Acompanhamos o convívio de crianças com e sem deficiência em sala de aula para entender por que educação inclusiva beneficia todas as pessoas
Crianças sem deficiência que estudam em salas de aula inclusivas têm opiniões menos preconceituosas e são mais receptivas às diferenças. Confira as experiências!
É um dia de aula comum numa escola da rede municipal em São Paulo (SP), onde Júlio*, 12 anos, é estudante. Estudando no sétimo ano do Ensino Fundamental, ele se relaciona muito bem com pessoas mais velhas, mas tem dificuldades para lidar com colegas da sua idade. Isso acaba sendo uma barreira para que realize, por exemplo, trabalhos em grupo.
“Uma das nossas maiores dificuldades é encontrar uma maneira de fazer com que ele participe e se aproprie do convívio escolar”, explica Amanda Santana, professora de Atendimento Educacional Especializado (AEE) da EMEF Infante Dom Henrique, localizada na Zona Norte da capital paulista.
Júlio é diagnosticado com paralisia cerebral. Especialmente neste dia, os colegas estão empolgados por causa de um passeio que a escola fará. Júlio, apesar de também animado, encontra-se com uma dificuldade cotidiana: não consegue trocar de camisa, recolhe-se em uma sala de aula e solicita a ajuda de uma educadora. Ela pede que ele espere um pouco enquanto resolve alguns problemas referentes ao passeio e o deixa com alguns colegas. Quando volta ao espaço, surpreende-se: os colegas sem deficiência já haviam resolvido o problema ajudando Júlio a trocar a roupa.
Relatos como este são frequentes em escolas que atendem estudantes com e sem deficiência juntos. Uma situação, que pode parecer banal, mostra como a inclusão escolar é positiva não só para as crianças com deficiência, mas também para potencializar o desenvolvimento dos alunos sem deficiência.
A pesquisa “Os benefícios da educação inclusiva para crianças com e sem deficiência”, feita em 2016 pela ABT Associates e pelo Instituto Alana, comprova esta tese e detalha os benefícios da educação inclusiva para todas as crianças.
A educação inclusiva não se trata de falar apenas de casos como o de Júlio e seus colegas. Quando você, leitor ou leitora, pensa em uma escola de qualidade, você considera a diversidade ou a inclusão como um critério? Quem são as pessoas que fazem parte de uma sala de aula ideal? Nesta escola que você imagina, há pessoas com deficiência? Se há, elas estudam na mesma sala dos demais estudantes? Quantos alunos e educadores são negros ou negras? Quantas são meninas e quantos são meninos?
Quando escolheu a escola para seu filho Ricardo, 11 anos, Thereza Atayde considerou a diversidade como um critério fundamental de seleção. Quando estudante da Educação Básica, a mãe e atriz frequentou duas escolas de classe média no Rio de Janeiro (RJ) e sentia falta da convivência com realidades diferentes na sala de aula. “Não tinha nenhum colega com deficiência na minha escola. Uma amiga tinha uma irmã com deficiência, mas apesar de não ter nenhum comprometimento intelectual ou motor que a impedisse de estar em escola regular, ela não estava estudando”, lembra.
A matrícula em classes regulares (alunos com e sem deficiência estudando juntos) cresceu de 896.890, em 2017, para 1.014.661 em 2018. Enquanto isso, o número de alunos nas “classes especiais” (onde há apenas alunos com deficiência), caiu. Em 2017, eram 169.637 alunos nessa condição; já em 2018, esse número reduziu para 166.615. No geral, as matrículas de pessoas com deficiência cresce anualmente, com aproximadamente 1,2 milhões. A rede privada de ensino responde por apenas 14% das matrículas na educação básica no Brasil.
Fonte: Sinopses Estatísticas da Educação Básica do Inep 2016/2017
A professora do departamento de educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Marian Dias, acredita que os números representam apenas uma das facetas da educação inclusiva. “Provavelmente, as pessoas tendem a identificar o tema da inclusão escolar apenas com a questão da deficiência pois esta costuma ser a que mais causa estranhamento. Há uma negação diante da fragilidade que as pessoas com deficiências costumam representar socialmente. A ideia dominante é a de sermos fortes e perfeitos e o convívio ou a simples proposta de encontro com alguém que representa o oposto disso é assustadora”, comenta.
De acordo com a pesquisa, há quatro grandes benefícios da educação inclusiva para todos os estudantes:
A professora acrescenta que há alguns aspectos pedagógicos interessantes a serem considerados no processo de inclusão escolar de qualquer aluno: o que é ensinado (conteúdo curricular), como é ensinado (metodologia) e como é avaliado. “Quanto mais alunos considerados em situação de inclusão estiverem em classes regulares, mais esses aspectos pedagógicos poderão ser repensados para toda a classe”, defende.
“Do ponto de vista da socialização, o encontro entre alunos e suas diferenças também é benéfico para a construção da personalidade, especialmente em uma sociedade cada vez mais intolerante”
“As crianças sem deficiência interagem melhor com as crianças com deficiência do que os adultos.” A afirmação é de Amanda Santana, professora EMEF Infante Dom Henrique, que há três anos vem encontrando caminhos para fazer a inclusão acontecer na prática na escola.
“As crianças sem deficiência tinham muita curiosidade em acessar a sala de recursos, que é um espaço onde há muitos materiais coloridos”, conta. Para resolver este problema, Amanda criou um grupo de estudo. “Neste grupo, as pessoas com deficiência trazem o seu ‘par avançado’ para acompanhar e construir conjuntamente a sua orientação de estudo”, explicou ao Lunetas.
O “par avançado” é uma pessoa sem deficiência que forma com ela uma dupla. Esta prática valoriza o conceito do aprendizado coletivo, fortalecendo um modelo de colaboração que aumenta as possibilidades de vivência inclusiva.
“O mais comum é que pessoas com e sem deficiência trabalhem em conjunto nesse grupo”, afirma a educadora. Para Edjane de Oliveira, mãe de uma aluna do terceiro ano do Ensino Fundamental da escola, é necessário apoiar o processo de inclusão no espaço escolar, mesmo que a filha não tenha nenhuma deficiência. “Esse tipo de iniciativa ajuda a diminuir o preconceito e é fundamental que as crianças aprendam desde cedo a conviver com o diferente”, defende. Luisa, 9 anos, corrobora a opinião da mãe e se lembra de experiências positivas como, por exemplo, as vividas em festividades da escola. “As danças e coreografias são adaptadas para as crianças com deficiência poderem dançar”, explica a estudante.
A educação inclusiva vinha se fortalecendo no Brasil desde 2008, com aprovação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva. Entre 2009, primeiro ano de vigência da política, e 2017, o percentual de pessoas com deficiência matriculadas em classes regulares cresceu de 60,5% para 84,1%. Mas, desde 2019, com o início da gestão do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a educação inclusiva sofre fortes ameaças com o decreto 10.502/2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), como mostra a reportagem abaixo.
*Nomes alterados para preservar a identidade do estudante.
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No estudo, os pesquisadores realizaram uma revisão sistemática de 280 artigos publicados em 25 países. O trabalho demonstra que pessoas sem deficiência que estudam em salas de aula inclusivas têm opiniões menos preconceituosas e são mais receptivas às diferenças.