Quando foi surpreendida pelo teste HIV positivo, a escritora e publicitária Thais Renovatto se questionou se poderia engravidar. As informações que recebeu desde o momento em que descobriu conviver com o vírus a tranquilizaram de que poderia gerar crianças saudáveis. Foi preciso planejamento e acompanhamento de profissionais de saúde para evitar que o vírus passasse aos bebês, na chamada transmissão vertical. Hoje ela é mãe de duas crianças: João, 5, e Olívia, 4.
“Se a mulher convive com o vírus HIV, mas toma medicação e tem a carga viral indetectável, a chance de engravidar por uma relação sexual e ter um filho com HIV é abaixo de 1%. Da mesma forma, a chance de o parceiro ser infectado é quase nula”, detalha a infectologista Marinella Della Negra, presidente da Associação de Auxílio à Criança Portadora do HIV. Contudo, sem intervenção de saúde adequada, o risco de transmissão do vírus aos bebês durante a gravidez, no parto ou na amamentação é de 45%.
Embora existam mulheres como Renovatto que podem realizar o tratamento com acompanhamento médico e se preparar para viver a gestação, muitas mulheres só descobrem o vírus durante um exame de pré-natal. Além disso, a maternidade da maior parte das mulheres que convivem com o vírus ainda é invisibilizada pelas campanhas de prevenção e até mesmo na hora de falar sobre maternidade, sobretudo quando existe um recorte da desigualdade social.
No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, desde o ano 2000, a faixa etária de 20 a 24 anos é a que mais apresenta casos de gestantes infectadas pelo HIV, com predomínio de casos entre gestantes pardas e brancas, e de pessoas que não completaram o ensino básico. Porém, desde 2010, o agravamento dos quadros e casos de aids são prevalentes em mulheres negras.
“A gente ainda fala muito pouco da questão do HIV e aids em relação à mulher, menos ainda sobre saúde reprodutiva. Entendemos que, de acordo com os dados epidemiológicos, há mais casos em outras populações e, por isso, mais campanhas. Porém, deveríamos abordar mais o tema até por uma questão de igualdade de gênero”, afirma Jô Meneses, coordenadora de Programas Institucionais da ONG Gestos.
De acordo com ela, há muitos casos de mulheres infectadas vivendo em relacionamentos abusivos, e que não podem sequer escolher os métodos de prevenção que utilizam. Por isso, além de atacar problemas como o acesso das mulheres ao sistema de saúde e a própria violência de gênero, ela recomenda ampliar a oferta de preservativos gratuitos em locais de grande acesso do público e falar para as mulheres sobre a possibilidade de uso da PrEP (profilaxia Pré-Exposição), um método que permite ao organismo se preparar para um possível contato com o vírus.
“Precisamos falar dos fatores que vulnerabilizam a mulher para a infecção do HIV e sobre a necessidade de criar caminhos para que as gestantes soropositivas tenham acesso ao pré-natal”
A diferença entre HIV e aids
Renovatto só descobriu que convivia com o HIV quando um namorado foi hospitalizado com complicações decorrentes da aids. Primeiro, veio o choque da confiança quebrada de uma relação de mais de um ano. Depois, o medo e, em seguida, um processo de aceitação. A primeira atitude foi buscar informação. Foi então que entendeu que é possível viver com o esquema de remédio antirretrovirais, mantendo a carga viral baixa ou indetectável no sangue. Nessa condição, após seis meses com o vírus indetectável, a pessoa não transmite o vírus em relações sexuais e a doença não evolui.
Os comprimidos de uso diário para a prevenção do HIV estão disponíveis gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde) para grupos considerados mais expostos à contaminação pelo HIV, como trabalhadoras do sexo, mulheres trans e homens gays. Desde 2017 até abril de 2023, cerca de 82 mil brasileiros acessaram a terapia no país, segundo dados do Ministério da Saúde. Agora, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) acaba de aprovar o primeiro medicamento injetável para prevenir contra o HIV no Brasil. O Cabotegravir é uma PrEP (profilaxia pré-exposição) para se evitar a infecção pelo vírus causador da aids, considerado 69% mais eficaz que a combinação de comprimidos conhecida como Truvada, segundo testes feitos na Ásia, na África e na América, e que deve ser injetado a cada dois meses.
Quanto antes se detecta a sorologia positiva para o HIV, aumentam as expectativas de vida saudável da pessoa com o vírus. Isso porque o vírus leva um tempo para se multiplicar e atacar o sistema imunológico, baixando as defesas do corpo para outras infecções e permitindo o surgimento de outras doenças, como a aids, mas isso pode nunca acontecer. “Você pode viver com HIV sem ter absolutamente nenhuma imunodeficiência, sem ter doença nenhuma. O doente de aids é aquele indivíduo que se infectou, ou fez o diagnóstico tardiamente, ou não tomou remédio, ou parou de tomar remédio”, esclarece a infectologista Della Negra.
