‘Lidar com o autismo é cansativo. Amor também cansa’, diz pai

Entrevistamos o escritor Luiz Fernando Vianna, autor do livro "Meu menino vadio", um diário de seu dia a dia com o filho autista

Renata Penzani Publicado em 23.02.2017
Foto em preto e branco mostra menino deitado com a mão no rosto do pai.

Resumo

No livro “Meu menino vadio”, Luiz Fernando Vianna faz um relato hiperrealista da relação com o filho autista e faz um alerta para o preconceito que ainda impera na sociedade. O leitor acompanha uma jornada que é toda permeada por aprendizados, equívocos, insegurança.

“Se eu queria ter um filho com autismo? Não. O que a convivência com ele me proporciona mais: prazer ou angústia? Angústia. Ainda assim, amo meu filho? Mais do que qualquer palavra pode traduzir.”

É de depoimentos desse teor de realismo que é feito o livro “Meu menino vadio” (editora Intrínseca, 2017). Escrito todo em primeira pessoa pelo pai, o jornalista Luiz Fernando Vianna, o livro é uma espécie de diário hiperrrealista de um relacionamento pai e filho do ponto de vista do transtorno: como a relação dos dois nasce, cresce e se desenvolve a cada dia sob a luz – e, muitas vezes, sob a sombra também – do desconhecido que é o autismo.

O livro “Meu menino vadio” é um diário hiperrealista de um pai e um filho, longe dos filtros e das idealizações

É possível que muitas pessoas não queiram passar da terceira linha, a leitura é dura e muitas vezes machuca e repele. Mas, para aqueles que aceitarem o convite, o livro acaba se tornando uma companhia de alento em uma sociedade que costuma esconder o lado sombrio da parentalidade de uma criança com restrições severas.

O leitor acompanha uma jornada que é toda permeada por não entendimentos, equívocos, inseguranças e medos. Não por acaso, Luiz Fernando escolheu como epígrafe do livro alguns versos certeiros de Paulinho da Viola: “as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”.

Conversamos com o autor para entender os desdobramentos do livro na sociedade, e o que podemos fazer no dia a dia para ajudar na luta pela aceitação das diferenças de crianças do espectro autista.

Depois do medo do diagnóstico, a certeza do preconceito

Henrique –  hoje com 17 anos – é fruto de um relacionamento cheio de fraturas, como define o autor. Quando o casamento não deu certo, o casal se separou e os dois foram morar em países diferentes. O pai vive no Rio de Janeiro; a mãe morou na Austrália, e atualmente vive nos Estados Unidos.

Entre o diagnóstico e a guarda compartilhada, Henrique passou por mudanças drásticas – de idioma, de escola, de casa, de temperatura, de país – o que agrava o sentimento de que tudo aquilo que a família faz por ele acaba se revela insuficiente. “Tudo começa, termina, recomeça de outro jeito, termina de novo. Essa é a dificuldade que move todas as demais. Suas relações com parentes e profissionais são sempre interrompidas, e como consequência disso ele confia em pouquíssimas pessoas”, lamenta o pai.

No capítulo intitulado “Agora eu era herói”, o jornalista toca na questão da culpabilização e descreve a angústia de ter que corresponder à figura do “supergenitor”, ressaltando a carga pesada de preconceitos e olhares enviesados com os quais é obrigado a lidar desde que recebeu o rótulo “pai de autista”.

“Criar alguém que tem sérias dificuldades para se adaptar à vida social significa estar em permanente pêndulo: ora querendo confrontar a sociedade que aceita mal seu filho – e, por tabela, renega você – ora desejando, até por necessidade de sobrevivência, ser aceito pelos mesmos que não acolhem bem a pessoa que você mais ama”.

Lunetas: Ao seu ver, a paternidade ideal – isto é, a que respeita a igualdade de gênero na criação dos filhos e divide responsabilidades -, está muito distante da realidade?

