Lagoas do Norte: apagamento dos espaços de convívio e do brincar

Conheça a história de famílias e crianças obrigadas a deixar os lares, os amigos e os quintais onde brincavam para dar espaço à ‘revitalização’ de Teresina

Diego Noleto Publicado em 24.03.2021
Mulher de cabelos negros e cacheados, usando vestido florido, apoiada em uma parede que diz Lagoas do Norte pra quem?
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Resumo

No Poti Velho, zona norte de Teresina, famílias deixam suas casas dando espaço ao programa Parque Lagoas do Norte. Planejado como lugar de lazer e convívio, a iniciativa traz problemas à comunidade ao fechar espaços tradicionais de convívio e brincadeiras.

Pelo portão gradeado vê-se um corredor entre duas casas coberto por telhas de amianto. No pátio interno, há portas – algumas escancaradas – em uma área aberta com chão de cimento, chinelos, brinquedos e jarros de plantas espalhados. Antes de sair para o sol, Yasmin diz: “Aqui é a Vila do Chaves!” Nome engraçado, mas é realmente como se chama o lugar. Ela, então, mostra a última casa, que estava pronta para nos receber: porta aberta, sofá, TV ligada no BBB. 

Há quatro meses. Yasmin Suellen Lopes de Souza, 16 anos, voltou a morar na vila com o pai e a madrasta, naquele lugar de portas familiares: as portas eram as casas dos seus seis tios que viviam ali. “Se falta a panela aqui é só gritar e pedir do lado.” Yasmin foi, num passado não tão remoto, uma das crianças, que cresciam e brincavam no terreno atrás da casa. 

A vila, que abriga três gerações da família de Yasmin, fica na Avenida Boa Esperança, que margeia o Parque Lagoas do Norte, na região do Poti Velho, zona norte de Teresina (PI). A região é uma das mais antigas da cidade, com 167 anos, considerada a pedra base da capital piauiense. Esta vila de portas abertas e vizinhança amiga, que abrigava pequenos correndo descalços, passa hoje por um complexo processo de transformação social e urbana.   

A região está localizada dentro da área afetada pelo programa Lagoas do Norte, um projeto gigantesco que começou há 20 anos com o objetivo de promover mudanças na estrutura socioeconômica e urbanística da cidade. De acordo com a página oficial da MPB Engenharia, empresa responsável pela execução da obra, “o programa beneficiou mais de 112 mil moradores, em uma área de 1.311 hectares”. Segundo investigação realizada pelo portal Marco Zero, o investimento é de 176 milhões de dólares, com financiamento do Banco Mundial e participação de recursos da Prefeitura Municipal de Teresina e do Governo Federal através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

O local é parte importante para o turismo da cidade, que durante muito tempo se deteve em dois eixos principais: o Polo Cerâmico Artesanal, com  venda e confecção de produtos feitos de argila, e o Parque Ambiental Encontro das Águas, dos rios Poti e Parnaíba, que dividem Piauí e Maranhão. Em seus nove anos, o Projeto Lagoas do Norte veio para suprir e incrementar a carência do apelo turístico, na forma de intervenção urbanística em áreas ambientalmente vulneráveis. Isso afetou, principalmente, as famílias ribeirinhas,  por viverem em uma região considerada de risco e forçadas a um realojamento para lugares mais afastados, impactando os laços comunitários, suas memórias e tradições.

Raimundo Pereira da Silva Filho, vazanteiro, turismólogo, professor de História e morador da Avenida Boa Esperança vê essa mudança de forma nociva, pois um dos problemas é que o projeto avança sem ouvir a comunidade e sem um estudo adequado para se manter o que ali se construiu. “As rupturas provocadas por esses grandes projetos têm afetado de maneira geral as comunidades”, afirma.

Ao olhar a sala da casa e as prateleiras com vários aparelhos eletrônicos pela metade, motores e telas de TV com rachaduras, fica um sentimento forte de que algo se rompe gradualmente, ao som de picaretas quebrando calçadas, furando quintais, rachando o solo e o peito de alguém em algum lugar. 

