Se as histórias de vida nos constituem, por que não contá-las às crianças?
Em "Mesma nova história", o encontro entre gerações promove cumplicidade, acolhimento e resgate não só das memórias de família, como também da escuta e da presença.
Uma senhora que se alegra quando vê girassóis, sem saber exatamente o porquê. Um menino que precisou cuidar da avó com perda de memória, enquanto o que gostaria mesmo era continuar jogando videogame. A princípio, “Mesma nova história” (Editora Peirópolis) é sobre esse encontro “forçado” entre gerações, ambas tão pouco ouvidas: os idosos e as crianças. Mas a leitura atenta nos mostra mais, passando por temas delicados e tão comuns à vida, como envelhecimento, morte e ausências.
A avó já não lembrava de quase nada, nem o gesto anterior ou a palavra anterior. Só tinha algo que ela não esquecia: a história de que ela havia sido casada com um almirante e teve 20 filhos. Era isso que ela contava todos os dias e ninguém lhe dava mais ouvidos.
Cumprindo à revelia a tarefa de ficar com a avó para evitar que ela tomasse atitudes duvidosas, como mexer na água do vaso sanitário, o menino também não queria saber de ouvir aquela mesma história de novo e de novo.
Foi quando, como um baú que se abre para a memória, passou a acessar os brinquedos de outras infâncias… Apesar de a história contada pela avó seguir sendo a mesma, o menino fazia novas descobertas ao se aproximar da história de seu pai, tios e avô. O celular e os jogos eletrônicos já nem lhe faziam mais falta.
Ao mesmo tempo, cada pedacinho daquela nova narrativa ia se juntando ao fio de memórias tão vivo para a avó. Percebendo isso, o menino começou a trazer os nomes dos familiares e a avó respondia, conectando mais e mais fios à mesma história, esticando a narrativa familiar.
‘Mesma nova história’, de Everson Bertucci, Mafuane Oliveira e Juão Vaz (Peirópolis) O livro mostra como a convivência entre uma avó com perda de memória e um neto que só quer saber de jogos eletrônicos pode ser ressignificada por meio das narrativas, da escuta e da presença. A contadora de histórias Mafuane Oliveira, do canal “Chaveiroeiro”, incorporou elementos biográficos ao texto original de Everson Bertucci – sua avó teve 20 filhos! – e passou a assinar a obra também. As ilustrações de Juão Vaz trazem referências como o almirante João Cândido, líder da Revolta da Chibata.
O garoto não ganhou o título de neto. Para a avó, ele era um garoto que ela não sabia o que estava fazendo por ali. O que ele ofereceu à avó nenhum dos outros familiares tinha disposição para dar. Talvez, por isso, ele tenha entendido que o que não se soube nomear naqueles encontros era muito mais importante que ocupar um lugar na hierarquia familiar.
Desse encontro, com o tempo, nasceu a cumplicidade. Da escuta do neto se fortaleceu a voz da avó. Aquela mesma nova história alimentou o imaginário do garoto e os fios das novas narrativas valorizaram a ancestralidade. O que pode o encontro entre gerações?
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