito no poder da palavra e o nome dele é “Dayo”, que significa “a alegria chegou”, e “Oluwadamisi”, “Deus protege minha vida”. Então, comecei a ter essas preocupações com relação à violência, com o fato que ele seria um menino preto retinto, quando dei um nome forte para ele. Mas ele tá vivo! Isso é o que eu preciso me preocupar: em manter um bebê vivo. Ele começou a ter mais autonomia, ficar mais exposto ao mundo, à vida, mas, enquanto ele só tá grudado comigo, eu e Deus temos condições de protegê-lo.
O que espera para o futuro do seu filho e para as crianças brasileiras? Como começar esse futuro já?
L.L. – Espero que o Estado construa políticas públicas para um futuro em que a gente esteja vivo, apesar de, ao mesmo tempo, ser um projeto de estado exterminar a juventude negra, mesmo antes delas nascerem. As mulheres negras estão negando para si mesmas o desejo de serem mães devido ao racismo, então a gente morre mesmo antes de nascer e nasce desse desejo de continuar. Espero um futuro em que a gente esteja vivo.
“A gente morre mesmo antes de nascer e nasce desse desejo de continuar.”
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