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Foto: Diego Noleto

As famílias que vivem na Vila do Chaves, no bairro Poti Velho, zona norte de Teresina, correm risco de serem realojadas a outro local

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Foto: Diego Noleto

As famílias que vivem na Vila do Chaves, no bairro Poti Velho, zona norte de Teresina, correm risco de serem realojadas a outro local

A vida se fez ali

Na porta da casa de Yasmin, aparece um garoto alto e magrinho. Recusa-se a entrar, dando as costas, fugindo nervoso e tímido. “Meu primo”, ela diz, e sai para chamá-lo. Alguns minutos depois, Ícaro, 11 anos, volta trazendo a mãe e senta no outro lado da sala. Como tantos meninos da sua idade, gosta de jogar bola. Há espaços como o quintal, a praça na frente da casa e o parque Lagoas do Norte, a menos de doze metros de distância. Quando perguntado se frequenta o local, é a mãe quem responde: “Já fomos mais. Hoje evitamos, por causa dos furtos, jovens usando drogas e não há muita segurança policial”, explica Carlúcia Francisca de Souza. 

Ela é uma dos seis irmãos que vivem na Vila do Chaves e mora ali há vinte anos. “A família se fez na vila”, diz, mostrando a serigrafia do irmão a alguns passos da casa, assim como a loja de material de construção lá na entrada, pertencente ao pai. É também na vila que nasceram seus filhos, Ícaro e Miguel.

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Foto: Diego Noleto

Na Vila do Chaves, um quintal compartilhado para crianças brincarem livres

Ícaro afirma que prefere permanecer no local. “Tenho tudo!” Ele gosta do espaço e do lugar onde nasceu: “dá pra brincar e aqui a gente se sente mais livre”. Mas é justamente essa liberdade que está em risco. 

Miguel, hoje com 8 anos, engatinhava pelo quintal de casa quando nasceu o programa Parque Lagoas do Norte. Os quintais são parte das casas que possibilitam o ajuntamento familiar e comunitário, construindo o vínculo social. 

Mas esse vínculo aos poucos desce as margens das casas ribeirinhas e uma hora vai afundar.

“Há os vínculos criados e os lugares para brincadeiras, algumas que as crianças praticam nas ruas e nos quintais. Elas estão perdendo os laços e essas experiências”, explica Maria Lúcia de Oliveira, líder comunitária, que já foi oleira, trabalhou em vazante, horta, ceramista, pescadora… foi tudo. Sua voz é a mais retumbante sobre as dificuldades dos moradores e, nesse momento, traz o tom do desalojamento. Para Lúcia, a revitalização do local talvez tivesse início, de fato, em 2014, quando chegou à casa de sua mãe, na comunidade, e viu estampado na porta o selo da prefeitura.

A obra prevê o remanejamento de parte das famílias para outras habitações, como resultado do processo de reestruturação do local. Entretanto, tem ocorrido diversas discussões sobre esse assunto devido a necessidade de reassentar involuntariamente as famílias.  Estima-se que nessa segunda fase do programa seja necessário o desapropriamento de 1.730 imóveis, o que impactará 2.180 famílias. Mas palavras como revitalizar, requalificar, remodelar podem ter um sentido diferente. “É uma nova colonização, acontece em muitos outros territórios, e agora institucionalizado e patrocinado por todas as instâncias de poder”, enfatiza Lúcia.

A mulher fala, sacode o livro “Escravidão”, de Laurentino Gomes, cumprindo, segundo ela, sua missão, que é defender o seu território. “O lugar já foi desterritorializado várias vezes. Meu pai e minha avó passaram por isso e, no passado, minha raiz foi desterritorializada na África. São feridas que continuam abertas.”

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Foto: Jairo Moura/Rumos Itaú

Maria Lucia de Oliveira, moradora da Vila do Chaves: diz ser aluna de Paulo Freire, e movimenta muito os braços enquanto fala. “Esta obra é uma nova colonização!”

Um quintal de tradições, histórias e lembranças

Francisca das Chagas de Oliveira Sousa, também moradora da Avenida Boa Esperança, mostra o quintal e explica que a grande diferença entre sua infância e a da filha Heloise, 10 anos, é a presença dos muros. Antes, havia apenas a cerca usada para demarcar território e proteger os animais criados pelo pai, mas era uma área para o brincar livre no terreiro com os vizinhos. 

“A cidade não foi pensada para criança”, é o que diz Isabel Jardim, da sala da sua casa. A professora e educadora vive com a família num sítio que é junção territorial de três bairros (Olarias, Mafrense e São Joaquim), na região do Poti Velho. O esposo nasceu ali, no berço de uma das famílias mais antigas daquele local. Ele é filho genuíno da terra onde cresceu e se criou com brincadeiras de rua, de mato, de lama. “Depois de morarmos um tempo fora, voltamos por uma necessidade de resgatar essas coisas que a gente via por aqui”, diz.

“Essas coisas” a que se refere são as brincadeiras e o convívio no quintal, e fala do filho, que “já não brinca muito na rua, mas com outras crianças que vivem aqui no terreno que dividimos com os parentes”. O remanejamento das famílias afetou os vínculos. “Muitos deles reclamam que os colegas vão embora”, comenta Isabel. 

