"O corpo dela e outras farras" (Carmen Maria Machado) e "Maternidade" (Sheila Heti) serão o foco de duas mesas na Flip. Por que ser mãe ainda dói tanto?
São muitas as violências que as mulheres sofrem. O corpo, a culpa, o culto à perfeição. Tudo isso está nos livros de duas convidadas da Flip, a canadense Sheila Heti e a norte-americana Carmen Maria Machado. "Uma epidemia que torna as mulheres invisíveis". Saiba mais.
Vem aí a 17ª a Flip 2019 (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece entre os dias 10 e 14 de julho, em Paraty (RJ). Este ano, a cidade está ainda mais em festa, pois Paraty foi reconhecida hoje, 5 de julho, como Patrimônio Mundial da Unesco. Com autores de diversos cantos do mundo e prestígio mundial, a festa é um dos maiores e mais queridos eventos culturais brasileiros.
Com curadoria de Fernanda Diamant, a programação deste ano terá uma forte presença de mulheres na Tenda dos Autores – o eixo principal da festa. Um tema em comum chamou a atenção do Lunetas. A maternidade é assunto de dois livros que estão dentre os mais aguardados da Flip 2019. “O corpo dela e outras farras” (Planeta de Livros e Minotauro Editorial Brasil), de Carmen Maria Machado, e o “Maternidade” (Companhia das Letras), de Sheila Heti. Ambos têm um olhar crítico sobre a visão da mulher-mãe, do corpo da mulher, e das implicações de ser mãe em uma sociedade ainda pautada por exclusões, julgamentos e violências concretas e emocionais.
No romance com traços de texto ensaístico da canadense Sheila Heti, a escritora propõe uma crítica ao “ser mãe”, ao apresentar uma personagem que questiona por que as mulheres querem ser mãe, se um por desejo pessoal genuíno ou se movidas por um discurso que impera tantas vezes na sociedade, o de que a mulher só se completa a partir da maternidade. “Parem de perguntar às mulheres que não têm filhos porque elas não têm”, afirmou a autora em uma entrevista recente ao El País.
Já a americana Carmen Maria Machado narra o feminino de um ponto de vista mais físico. Os oito contos do livro trazem uma perspectiva da violência física e psicológica a que as mulheres e o corpo feminino são submetidos muitas vezes ao longo da vida. Em um dos contos, a escritora trata especificamente de uma questão de saúde bastante sensível, uma intervenção cirúrgica que intervém na vagina das mulheres após o parto, popularmente “ponto do marido”. Misturando horror, ficção científica, fábulas, comédia e erotismo, o livro lança luz sobre o que a autora chama de “uma epidemia que torna as mulheres invisíveis”. A coleção de contos irá ganhar uma adaptação televisiva, ao estilo de “Black Mirror”.
Com seu livro de estreia, Carmen foi finalista do National Book Award, vencedora do Lambda Literary Award – maior premiação literária do cenário LGBTQ – e entrou na lista das 15 mulheres da Nova Vanguarda da ficção pelo jornal The New York Times. Além disso, o título esteve nas seleções de melhores do ano do The Washington Post, LA Times, Chicago Tribune, The Boston Globe, The Paris Review, entre outros.
Leia um trecho de “O corpo dela e outras farras”
Levam o bebê embora para poderem dar um jeito em mim onde cortaram. Me dão algo que me deixa sonolenta, administrado por uma máscara pressionada com cuidado sobre a minha boca e o meu nariz. Meu marido faz troça com o médico enquanto segura a minha mão.
“Quanto é para conseguir aquele ponto a mais?”, pergunta ele.
“Vocês oferecem isso, certo?”
“Por favor”, digo a ele. Mas minha voz sai arrastada e distorcida e possivelmente pouco mais do que um gemido baixo. Nenhum dos homens vira a cabeça na minha direção.
O médico gargalha. “Você não é o primeiro…”
Conheça as sinopses oficiais dos livros abaixo. Quem não vai à Flip 2019, pode acompanhar a transmissão das meses pela página do evento.
Uma esposa se recusa a remover a fita verde de seu pescoço mesmo após súplicas de seu marido. Uma mulher relata seus encontros sexuais lentamente, como uma praga que consome a humanidade. Uma vendedora descobre algo terrível dentro das costuras dos vestidos de festa de uma loja. Uma cirurgia de redução de peso resulta em um hospedeiro indesejado. Ao mesmo tempo antiquado e sexy, estranho e mordaz, cômico e extremamente sério, “O corpo dela e outras farras” alterna uma violência brutal e o sentimento mais rebuscado. Em sua originalidade explosiva, essas histórias extrapolam as possibilidades da ficção contemporânea. Carmen Maria Machado derruba as fronteiras arbitrárias entre realismo, ficção científica, comédia, horror, fantasia e fábula. Nesta coletânea de contos provocativa, considerada um Black Mirror feminista, gêneros literários são desafiados em narrativas que mapeiam a realidade das vidas das mulheres e a violência a que são submetidos seus corpos. (Fonte: Planeta de Livros)
Em “Maternidade”, Sheila Heti reflete sobre os ganhos e as perdas para uma mulher que decide se tornar mãe, tratando a decisão que mais traz consequências na vida adulta com a franqueza, a originalidade e o humor que lhe renderam reconhecimento internacional por seu livro anterior, “How Should a Person Be?”. Ao se aproximar dos quarenta anos, numa fase em que todas as suas amigas se perguntam quando irão ter filhos, a narradora do romance intimista e urgente de Heti — no limiar entre a ficção e autorreflexão — questiona se aquela é uma experiência que ela quer ter. Numa narrativa que se estende ao longo de muitos anos, moldada a partir de conversas com seus pares e seu parceiro e de sua relação com os pais, ela se vê em um embate para fazer uma escolha sábia e coerente. Depois de buscar ajuda na filosofia, no próprio corpo, no misticismo e no acaso, ela descobre a resposta num lugar bem mais familiar do que imaginaria. (Fonte: Companhia das Letras)
Fique de olho na agenda das autoras na Festa Literária Internacional de Paraty, que começa na próxima quarta-feira, 10.
Confira aqui a programação completa da Flip 2019.
Leia mais
Comunicar erro
Leia um trecho de “Maternidade”
Minha mãe chorou por quarenta dias e quarenta noites. Desde que a conheço, a conheço como alguém que chora. Eu pensava que, quando crescesse, eu seria um tipo de mulher diferente, que não iria chorar, e que resolveria esse problema do choro dela. Ela nunca pôde me contar qual era o problema, apenas dizia eu estou cansada. Será possível que ela estivesse sempre cansada? Eu me perguntava, quando era criança, será que ela não sabe que é infeliz? Eu achava que a pior coisa do mundo era ser infeliz sem saber. Conforme fui crescendo, passei a procurar obsessivamente por sinais de infelicidade em mim mesma. Então eu também me tornei infeliz. E cresci cheia de lágrimas.
Durante toda a minha infância, eu sentia que tinha feito algo de errado. Investigava cada gesto meu, cada palavra, a forma como me sentava numa cadeira. O que eu estava fazendo para levá‑la a chorar? Uma criança pensa que ela é motivo até da existência das estrelas no céu, então é claro que o choro da minha mãe era culpa minha. Por que eu havia nascido para fazê‑la sofrer? E como eu havia causado a dor, eu queria curá‑la.