A potência dos livros para uma infância mais afetiva e consciente

O encontro com as palavras favorece relacionamentos que extrapolam as páginas do livro e ajudam a criar novas histórias

Michele Bravos Publicado em 19.07.2022
Sentados, uma mulher adulta lê um livro para um menino. Atrás da dupla, há outras crianças também no chão, que aparecem desfocados. A matéria é sobre livros na infância.

Resumo

O encontro com as palavras desde a infância favorece o fortalecimento de vínculos, a ampliação de consciência social e o desenvolvimento de inteligência emocional.

Ao convidar as crianças para se relacionarem com as palavras – seja por meio de uma leitura compartilhada em silêncio ou em voz alta, seja por meio da contação de histórias a partir de livros para a infância – está se criando uma oportunidade de fortalecimento de vínculos, ampliação de consciência social e desenvolvimento de inteligência emocional. 

Em meio a uma rotina em que as telas se interpõem mesmo entre familiares e crianças, o ato de um adulto parar o que está fazendo, pegar um livro em suas mãos e intencionalmente convidar uma criança para participar desse momento é algo potente, como afirma a professora alfabetizadora e contadora de histórias Samara Rosa. “Diferente de uma tela de celular, você não pode simplesmente colocar o livro na frente da criança e esperar que ela se entretenha sozinha, principalmente com as mais novas”. 

“As histórias proporcionam interação”

A professora fala da potência das histórias não apenas como alguém que estuda o assunto, mas do lugar de quem a vivenciou. “Eu demorei para ter contato com um livro físico, mas tenho certeza que foi por meio das histórias contadas pelo meu avô que fui tendo desejo de ler histórias escritas”, diz Samara sobre as lembranças afetivas da família de tradições afro-brasileiras nas rodas de chimarrão

Ler para ou junto da criança transmite a mensagem de que a criança é importante. “É um momento de demonstração de afeto, em que o adulto não está dividindo o tempo com outros afazeres. Ele está ali, presente”, diz Samara. Nessa triangulação (leitor-livro-ouvinte), o objeto livro é o elo entre eles, um estímulo para que a criança se torne leitora e tenha gosto pela leitura.

Arthur, 9, prova a importância de ser exposto a espaços em que o livro está em destaque. Na casa dele, há muitos momentos de leitura compartilhada. “O meu pai e a minha mãe sempre leem para mim”. Além disso, ele já é leitor de carteirinha da Borrachalioteca, uma biblioteca comunitária em uma borracharia, em Sabará (MG). “Eu me lembro da primeira vez que peguei um livro lá. Foi aí que eu comecei a ler mais”, conta Arthur.

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Arquivo pessoal

Arthur, 9, leitor assíduo da biblioteca comunitária Borrachalioteca sugere que os adultos leiam Peter Pan

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Arquivo pessoal/Borrachalioteca

As histórias contribuem para o desenvolvimento da inteligência emocional e autopercepção. Na foto, autorretrato feito por Arthur a partir de uma atividade de leitura de poesia, na biblioteca comunitária Borrachalioteca, em Sabará (MG)

Foi justamente observando essa relação entre o ato de parar e a leitura que, há 20 anos, surgiu a Borrachalioteca. O fundador Túlio Damascena, filho do dono do local, percebeu que as pessoas ficavam lendo jornal enquanto esperavam os pneus serem consertados. “Se param para ler jornal, por que não podem ler livros?”. Hoje, o acervo é composto exclusivamente por livros de literatura e muita gratidão das famílias pelos livros terem proporcionado mais senso crítico aos jovens.

Consciência social nos livros infantojuvenis

Mesmo um livro cheio de magia parte de uma realidade concreta, como diz o escritor Cristino Wapichana. “No livro infantojuvenil é explorado o tempo mágico, aquilo que encanta a criança. Qualquer que seja a história, ela tem como base algo real e, por isso, ela aflora a consciência social já existente nas crianças”. 