“É preciso pensar que um dia esses quintais deixarão de ser visitados”

O espaço hoje é o das praças e dos parques, um lugar onde as pessoas vão se encontrar no final da tarde. “É importante, sim, que haja espaços onde se vai, a exemplo de tantos parques aqui na cidade, mas é muito diferente desse nosso próprio quintal”, diz.

Numa visita às casas é fácil encontrar idosos e crianças. O Poti Velho é lar de famílias ribeirinhas que nasceram às margens do rio Parnaíba. São as chamadas famílias tradicionais, que vivem em casas que abrigam duas ou mais gerações, o que torna comum a herança social e profissional, como a pesca, a olaria, as hortas comunitárias, os trabalhos compartilhados, a troca de favores e do cuidado com os vizinhos e as crianças. 

“Patrimônio são os laços, os afetos, o território” – Maria Lúcia de Oliveira

 “Ali é de onde elas tiram boa parte do seu sustento e estabelecem relações muito profundas”, explica o cientista social e antropólogo Lucas Coelho Pereira. Muito mais que morada e sustento, e de uma rede de comércio e serviços, segundo o pesquisador, o lugar é base para “relações pessoais e afetivas bastante longas. São famílias que convivem há 50 anos e estruturam redes de cuidado e solidariedade essenciais entre vizinhos, parentes, amigos, comadres, compadres e familiares”, acrescenta.

Essa política de reassentamento sem levar em conta as dinâmicas socioculturais, contribui para a perda dos seus elementos culturais mais imediatos, como a prática do bumba meu boi, já que depende essencialmente da vida em comunidade e de seus brincantes, jovens e crianças. Se os brincantes são desapropriados para outras regiões, “um importante lugar de diversão e brincadeira desaparece”, diz Lucas. 

“Com as desapropriações forçadas, a própria relação das pessoas com a terra, com o rio e com o território é prejudicada. É um lugar que abriga pessoas descendentes dos primeiros povoadores de Teresina”, explica.

Quando as máquinas perfuram a terra

Quando há vinte anos as máquinas do programa Lagoas do Norte começaram a girar, as praças e as lagoas se tornaram atrativos turísticos.  Em algum lugar uma pá entrava na terra. 

Mas parece que quebraram forte demais, que a pá entrou fundo demais.

No site da Secretaria Municipal de Planejamento, as informações sobre o Parque Lagoas do Norte mostram rostos felizes com o lugar que escolheram para morar. Mas chegaram os custos. O conceito de “melhoria do modo de vida” da população teve como plano remanejar moradores a outros lugares. A política é a do realojamento, a afirmativa é de dar um lugar melhor para se viver.

“Não há essa questão de higienização ou que estamos tirando à força. Pelo contrário, o que estamos fazendo é dar dignidade às famílias que moram em situação de vulnerabilidade social e habitacional”, defende Jorgenei Alves de Moraes, coordenador do Parque Lagoas do Norte. Há, acima de tudo, a preocupação com o fazer social que zela, segundo ele, pelas pessoas que estão ali na ponta e que são mais necessitadas.

“É preciso trabalhar bem a política que se preocupa com atendimento às crianças, assim teremos uma sociedade muito mais equilibrada e um cidadão mais sensível às causas socioambientais da cidade”, defende.

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Foto: Diego Noleto

Os primos Maria Alice, 9, e Miguel Ângelo, 8: a vida se faz no convívio e nas brincadeiras no quintal

Segundo o coordenador, são muitos os benefícios em consequência da reestruturação do lugar, principalmente na ampliação das áreas de lazer em paralelo com a redução das áreas de risco. No site da prefeitura, há o calendário anual de atividades que incluem festival de cultura e teatro, colônia de férias, eventos de saúde e de esporte e as CMEIs (Centros Municipais de Educação Infantil). “Há crianças matriculadas nas creches em dois turnos, são mais de mil delas atendidas com interferência direta do parque.”

É preferível um veículo se quiser conhecer todo o lugar, mas troque o automóvel por tênis e dando uma volta ao ar livre se vê uma semelhança agradável com os parques da cidade e seus playgrounds, equipamento de ginástica, palco e uma guarita de segurança. O lugar agrega diferentes idades e crenças e é fácil se deparar com crianças empinando pipa, adultos conversando e idosos praticando zumba. 

Apesar dos avanços, ficam também os desalojamentos, o preconceito de viver numa região periférica e as crianças que perdem quintais, histórias e vivências.

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