A maternidade e o HIV
No Brasil, de 1980 até junho de 2021, foram registrados 688 mil casos de aids em homens e 35 mil em mulheres. Entre os homens, entre 2007 e junho de 2021, 52% dos casos foram decorrentes de exposição homossexual ou bissexual. No mesmo período, houve 115 mil casos de infecção por HIV em mulheres, o que representa 30% do total de notificações. Entre elas, 86,8% dos casos se inserem na categoria de exposição heterossexual, como aconteceu com Renovatto.
Na época em que decidiu engravidar, ela tomava um comprimido por dia. Em vez de seguir o curso habitual do tratamento, que era verificar a cada oito meses como estava a carga viral, reduziu o intervalo da mensuração para quatro meses e regularizou todas as vacinas. “Eu engravidei bem rápido. Muita gente acha que eu precisei fazer inseminação artificial, mas não rolou nada disso”, conta.
É recomendado que a gestante não interrompa o tratamento. Ela e o parceiro devem fazer os testes para HIV durante o pré-natal, além de verificar se a medicação pode comprometer a formação do feto.
No parto, a única particularidade de Renovatto foi tomar uma medicação durante três horas antes do nascimento da criança. Isso porque, mesmo quando a mãe faz os testes durante o pré-natal, a carga viral pode se alterar entre a última testagem e o dia do nascimento da criança. “O que vai dizer como será o seu parto são questões obstétricas, e não do HIV”, detalha Della Negra. Na época, o parto era preferencialmente via cesárea para reduzir o contato de sangue com o bebê, conta Renovatto, “mas hoje você já consegue fazer parto normal”.
Após o nascimento do bebê, o protocolo é que ele tome uma medicação por algumas semanas para impedir a transmissão vertical. “Quando uma criança exposta ao vírus nasce, ela faz o teste, recebe os cuidados e a medicação até eliminar a possibilidade de infecção. Por volta de um mês, ela faz um novo teste. Daí, suspende-se a medicação”, acrescenta Della Negra.
A amamentação não é recomendada pelos protocolos médicos, pois existe a possibilidade de transmissão do vírus no momento em que o bebê recebe o leite materno, caso os parceiros infectados tenham novas relações sexuais sem preservativo nesse intervalo. Por isso, também é preciso preparar o psicológico para lidar com frustrações. “Quando decidi ser mãe, queria muito ter o pacotinho completo e precisei ressignificar a minha frustração em não amamentar.”
“Tive muito leite e fiquei muito, muito triste, até entender que a minha maior prova de amor era não amamentar”
Meneses defende que a mulher continue sendo informada sobre o HIV depois do pré-natal, “porque a conversa sobre a amamentação, por exemplo, quase não existe e é algo que vulnerabiliza as crianças para a infecção”. Ela já atendeu mulheres que estavam amamentando não só os seus filhos, mas também os netos quando receberam o teste positivo para o vírus.
No Brasil, as mulheres podem retirar gratuitamente, via SUS, um kit com um comprimido que inibe a lactação, leite de fórmula até a criança completar dois anos e medicações para o bebê. Apenas 43 cidades conseguiram zerar a transmissão vertical do HIV e da sífilis no país.
Depois que descobriu que poderia ser mãe com HIV positivo e gerar uma criança sem o vírus, Renovatto percebeu que, apesar dessa dúvida ser comum, não havia muitas pessoas falando sobre isso. Decidiu então contar a própria história no livro “5 anos comigo” como forma de desmistificar e desestigmatizar a maternidade entre mulheres com HIV e ajudar outras mães a superar medos e preconceitos. “Tento normalizar o assunto ao falar numa boa e abertamente. É algo que poderia acontecer com qualquer pessoa”, diz.
Renovatto defende que ter uma rede de apoio é fundamental para a maternidade da mulher com HIV, porque ainda escuta muitos relatos de profissionais de saúde que desencorajam a mulher a engravidar. Segundo estimativa do Índice de Estigma Brasil, de 2019, 8,9% das pessoas convivendo com o HIV afirmaram ter sido pressionadas a renunciar à maternidade ou à paternidade.
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De acordo com a Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids), todos os anos cerca de 1,5 milhão de mulheres com HIV passam por trabalho de parto. Entre 2020 e junho de 2021, foram notificadas 141.025 gestantes infectadas com HIV no Brasil, segundo o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (MS). Somente em 2020, foram 7,8 mil casos, sendo 32,4% deles no Sudeste e 22,3% no Sul.
Em 10 anos houve um aumento de 30,3% na taxa de detecção de HIV em gestantesque, segundo o ministério, pode ser explicado em parte “pela ampliação do diagnóstico no pré-natal e a melhoria da vigilância na prevenção da transmissão vertical do HIV”.