Cristino vivenciou a infância em meio ao seu povo indígena Wapichana e, assim como Samara, lembra que, antes de ser leitor, foi ouvinte. “A nossa tradição oral é muito forte e, na escola, só havia livro didático. Foi marcante quando li um livro [de literatura] pela primeira vez, aos 25 anos. Descobri que a leitura pode libertar, salvar”, afirma. 

É com essa trajetória que Cristino se tornou escritor de livros premiados, como “A boca da noite” e “O cão e o curumim”, em que retrata cenas da vida Wapichana e mitos indígenas. Para ele, uma forma de incentivar o diálogo e o respeito desde cedo, começando dentro de casa, é explorar a mensagem da coexistência da diversidade a partir dos livros infantojuvenis. “A humanidade é a mesma em qualquer lugar. Só existe um mundo e uma humanidade. Levar isso a partir de uma história pode contribuir para diminuir preconceitos”. 

Apaixonada por conto de fadas, Nina, 9, conta que, a partir deles, conheceu personagens muito diferentes dela. “A Branca de Neve foi a personagem mais diferente de mim que já conheci. Ela morava em um castelo e tinha uma madrasta má”. 

As histórias também estimulam conexões entre pessoas diferentes, mostram como resolver um conflito com respeito e como se relacionar de forma afetiva, por exemplo. “Tudo o que a criança aprende com uma história fica em seu subconsciente e irá aparecer, de alguma forma, em seu dia a dia”, diz Cristino.

Exercitando a inteligência emocional

Os livros de ficção trazem histórias imaginárias que sempre deixam uma dúvida: será que isso poderia acontecer comigo? Qual desses personagens sou eu?

Ao ler e contar histórias é como se o adulto estivesse conduzindo a criança por um caminho em que ela terá a oportunidade de exercitar a empatia, que é a capacidade de se identificar com as emoções do outro, e de se conhecer melhor, olhando para dentro de si. 

“Durante a leitura, a criança pode entrar em contato com alguma situação de conflito emocional que ela viveu e essa pode ser uma oportunidade para se trabalhar a inteligência emocional de forma lúdica, ajudando-a a reconhecer as emoções, suas causas, consequências e saber lidar da melhor forma com elas, aceitando seus próprios limites”, diz Samara.

Para Nina, um dos grandes aprendizados a partir das histórias que já ouviu e leu foi sobre o seu próprio valor. “Eu aprendi sobre autoestima. Um dos livros que eu mais gosto é o da Dandara, que é uma heroína que se parece comigo”.

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Arquivo pessoal

Nina, 9, apaixonada por conto de fadas, indica que todos os adultos leiam algum livro sobre a Dandara

Quando uma história desperta emoções (alegria, raiva, medo, tristeza, nojo…), os familiares podem acolher e abrir o canal para o diálogo. Samara alerta que nem sempre a conversa vai acontecer naquele momento, mas é importante a criança saber que tem espaço para falar sobre o assunto. “Várias vezes, já aconteceu de não surgir nenhum comentário logo após o término de uma história. Mas, dois ou três dias depois, a criança me procura e começa a estabelecer algumas pontes com a sua vida. ‘Sabe aquela parte da história? Então, eu não gostei muito’, elas dizem. E a partir dali começamos a conversar”, conta Samara. 

A professora também chama a atenção para o fato de os familiares não usarem o momento da leitura ou contação de história como se fosse um espaço de terapia, uma vez que determinadas questões devem ter acompanhamento profissional, ou ainda como um pretexto para “fazer as crianças se abrirem”, pois isso pode criar uma associação negativa. 

“O momento da história é uma oportunidade de relacionamento e, por isso, deve ser prazeroso para os envolvidos”

Qual é o melhor momento para compartilhar uma história? Samara sugere que não haja apenas “a” hora da leitura. “É importante ler para e junto com a criança em diversas situações. Pode ser antes de ir para a escola, depois do almoço, antes de dormir… Isso mostra que ela tem livre acesso ao livro e ao que as histórias proporcionam.”

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