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De Maria Marruá a Juma: pais e filhos do Pantanal fora das telas

Foto de duas mulheres, personagens da novela Pantanal, estão sentadas na beira do rio

“Os filhos, dos filhos, dos filhos, dos nossos filhos verão”. Crianças, que acompanham o remake da novela “Pantanal” junto de seus pais, ouvem de segunda a sábado, às 21 horas, a mensagem da música de Marcus Viana, cantada na voz de Maria Bethânia, que diz sobre o mundo que as futuras gerações encontrarão.

Nesta toada, fomos investigar como as infâncias de 32 anos atrás vivenciavam a região pantaneira, em 1990, quando a versão original da novela, escrita por Benedito Ruy Barbosa, foi exibida pela TV Manchete, e o que mudou para as crianças de hoje que assistem ao novo sucesso da TV Globo desde 28 de março, data em que o primeiro capítulo foi ao ar, agora com as adaptações escritas por Bruno Luper. 

Em ambas as versões estão presentes as belezas naturais do Pantanal e as culturas dos homens que vivem lá: o modo de falar, de se vestir e de realizar as tarefas no campo, por exemplo. Na trama, os protagonistas precisam lutar contra o desmatamento, as queimadas, o abate desenfreado de animais e a diminuição dos peixes. Também são abordados temas como a homofobia e o machismo.

Como a ficção impacta a vida real

Desde sua estreia, “Pantanal” tem feito parte da vida de muitos brasileiros, inclusive mudando hábitos de consumo. A empresária Lourdes da Costa, que possui uma loja de materiais pantaneiros, no centro de Miranda (MS), comenta como “aumentou muito a venda de berrantes, apetrechos de tereré, selas para cavalo e até os trajes pantaneiros, aqueles de peão ou com estampa animal print”, observa. Um estudo do Google aponta que, desde a estreia do folhetim, as buscas por “O que é o Pantanal?” subiu mais de 280% e “Onde fica o Pantanal” subiu mais de 270%. 

A novela Pantanal e diferentes infâncias pantaneiras

À noite, Esmael, 9, e sua família se reúnem para ver “Pantanal”. Moradores da Serra do Amolar, uma comunidade que fica na fronteira do Brasil com a Bolívia, entre Cáceres (MT) e Corumbá (MS), eles não perdem um capítulo da novela e conversam bastante sobre o tema. O menino que hoje se vê representado nas telas, embora jamais pudesse imaginar que seu cotidiano seria assunto de novela, passa os dias brincando, andando de canoa e indo para a roça com o seu avô. 

Arquivo pessoal

Esmael no caminho da roça do avô, onde gosta de brincar e passar o tempo livre

Arquivo pessoal

Mãe e filho aproveitando um passeio em meio à diversidade que o Pantanal oferece

Já a mãe dele, Edilaine Nogales de Arruda, 27, aponta que muita coisa mudou desde a primeira exibição da novela. “Nasci, cresci e construí a minha família aqui no Pantanal, na Serra do Amolar. A novela mudou muito. Colocaram os assuntos de hoje, como cuidar das coisas do dia a dia sem prejudicar o meio ambiente e conviver com a tecnologia”, detalha.

Sobre a proximidade do homem com os animais e a natureza, mãe e filho explicam que são relações muito presentes em suas vidas, além de também se identificarem com o modo de falar. “Nós falamos frases iguais a eles como ‘vixe’ e ‘larga mão’”, comentam. Esmael só avalia que o meio de transporte, como mostrado na novela, não faz parte da rotina do homem pantaneiro. Segundo ele, a grande diferença na vida real e o que passa na TV é a falta do avião, porque em sua casa e na de seus vizinhos não tem isso. “Aqui andamos a cavalo. Gosto também de passear de barco”, diz.

A infância de mãe e filho se assemelha ao local e ao tipo de afazeres, como ir para a roça, andar de barco e brincar com os animais. Mas se diferencia muito em outros aspectos, como o estudo e a alimentação. “A qualidade do ensino está muito melhor. Meu filho tem acesso à internet na escola e até come lá”, completa Edilaine. Antes, ela precisava ajudar os pais e os avós a plantar arroz, feijão, milho, abóbora, melancia e mandioca para comerem e venderem, conseguindo assim dinheiro para comprar outras coisas. Hoje, seu filho vai à roça só para brincar.

Além disso, eles observam como muitos animais sumiram e as doenças estão mais presentes, um dos reflexos das emergências climáticas em curso. Por isso, Edilaine viveu mais experiências com os bichos do que Esmael, que passou a conviver com o desmatamento e as queimadas. Para ele, ver carcaça de animais mortos, seja pelo fogo ou por caçadores, sentir o clima mais quente e abafado, e não ter mais tantos peixes para pescar faz parte do seu cotidiano. “Na minha infância”, diz Edilaine, “não tinha os grandes incêndios que prejudicam os animais e as plantações”.

No bioma pantaneiro são encontradas pelo menos 4.700 espécies de fauna e flora, sendo 3.500 espécies de plantas, 650 de aves, 124 de mamíferos, 80 de répteis, 60 de anfíbios e 260 espécies de peixes de água doce. Mas esse número diminui a cada ano. Como reflexo do interesse dos espectadores pela novela e pelos animais da região pantaneira, as buscas no Google por “onça-pintada” aumentaram 36%; consultas sobre capivara e sucuri também estão em alta. O biólogo Figueiroa celebra o fato da novela mostrar que “sucuri e onça não atacam pessoas do jeito que elas pensam. Ninguém precisa matar esses animais, não precisa ter medo”, tranquiliza.

