Educar meninas, empoderar agricultoras e incluir novas vozes no debate ambiental são estratégias para reverter a crise climática
A igualdade de gênero pode resgatar meninas e mulheres das vulnerabilidades a que estão expostas, inclusive a climática, que as sujeitam a mais catástrofes, como secas e inundações. Todos e todas têm direito a um futuro climaticamente seguro.
Acesso à educação, direitos reprodutivos, empoderamento de mulheres agricultoras e mais diversidade na liderança são algumas das estratégias relacionadas a gênero que podem beneficiar o meio ambiente, com efeitos sobre a quantidade de poluentes lançados na atmosfera ou tornando as comunidades mais resilientes às mudanças climáticas.
Mulheres e meninas estão no topo da vulnerabilidade climática na maior parte do mundo, estando sujeitas a mais catástrofes, como secas e inundações, por exemplo. Além de vulnerabilidades biológicas, fisiológicas, culturais e sociais, elas têm menos acesso a recursos financeiros e à educação de qualidade.
Mas, mais do que vítimas, elas são parte fundamental da solução deste problema. Por isso, não podem ser excluídas das decisões e ações sociais e políticas relacionadas à emergência climática. Investir em igualdade de gênero (junto a outros marcadores sociais, como raça e classe) é importante como pressuposto para alcançar alternativas aos efeitos do clima para esta e as próximas gerações. Isso porque “os avanços sociais e a vida em sociedade como um todo dependem de um meio ambiente equilibrado. Saber que as desigualdades sociais e a mudança climática são construções humanas que se interconectam é perceber que é nossa responsabilidade reverter esse cenário”, pontua Nara Perobelli, gestora ambiental do Grupo de Trabalho em Gênero e Clima do Observatório do Clima
“A sustentabilidade é insustentável em uma sociedade desigual”
“Por isso, a cada política (pública ou privada) promovida, as ações ambientais e de combate às desigualdades devem caminhar juntas”, defende Nara. Segundo ela, como forma de corrigir privilégios, é preciso sempre questionar “quem”: “por quem ela está sendo escrita, para quem ela serve, quem vai implementar etc.”.
Embora a participação feminina na agenda do clima siga marginalizada, a luta pela estabilização do clima será sempre incompleta sem uma perspectiva baseada em gênero.
Garantir direitos humanos básicos à população feminina mundial não apenas promoveria maior capacidade de enfrentamento das mudanças climáticas, mas diminuiria, substancialmente, a poluição lançada atualmente na atmosfera. A aposta é do ambientalista Paul Hawken, autor do projeto Drawdown, que reúne centenas de cientistas do mundo inteiro dedicados a pesquisar soluções para a crise do clima.
Uma pesquisa feita por Christina Kwauk e Amanda Braga, em 2017, associa a duração média da educação de meninas em um país e a pontuação desse país em índices que medem a resiliência a desastres ambientais. O crescimento populacional é maior nos lugares onde as meninas não estão indo à escola ou não terminam os estudos; onde mulheres não têm controle sobre a própria vida reprodutiva e não têm acesso a planejamento familiar. Quanto maior a escolaridade de meninas e mulheres, mais rendimento e oportunidades de mobilidade social elas têm. Isso quebra ciclos de pobreza, que aumentam a vulnerabilidade a desastres ambientais. “Investir em igualdade de gênero é uma opção muito mais barata quando se trata de alívio dos efeitos do clima, além de ajudar a melhorar a qualidade de vida e o futuro de metade da população do mundo”, diz Christina.
É o acesso à educação que vai garantir um futuro mais justo e sustentável a meninas e meninos, acredita Nara. “Devemos contribuir para a construção de uma visão crítica que entenda a importância da ciência, que não tolere opressões e que, na medida do possível, esteja cada vez mais em contato com a natureza. Uma educação emancipatória e conectada ao meio ambiente nos ajuda a não cometer erros do passado e traçar novas rotas que nos tirem da crise. Afinal, para sairmos deste lugar, precisamos de novos paradigmas”, diz.
Segundo o projeto Drawdown, sem planejamento familiar, a projeção é de que o planeta tenha 9,7 bilhões de pessoas em 2050. Isso teria impacto, por exemplo, na construção civil, na produção de alimentos e de resíduos, no uso de transportes, lançando 119,2 gigatoneladas de gás carbônico na atmosfera.
Mas é preciso ter cuidado para que a culpa pela superpopulação e pelos danos climáticos não recaia sobre as mulheres. “É essencial não interpretar a opressão como algo biológico”, pondera Nara. Os corpos das mulheres são frequentemente alvo de discursos sobre excesso de população, sujeitando-as a políticas e medidas legislativas que podem ferir seus direitos reprodutivos. Contra essa ideia estão organizações como a Modefica, por exemplo, que atua em pesquisas por justiça socioambiental e climática a partir de uma perspectiva ecofeminista.
Políticas que tentem responder à mudança climática têm diferentes implicações e impactos em pessoas de acordo com gênero, raça e classe social.
Para que as medidas em relação ao clima passem a contemplar também as necessidades e os direitos das mulheres a um futuro climaticamente seguro, especialmente de mulheres negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas e periféricas, é preciso que elas ocupem os espaços de decisão. Os benefícios de inserir mais mulheres brancas privilegiadas de países ricos é extremamente limitado. Não basta simplesmente ter “mais mulheres”, e sim trazer pessoas com visões de mundo e experiências diferentes – incluindo, urgentemente, aqueles cujas vidas têm sido severamente afetadas pela mudança do clima.