Luiz Fernando Vianna: “Tenho a impressão de que os homens estão assumindo maior responsabilidade no cuidado com os filhos. Mas as crianças com deficiência costumam exigir um esforço muito grande, e sei que há pais que não conseguem lidar com isso. Mas há mães que também não conseguem, conheço exemplos. Acho que a paternidade ideal nunca existirá, ainda mais numa sociedade tão machista como a nossa. Mas as coisas parecem estar melhorando. No caso do meu filho, o regime em vigor, de um ano com cada pai, em países diferentes, é péssimo. Eu gostaria, é claro, de não ter de passar um ano inteiro sem ver Henrique.”

O livro descreve a sequência de tentativas mal sucedidas do pai em busca de contornar o transtorno e driblar o diagnóstico. Foram testadas inúmeras terapias – ABP, Floortime, Son-Rise e outras –, centros especializados e profissionais de diversas áreas e linhas de pensamento, na tentativa “desesperada”, como define Luiz Fernando, de lutar contra o inevitável.

Sobre o preconceito, o autor não faz reservas: “Ser pai de uma criança com deficiência significa, para alguém de classe média ou alta no Brasil, perder lugar no grupo privilegiado que não precisa se esforçar para ter seus direitos reconhecidos, diz.

“O luto não é só emocional, mas também social”, compartilha Luiz Fernando

O despreparo

Ao contar a experiência pessoal do menino, o livro chama a atenção para o despreparo generalizado para acolher as crianças com deficiência, que atinge a escola, os outros pais, os profissionais de saúde, e a sociedade em geral.

“Encontrar atendimentos de qualidade é uma luta árdua. Em relação aos médicos, o primeiro desejo nem é encontrar profissionais preparados, uma vez que são tão poucos, e sim não cair nas mãos dos que minimizam apreensões e, em vez de orientações, oferecem arrogância”.

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“A primeira casa em que Henrique viveu era bem perto do mar, no bairro do Leme, no Rio de Janeiro. Essa paixão, portanto, vem desde o berço. Hoje, mora distante. Quando eu digo “vamos à praia”, é difícil ele não se animar. No carro, vai repetindo “má” – ou seja, “mar”, em sua prosódia de autista não verbal”, conta o autor do livro no blog da editora Intrínseca.

Quanto à escola, foi uma série de tentativas frustrantes e reveladoras do quanto a maioria das escolas não está pronta para acolher os pequenos. Para o jornalista, a maioria dos médicos e professores não fazem ideia do que é conviver com o autismo. “Escolhemos uma escola com fachada liberal e práticas conservadoras. Não sabiam o que fazer com o Henrique. Trancavam a porta da sala para que ele não saísse. Mais de uma vez fui embora ouvindo meu filho chorar”.

“Numa reunião, a mãe de outra criança reclamou que não estava pagando mensalidade para seu filho dividir sala com um menino que ainda precisava de babá. A calhordice humana não falha.”, conta.

Lunetas: O que falta para a sociedade acolher e respeitar o autista (falando especificamente da criança) como ele é?

Luiz Fernando Vianna: Essas “sessões azuis”, de cinema, são ótimas iniciativas, porque preparam as salas para as pessoas com autismo se sentirem bem. Mas também é preciso que os pais de crianças neurotípicas (ainda chamadas de “normais”, infelizmente) aceitem melhor a companhia de crianças com autismo nos eventos. Nossos filhos, por seus comportamentos fora do padrão, costumam ser olhadas com muita estranheza e até rejeitados em lugares públicos. Entendo o desconforto, mas custa as pessoas perceberem que o incômodo delas é muito menos importante do que o direito de nossos filhos a uma vida social? Com mais informação disseminada pela sociedade, as resistências diminuirão.

Autismo sem filtros

Luiz Fernando não concorda com a suposição de que ter um filho com deficiências ou limitações é uma benção, como afirmam alguns pais, pois acredita que esse ponto de vista desconsidera o principal envolvido na história, a criança.