Gustavo Figueroa, biólogo e diretor de Comunicação do Instituto SOS Pantanal, também comenta a importância de “botar em horário nobre da televisão, atingindo milhões de pessoas todos os dias, um bioma que é pouquíssimo conhecido pelos próprios brasileiros, e tocar em questões ambientais sensíveis a respeito dele”. 

Desse modo, a arte tem “imitado” muitos acontecimentos da vida real. “Não dá para abordar temas como o desmatamento e os incêndios que estão destruindo o bioma de forma profunda, mas há, nas conversas entre os protagonistas, muita troca de ideia, de informação, mostrando um diálogo a favor do meio ambiente. Acho muito positivo”, avalia Figueroa.

Com os incêndios de 2020, 3.909.075 hectares foram queimados, mais de 26% do território do Pantanal. Já as ocorrências em 2021 somaram mais 1.945.150 hectares, ou 12,6% do bioma, segundo dados do LASA (Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de Meteorologia, da UFRJ).

Segundo ele, a mudança mais significativa desde a primeira exibição da novela foi a perda de água. “O Pantanal secou bastante. Se as coisas continuarem como estão, o Pantanal vai virar um deserto”, alerta. Mas ele destaca que há iniciativas para proteger o bioma e a luta para que “o Pantanal comece a se recuperar da maneira que precisa”.

Seu Agripino Moreira da Cruz, 69, assistiu a primeira versão da novela, mas seus filhos, então com 12 e 15 anos, não gostavam de acompanhar a exibição. “Hoje, os adolescentes querem assistir cada capítulo e isso é importante para atrair mais pessoas para ajudar a cuidar do nosso Pantanal”, considera ele. Além do debate sobre meio ambiente, ele também identifica que agora se fala mais sobre racismo e homossexualidade, e “os atores são mais bonitos e menos nus”, brinca. 

Entre as mudanças do remake, ele gosta que os animais sejam “de verdade”. “Eles colocaram uma cobra real e uma onça viva nesta versão. Eu gostei muito disso”. Seu Agripino identifica muita coisa em comum à sua vivência pantaneira na novela, “de vez em quando passa um avião aqui em cima, vemos cobras, onças e capivaras. E tem até os Marruá que são aqueles bois bravos que precisamos domar no laço”, pontua. “Só o jeito deles falarem que é não é muito igual ao que falamos aqui”. 

Entre as infâncias de Bianca, 9, e de sua mãe, Luciene Corrêa Souza Dias, 35, também há muitas diferenças. Enquanto a menina valoriza poder “brincar com os amigos, ter água limpa em casa, e assistir TV e navegar na internet”, Luciene lembra que “desde cedo a gente tinha que trabalhar na roça e ajudar os nossos pais”. 

Arquivo pessoal

Bianca em frente à televisão acompanhando os capítulos do remake "Pantanal"e contando as histórias do homem que vira bicho

Arquivo pessoal

Bianca e sua mãe não perdem um capítulo da novela "Pantanal"

A mãe destaca como as casas mudaram e também o acesso à educação: “hoje as casas são feitas de tijolo e telha, mas, na minha infância, as casas que a gente morava eram feitas de barro e palha. O fogão que hoje é a gás, antes era de lenha, feito no chão. A escola era a céu aberto, a mochila era saco de arroz e o material era dividido com os outros irmãos: um levava na parte da manhã e outro à tarde. Agora, existe escola, com sala e professores formados. Posso dar uma mochila para cada um. Eles podem viver a vida deles livres, brincar como criança”, conta. 

Em relação aos causos e às crendices contadas na novela, que despertam a curiosidade das crianças e mexem com a razão de muitos adultos, Bianca acredita no homem que vira saci. Apesar de nunca ter visto, a menina sempre ouviu falar sobre ele. A mãe dela afirma que, em sua juventude, viu um lobisomem em frente à igreja de sua comunidade.

“Na minha infância, as pessoas contavam que tinha uma mulher que virava onça. Eu nunca vi, mas acredito. Não sei explicar a origem dela. Só que ela faleceu”, conta aos risos Edilaine. Esmael, seu filho, aprendeu a acreditar que homem vira bicho justamente por conta dessa história, assim como as personagens de Maria e Juma Marruá viram onças quando estão com raiva e o “véio do rio” vira sucuri quando precisa se disfarçar, para não ser visto. “Tem a mulher que vira onça e o homem que vira cobra. Eu acredito nisso, sim”, revela o menino. “É a minha parte preferida da novela”.

Os seres em interação
Para seguir se inspirando com as histórias e as infâncias pantaneiras, a série brasileira de animação “O menino que engoliu o sol” trata com delicada poesia da relação de respeito e diálogo entre um menino e a natureza do bioma, passando por temas como as queimadas, o confinamento e a venda ilegal dos seres da floresta, e a matança e a desculturação dos povos originários. No meio do Pantanal, a criança brinca com uma ariranha ou um ser fantástico – não há diferença entre o real e o imaginado. Produzida no Mato Grosso do Sul, a série é inspirada no universo do poeta Manoel de Barros e na mitologia indígena Guató, com narração do cantor Ney Matogrosso.


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