Mais velho de uma família de quatro irmãos, Itamar Vieira Junior gostava de imaginar mundos quando criança. Agora, com sua estreia na literatura para a infância, “Chupim” (Baião) convida o leitor a conhecer a realidade do campo. Assim, de forma sensível, ele e a artista visual Manuela Navas colocam sob o olhar do menino Julim questões que marcam um Brasil de desigualdades.
O livro, dedicado aos enteados e às sobrinhas – seus primeiros leitores -, retoma o universo retratado no romance “Torto arado” (Todavia, 2019), e narra uma história real de quando atuava entre os trabalhadores rurais como servidor público do Incra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Seu desejo é que as crianças do campo – que são muitas – se sintam representadas.
Aquele dia começou para Julim antes mesmo do amanhecer. Seria sua primeira vez nos campos de arroz, junto dos pais e de outras crianças. Seu trabalho? Espantar as pragas. Depois do sucesso de “Torto arado” – que venceu os prêmios Leya, Oceanos e Jabuti e já foi traduzido em mais de 20 países – Itamar Vieira Junior convida os leitores em sua estreia na literatura para a infância a olhar a vida no campo. Mas a narrativa vem sob a perspectiva de uma criança, em contraste com a visão dos adultos.
Nesta entrevista exclusiva para Lunetas, Vieira Junior conta sobre a construção dessa história que aborda temas importantes para entender o Brasil, os desafios de escrever para a infância e seu percurso na leitura e escrita, que começou bem cedo.
Itamar Vieira Junior para crianças
Lunetas – De que forma seu primeiro livro destinado às infâncias conversa com a sua obra
Itamar Vieira Junior – “Chupim” é parte do universo que estou contando, que começou em “Torto arado” e reflete a relação de homens e mulheres com a terra, como um aspecto importante da dimensão da vida humana. Afinal, não há vida se a gente não tiver um chão para pisar, uma casa para morar, uma rua para trafegar ou campo para trabalhar. Talvez seja o direito mais elementar de qualquer pessoa e muitos são privados disso, né?
E como você criou a história de “Chupim”?
IVJ – Ela nasce de uma história real, que ouvi nos campos como servidor público do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e que está em “Torto arado”. No romance, conto das crianças que vão para a Fazenda Água Negra com suas famílias e são bem-vindas nos campos porque espantam as pragas, que são os pássaros chupins. Isso é contado sob a perspectiva de uma mulher adulta, que está lembrando da infância. Quando recebi o convite para escrever um livro infantil, quis contar esse episódio a partir do olhar da infância. Então, que leitura a criança faz do que é uma praga para os adultos? Como ela enxerga a realidade em que vive?
Foi um desafio escrever um texto direcionado às infâncias?
IVJ – Foi! Uma coisa é escrever para jovens e adultos, para quem escrevo há um tempo. Já para as crianças, era preciso apurar a minha linguagem, escolher as palavras mais adequadas. Também relembrei a criança que fui e as histórias que me encantaram. Foram três anos pensando nesta narrativa, ia e voltava no esboço entre as viagens para divulgar os outros livros. Quando encontrei uma brecha para me dedicar, a história saiu em um mês. Confesso que estava com receio, mas as crianças ao meu redor foram as minhas primeiras leitoras e se identificaram com a história. Depois, ao ver as ilustrações da Manuela e o livro tomando forma, um portal se abriu. Ou seja, comecei com um pouco de medo e terminei com vontade de escrever mais. Já penso em projetos futuros para as crianças.
Só precisei ter escuta e atenção para colocar a vida de Julim e Chupim no papel.
O livro aborda temas que ainda são realidade no Brasil, como a desigualdade social que leva ao trabalho infantil. Como era a infância que você observava nas visitas aos territórios durante sua atuação no Incra?
IVJ – Eram infâncias carentes de muita coisa, de escola e transporte para chegar até ela, por exemplo. Mas, na mesma proporção, levavam a vida com muita criatividade, liberdade e cheia de experiências de aprendizagem. Muitas crianças precisavam trabalhar para ajudar as famílias, mas se o trabalho não retirava o tempo de estudo, parecia não ser um fardo. Desde muito cedo, os pais ensinam coisas importantes para aquele contexto, que tem relação com os ciclos da natureza. Por outro lado, há crianças que não conseguem ir à escola e trabalham em situações degradantes, como as carvoarias. Nem todas as famílias têm terra e muitas precisam se sujeitar a trabalhos precários e mal remunerados para sobreviver. Foi essa a perspectiva que trouxe em “Chupim”.
As crianças me revelavam o campo como um lugar de aprendizagem.
Julim, o protagonista, olha para o que vivem os adultos e as crianças nos campos de arroz com certa inocência e até inventividade. É um convite para seguirmos acreditando na infância?
IVJ – Ah, com certeza! Eu tenho uma enorme esperança nas nossas infâncias. Afinal, é a continuidade da nossa existência. Como uma mudinha que a gente leva para casa, precisa adubar, regar, colocar no sol o tempo suficiente para ver crescer. Precisamos reservar tempo para as crianças e oferecer a elas o que temos de melhor, para que cresçam fortes. As crianças de hoje serão os professores, políticos, pensadores amanhã, né? Nesse sentido, é importante que desde cedo tenham contato com a nossa história e com as nossas diferenças. Isso porque é delas que virão as soluções para muitos dos nossos problemas. Precisamos fortalecê-las e educá-las, para que estejam preparadas.