“O discurso da bênção costuma descambar para o da superação, esse conceito que a imprensa – sobretudo a TV -, transformou em um pegajoso clichê”, diz o pai

“Exaltam-se as vitórias individuais, aquelas que ocorrem contra tudo e todos, como se bastasse força de vontade para conquistar qualquer coisa. (…) Enquanto existir, Henrique precisará ter alguém por perto. Todos os minutos de todos os dias. Não vejo isso como benção para ele, mas como condenação”, defende Luiz.

O autor relembra histórias que se tornaram verdadeiras odes à superação, livros como “Longe da Árvore” e textos famosos como “Bem-vindo à Holanda”. Mas, em todas elas, detecta um excesso de filtros e eufemismos.

“Me incomoda nas chamadas feel good stories a impressão de assepsia, de que os sofrimentos sucumbiram à determinação e à inevitável vitória. Quase não há desespero, ódio, desejos suicidas. Quase tudo recende a amor, e isso não me parece crível”, diz.

“Sei que há quem me veja, antes de tudo, como pai de autista. É um rótulo que não me incomoda, mas no qual nem sempre me reconheço”.

(Trecho do livro “Meu menino vadio”)

Lunetas: O grau de realismo dos relatos do livro é muito forte, diferente de outros sobre o assunto, as tais ‘feel good stories‘. Você recebe algum retorno das famílias sobre essa abordagem?

Luiz Fernando Vianna: Até agora, o retorno tem sido maciçamente positivo. Mas tenho certeza de que o livro incomoda certos pais. Se eles não me escrevem, é por pudor ou para evitar um desgaste. O livro não foi feito para ser consolador. Acho o autismo algo muito difícil de se lidar, não considero uma bênção ser pai de uma pessoa com autismo e creio que expor essas dores é uma forma mais eficaz de encarar a realidade.

Luta pela cura x Luta pela diversidade

Quando se trata de entender o espectro autista, os militantes, pesquisadores e até mesmo as famílias se dividem em duas correntes opostas: de um lado, os defensores da cura a qualquer custo, como o casal americano que criou o movimento “Cura para o Autismo Já”; do outro, os que lutam pela neurodiversidade.

Para o segundo grupo, a luta não é só pelo aceitação do “diferente”, mas principalmente contra a ideia de “normalidade”, que joga para o campo da deficiência qualquer pessoa que não se enquadre nos padrões estabelecidos. “Autistas, esquizofrênicos, bipolares, etc, precisam ser reconhecidos em suas especificidades, e não curados”.

O autor do livro não se filia a nenhum dos dois, mas admira a definição de Ana Nunes no texto “Bem-vindo a Beirute”. “Para ela, ter um filho autista é ser atirado, sem treinamento prévio, numa zona de guerra. A vida ainda terá belos momentos, mas nunca mais haverá paz.

“Meu filho nunca saberá a dor e a delícia de ser o que somos. Mas quem sabe?”

(Trecho do livro “Meu menino vadio”)

Um livro como este não quer encontrar soluções, mas compartilhar desconhecimentos. Ainda assim, como pai, Luiz Fernando aponta para um caminho possível para alcançar a tão sonhada empatia em relação às crianças e famílias que vivenciam o espectro autista. “Não é possível separar a criança do seu autismo”, diz o militante americano James Sinclair: “o autismo é uma maneira de ser”.

Lá pelo final do relato, o autor faz um apelo para a paternidade real, que, para ele, não é nada parecida com os relatos de autoajuda cheios de meias verdades. “Pai de autista sofre um bocado. No entanto, ama demais também. Em silêncio, gritando ou escrevendo, ofereço minha dor e meu amor para os que estão abertos para aceitar Henrique”. E, em outro trecho, compartilha a única conclusão possível:

“O fato de um pai desejar que o filho não tivesse o transtorno e até sonhar com a cura não quer dizer que ele não ame o filho. Lidar com o autismo é extremamente cansativo. E o amor também cansa.”

 

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