Ainda que “mais mulheres no poder não necessariamente se traduza em melhores políticas ambientais”, lembra Nara, diversas pesquisas mostram mulheres e corpos feminizados como mais sensíveis e ativas nas pautas climáticas. O estudo de 2016 do Centro de Pesquisas Pew, nos Estados Unidos, por exemplo, reforça a ideia de que mulheres no poder costumam priorizar pautas relacionadas ao meio ambiente e à proteção aos recursos naturais. Já um relatório sobre a representatividade nos espaços de governança climática no Brasil, desenvolvido pelo Grupo de Trabalho em Gênero e Clima do Observatório do Clima, “mostra não somente que eles carecem de participação de mulheres, como também sugere que dentro da própria área climática existiriam temas historicamente ‘masculinizados’ (como assuntos técnicos e científicos) e ‘feminilizados’ (questões sociais e de vulnerabilidade nas mulheres)”, conta Nara.
Os dados a seguir ajudam a entender o aumento positivo de casos mundo afora de lideranças femininas e populações não-brancas frente a organizações e movimentos ambientais, embora um relatório internacional da ONU Mulheres, divulgado em 2020, tenha mostrado que 67% das posições de tomada decisão são ocupadas por homens, no âmbito da Convenção sobre o Clima, o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris.
Para Nara, “não há dúvida de que a representatividade de grupos não hegemônicos nos espaços de deliberação é necessária para políticas mais realistas, eficazes e construtivas”. Todavia, ela recomenda a diferenciação entre representatividade descritiva (que informa sobre as características sociodemográficas de pessoas negras, indígenas, mulheres etc.) e substancial (que diz respeito à defesa política e material do grupo a qual aquela pessoa faz parte). “Por exemplo, uma mulher em cargo de liderança que não traz perspectivas feministas para seu discurso e ações, representa descritiva, mas não substancialmente, esse grupo. É preciso que as mulheres nos espaços de tomada de decisão possuam representatividade substancial, e que tenham garantidos seus direitos nesses locais, sem que sofram ameaças por serem quem são e defenderem as suas ideias”, pontua.
Para ela, além do peso simbólico que essa representatividade feminina tem para meninos e meninas, ela se torna ainda mais importante à medida em que promove justiça climática para essas crianças, concretizando direitos e oportunidades para seu presente e futuro. “Ao evidenciar a diversidade do Brasil, as crianças podem identificar nos cargos de poder e outros espaços públicos os rostos e corpos que estão nas ruas, escolas e casas, permitindo que sonhem em também chegar lá. Verem alguém parecido com elas, seja pela cor de pele, cabelo, gênero ou etnia, passa a mensagem de que aquele também é um lugar delas, e que elas têm o capital cultural para ocuparem esses espaços”, arremata Nara.
As mulheres representam, em média, 43% da força de trabalho no campo. Nas regiões mais pobres, elas produzem de 60% a 80% da comida. Mas a maioria delas é de pequenas proprietárias, com menos renda, menores chances de conseguir empréstimos e menos proximidade com novas tecnologias em comparação aos produtores homens.
Se elas tivessem o mesmo acesso que eles a recursos, a produção aumentaria entre 20% e 30%, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Esse ganho reduziria a necessidade de desmatar outras áreas em busca de melhores resultados, evitando, pelos cálculos dos especialistas do Drawdown, o lançamento de 2 gigatoneladas de dióxido de carbono na atmosfera até 2050.
“Para promover uma política pública de incentivo à agricultura familiar é preciso questionar a autonomia das mulheres no campo. ‘Elas estão em posse de seus documentos de identidade?’, ‘Têm direito à terra a qual cultivam?’, ‘Quais são seus saberes específicos relacionados à agricultura?’. Se não, se está promovendo uma política pela metade”, defende Nara.
Além disso, os fundos distribuídos pelas Nações Unidas para programas de adaptação aos efeitos da crise do clima devem ser principalmente direcionados a grupos de mulheres nas áreas mais afetadas, garantindo que esses recursos financeiros impactem agricultoras e pequenas proprietárias.
Uma abordagem interseccional entre gênero e clima é importante para que as crianças “tenham, desde cedo, uma visão sistêmica sobre o mundo que vivem, sendo capazes de interpretar essas crises de maneira relacionada, sem separar o social do ambiental”, opina Nara.
Para tanto, a gestora ambiental recomenda aproximar o debate das experiências particulares de cada um, “ouvindo suas realidades e relacionando-as com a temática”. Outro caminho é acompanhar iniciativas de crianças e jovens em prol do meio ambiente, como o Engajamundo, EmpoderaClima, Fridays For Future Brasil, exemplifica.
* Esta reportagem foi publicada originalmente no portal Believe.Earth e escrita por Giovana Romano Sanchez. Para sua adaptação e atualização ao Portal Lunetas, colaborou Laís Barros Martins.
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De acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2016, os desastres naturais relacionados às mudanças no clima prejudicam muito mais pessoas pobres e em situação de vulnerabilidade, principalmente de países em desenvolvimento. Quanto menos dinheiro, poder ou posses, mais difícil é se proteger de um desastre natural.