‘No ritmo do coração’ e nossas relações com quem tem deficiência

Com três indicações ao Oscar, o filme traz um olhar sensível para uma família surda em meio a uma sociedade cheia de barreiras para pessoas com deficiência

Claudia Moreira Publicado em 15.02.2022
Cena do filme No ritmo do coração em que a família (um casal e dois filhos, um homem e uma mulher) estão juntos na traseira do carro
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Resumo

O filme “No ritmo do coração” nos convida a refletir que não existem lados - ter ou não ter deficiência, e nos mostra que cada pessoa é um mundo com o qual podemos nos conectar.

O filme “No ritmo do coração” (roteiro adaptado de “La famille Bélier”, em francês) poderia ser a respeito de inclusão, acessibilidade, diversidade, comunicação, mas, entre tantas situações que merecem discussão, todas elas se resumem às relações, à conexão entre mundos e pertencimento à raça humana. As limitações são determinadas pelo entorno e pelas barreiras na relação com o outro, seja por parte das pessoas surdas ou das pessoas sem deficiência.

Ruby, a única ouvinte em uma família de pessoas surdas, fica dividida entre seu amor pela música e as obrigações em relação ao negócio da família, tentando equilibrar seu desejo de se expressar e a necessidade de ser a intérprete que conectará os pais e o irmão com a sociedade.

A mãe não quer que a filha deixe de ser a sua janela para o mundo – como muleta ou troféu de conquistas que não são realmente suas. É conveniente não ter que aprender e se expor a novas situações, novas relações. Será que podemos estar fisicamente presentes e abandonar emocionalmente alguém porque estamos lidando com os nossos medos pessoais? Isso acontece o tempo todo. O segredo é não esquecer que a relação existe.

Além dos filhos não pertencerem aos pais, neste caso, a filha não pertence ao mesmo grupo determinado pela sociedade e do qual eles fazem parte. Há anseios que eles jamais serão capazes de entender e vice-versa. E está tudo bem! Mas aí vem o medo de perder a relação construída – ou imposta… aquele sentimento que atinge a todos os pais quando os filhos começam a criar asas.

Cada pessoa que deixamos de conhecer é um mundo com o qual não nos conectamos

Com humor, uma cena mostra a filha “traduzindo” a saúde íntima dos pais durante uma consulta. Após o diagnóstico, a recomendação é que o casal se abstenha de fazer sexo por duas semanas. Há tanto o desconforto de Ruby ao discutir a intimidade dos pais quanto o desconforto do médico por não saber atender pessoas com deficiência. Uma mente pragmática resolveria este assunto com ferramentas de acessibilidade: um celular ou papel e caneta, por exemplo. Mas e a acessibilidade a outras áreas da vida? Como lidar com a vulnerabilidade e a falta de privacidade e autonomia de uma pessoa que precisa de um intermediário para simplesmente tomar conta do seu próprio corpo? 

Transformar, modificar, fluir

Como em qualquer família, o amor permeia as relações, que nem por isso deixam de ter desafios. Ruby pergunta se sua mãe desejou ter uma filha não ouvinte. Ao invés de questionar o desejo dos pais terem um filho sem deficiência, por que não perguntamos a um filho com deficiência ou não se ele deseja ter pais diferentes ou se ele está feliz com o desempenho dos pais? É muito difícil ouvir a resposta ou trata-se de capacitismo ao assumirmos que ele não conseguirá responder por ter uma deficiência qualquer?

A insatisfação é o que muitas vezes nos empurra para frente, mas não deveria ser instrumento de agressão a outro ser humano

As respostas geralmente vêm com um “não foi o que eu esperava, mas não trocaria o meu filho por outro”. Após uma relação imposta pelas circunstâncias, a conexão e a comunicação são estabelecidas, e a partir daí tudo se ajeita. Mas nem todos aceitam esta imposição e abandonam aqueles que estão na outra ponta. O abandono pode ser físico ou emocional, muitas vezes os dois. 

Como seres humanos apegados e apressados em classificar e rotular, esquecemos dos verbos transformar, modificar, fluir. Mesmo sem determinarem o fim ou resultados indesejáveis, esses verbos exigem coragem. 

Coragem para abrir o coração para novas situações nas quais podemos estar de um lado ou do outro, vulneráveis ou não. Coragem em nos assumir como seres humanos, pertencendo a uma diversidade que pode trazer conflitos, mas que não deixa de ser encantadora. Coragem para estabelecer relações e deixá-las fluir, se modificarem para mostrar toda a criação que a combinação de universos pode trazer. Coragem para assumir a responsabilidade de que as limitações existem, porém são temporárias e condicionadas aos nossos comportamentos. 

Coragem… e escutar o ritmo do nosso coração que, no fundo, é o mesmo do que o do ser humano que está próximo a nós. Quem sabe aí perceberemos que não existem lados, apenas falta de conexão.

* Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
** “No ritmo do coração” está indicado ao Oscar 2022 nas categorias “Melhor filme”, “Melhor roteiro adaptado” e “Melhor ator coadjuvante”.

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