Para compor a narrativa, texto e imagem entram em diálogo. Como foi o processo criativo com a Manuela Navas?
IVJ – Depois de finalizar a história, veio o desafio de encontrar alguém para criar as ilustrações. Já conhecia o trabalho da Manuela Navas e tem algo na arte dela que conversa bastante com o que a narrativa traz, que é o movimento. Os trabalhadores no exercício ou na migração, os pássaros em revoada, os campos de arroz, por exemplo. As telas que ela fez trazem profundidade e movimento e, assim, enriqueceram muito o texto. Conversamos para ela se aprofundar nos detalhes da vida no campo e, a cada tela que chegava, eu me encantava. Por fim, o arremate veio com o projeto gráfico de Giulia Fagundes e Thaíse Amorim. Quando peguei o livro nas mãos pela primeira vez, me emocionei.
O que você espera que a obra leve às crianças, em especial as que vivem nas grandes cidades e pouco acessam ou conhecem sobre as tantas realidades do nosso país?
IVJ – Para as crianças da cidade, “Chupim” dá uma dimensão da vida além das metrópoles. Pode mostrar que há pessoas trabalhando no campo para que o alimento chegue à nossa mesa. Dizer das profundas desigualdades no país, em que algumas pessoas vivem sem terra e sem casa, e precisam migrar de um lugar para o outro para sobreviver. Além das questões sociais, outro ponto que o livro traz são os ciclos da natureza e da vida. Para as crianças do campo, que são muitas, espero que se sintam representadas.
Como foi a sua infância, Itamar?
IVJ – Minha infância foi como a de muitos meninos dos anos 1980, em Salvador. Sou o mais velho de quatro irmãos, todos homens. Mas a diferença de idade não era muito grande e nós brincávamos juntos, com os amigos da vizinhança. Naquela época, havia uma certa liberdade. Brincávamos na rua até o sol se pôr. Era todo tipo de brincadeira, mas só para futebol que não levava muito jeito. Eu gostava também de criar histórias e de brincadeiras em que imaginávamos mundos.
Em uma entrevista, você contou que a escrita já fazia parte da sua vida quando criança, tanto que até ganhou uma máquina de escrever. Sobre o que você escrevia nessa época?
IVJ – Meu pai não tinha muito dinheiro, então me comprou uma Olivetti Lettera 82 à prestação. Ganhei no Natal, aos 11 anos. Esse modelo nem existe mais hoje em dia. Eu lia muito e escrevia. Lembro que fiquei tão fascinado por um livro que queria fazer um também. Era “O caso da borboleta Atíria”, de Lúcia Machado de Almeida. Então, escrevi uma história com insetos e outros animais, tentando imaginar a vida deles. Talvez tenha sido o primeiro texto que escrevi de forma estruturada, com começo, meio e fim. E foi com essa Olivetti que meu pai me deu.
Então você se tornou leitor com os livros da série Vaga-Lume?
IVJ – Sim, me formei leitor com a coleção. Não tinha os livros em casa porque não dava para comprar. Meu vizinho, o Raimundo, estudava numa boa escola que tinha biblioteca, então pegava emprestado, eu lia e devolvia para ele. Por isso, eu ficava ansioso esperando a hora de ele chegar da escola com um livro para me emprestar.
E dos livros que leu, tem um preferido?
IVJ – É difícil escolher um porque meu gosto era muito eclético. Lembro que gostei tanto do “Éramos seis”, da Maria José Dupré, que li quatro vezes. Achava a história daquela família parecida com a de muitas pessoas. Luiz Puntel era outro autor que me atraía. Ele me introduziu ao universo político com “Açúcar amargo”, que falava dos trabalhadores sem terra, os boias frias, e dos exilados da ditadura militar em “Meninos sem pátria”. Outros da Lúcia Machado de Almeida que gostava eram “As aventuras de Xisto” e “O escaravelho do diabo”. E, claro, os do Marcos Rey, como “Um cadáver ouve rádio” e “O mistério do cinco estrelas”. Todos grandes autores dos quais lembro com muito carinho e que me formaram leitor, assim como outros autores da minha geração.
O Itamar adulto é geógrafo e também escritor. Sua obra fala da relação dos homens e mulheres com a terra, mas a infância também está presente. Como você pensa a infância na sua obra?
IVJ – A infância é importantíssima. Portanto, é inevitável que apareça naquilo que escrevo. Afinal, todos nós que pudemos chegar à vida adulta desfrutamos dessa dimensão da vida que é a infância. Nos meus dois romances – “Torto arado” e “Salvar o fogo” (Todavia), a infância aparece, porque são histórias de formação. É nesse período que acontecem fatos cruciais que ajudam o leitor a entender quem são e como viveram as personagens.
Muito do que somos hoje aprendemos quando crianças.
Destinada ao público infantojuvenil, a série Vaga-Lume, lançada pela Editora Ática em 1973, completou 50 anos com mais de 100 livros publicados.