“O que faz uma criança ler é o exemplo. Ver adultos que ela ama e admira se deliciando com um livro nas mãos, e falando com entusiasmo sobre essa leitura”, afirma a escritora Ana Maria Machado. Assim, provavelmente pela influência positiva de alguém próximo que lê, meninas e meninos entre 5 a 10 anos formam um dos maiores públicos leitores, principalmente literatura infantil e histórias em quadrinhos. É o que mostrou a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro.
No entanto, o uso exagerado de eletrônicos e a insuficiência nos índices de alfabetização são as principais barreiras que o Anuário Abrelivros 2024 – “O desafio da leitura” aponta para o desenvolvimento da capacidade leitora ao longo dos anos. Diante dessa realidade, os clubes de leitura são espaços que podem ajudar a cultivar um indivíduo leitor e despertar reflexões de maneira lúdica.
Fãs de uma boa história, Lunetas traz exemplos de crianças que se reuniram por conta própria para compartilhar seus sentimentos depois de ler o mesmo livro. Há também quem se juntou aos adultos para ler autores locais, aprendeu mais sobre as histórias de mulheres importantes e até mobilizou a comunidade na formação de um clube que antes acontecia só entre a família.
Cada um deles tem regras e recomendações próprias, mas, geralmente, a dinâmica é parecida. Os participantes se reúnem regularmente, de modo presencial ou on-line, para trocar impressões sobre as obras e debater os temas de cada encontro. Além disso, os clubes podem ter mediadores e existe um calendário com a programação das próximas leituras. A principal dica dos entrevistados é sugerir leituras de acordo com a faixa etária e com as realidades daquele público.
Como criar um clube de leitura?
- Convide amigos e conhecidos: aproveite as conexões que já existem – na família, na vizinhança e na escola – e comece com rodas de conversas espontâneas.
- Comece pelo o que os leitores mais gostam: o ponto de partida é a curiosidade e o interesse comum dos participantes.
- Selecione os próximos livros juntos: escolham os títulos dos encontros seguintes considerando todas as sugestões.
- Não despreze outros formatos de leitura: invista em história em quadrinhos, mangás, revistas e outros gêneros que os participantes gostam de ler.
- Pesquise livros gratuitos: há opções disponíveis de maneira on-line ou para doação, além de ser possível emprestar livros nas bibliotecas públicas.
- Faça os livros circularem: estimule o compartilhamento de livros e revistas entre os participantes.
- Construa um roteiro: tenha um guia com as atividades a seguir (por exemplo, iniciar com a apresentação do autor, a leitura compartilhada, os temas da discussão e as conclusões)
- Tenha um mediador: a cada encontro, uma pessoa pode conduzir o roteiro.
- Marque um dia fixo: definam juntos se o clube será semanal ou mensal, qual a melhor data e espaço para acontecer. O ideal é que seja em um ambiente acessível para todos.
- Busque parcerias: procure bibliotecas públicas ou comunitárias, escolas, associação de moradores ou instituições educativas. Eles podem ajudar com doações de livros, ceder um local para os encontros ou mediar um convite com algum autor.
‘A leitura pode mudar a vida de alguém’
“A principal coisa boa que o clube me trouxe foi a troca de experiências. Isso porque as reuniões não se baseiam só nos livros, mas na fala de cada um sobre educação e novas descobertas, o que é essencial para criarmos vínculos”, conta Mirela, 17. Ao mesmo tempo, além de se sentir mais próxima dos amigos, Maria Eduarda, 17, diz que organizar e participar de um clube de leitura ampliou sua visão de mundo. “O clube me traz uma sensação de esperança, de que eu posso mudar a vida de uma pessoa apresentando a leitura ou deixando essa prática mais acessível.”
“Eu não seria a mesma pessoa sem o clube de leitura, pois ele abriu meus horizontes para perceber que tinha uma vastidão de conhecimento à frente”
Foi durante uma tarefa para identificar um problema e propor soluções acessíveis para a Escola Estadual Sandoval Soares de Azevedo, em Ibirité (MG), que elas decidiram com mais colegas unir a paixão em comum pela leitura e compartilhar as histórias dos livros que mais gostavam. “Focamos em um projeto de incentivo à leitura e tecnologias, porque percebemos que faltava base entre os estudantes do novo ensino médio. Desse modo, a nova geração que já vai encontrar um novo currículo também pode se preparar melhor”, conta Maria.
Para Mirela, “a falta de leitura prejudica na hora de fazer uma redação e também na hora de desenvolver um diálogo produtivo”. Assim, surgiu o clube Littera Mais, que a cada 15 dias tem encontros na biblioteca da escola, para leitura compartilhada e discussão sobre os livros escolhidos pelo grupo. Dentre os títulos, “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, “Capitães de areia”, de Jorge Amado, e “Lucíola”, de José de Alencar.
Atualmente, os integrantes do Littera Mais se juntaram a estudantes do ensino médio do clube de leitura Educação Transforma, de uma escola particular da mesma cidade e que também surgiu de uma iniciativa dos próprios alunos. Agora, além das reuniões de cada clube, há também encontros unificados, quando o grupo conversa sobre os livros e suas vivências.
A leitura pode aproximar diferentes gerações
Isolada em casa durante a pandemia, em Uruçuca, interior da Bahia, a servidora pública Sara Oliveira decidiu estimular a leitura com sua filha. Isso porque percebeu que Keren, na época com 10 anos, precisava interagir. “Foi uma forma de ressignificar aquele período. Convidei algumas mães mais próximas e começamos os encontros em casa. Eu espalhava os livros pela sala e nos sentávamos ao redor”, conta. Então, depois da leitura entre mães e filhos, eles discutiam o tema (bullying, respeito às diferenças) e depois cada criança escolhia um livro para levar para casa. Sara ainda não sabia, mas aquelas primeiras reuniões eram o início de um clube de leitura com as crianças.
Com a notícia do clube de leitura se espalhando, a cada mês o número de participantes aumentava, conta Sara. “Foi então que o Instituto Federal Baiano, onde trabalho, nos convidou para realizar os encontros na biblioteca do campus.”
Hoje, o que era uma atividade em família, virou um clube de leitura com 120 participantes, divididos em três grupos de acordo com a faixa etária. Keren, 13, é monitora do clube e ajuda as crianças menores, que fazem seus resumos em forma de desenho. “Já as maiores registram em tópicos ou em texto o que mais gostaram da leitura”, explica Sara.
Além de perceber o vínculo ainda mais forte com a filha adolescente, Sara diz como é bom ver a filha “se sentindo parte importante desse processo criativo e coletivo”.
“A leitura continua unindo diferentes gerações e promovendo transformações sociais”
A leitura sobre a vida de mulheres inspiradoras
De uma gaiola decorada com flores e fotos de Maria Firmina dos Reis, Carolina de Jesus, Marie Curie, Anne Frank, Sônia Guajajara e Conceição Evaristo, por exemplo, crianças de quatro a seis anos são convidadas a “libertar” lá de dentro uma história. A ideia é entender melhor o papel da mulher na sociedade e construir referências.
Uma vez por mês, elas se reúnem com educadores no complexo do Alemão, no Rio de Janeiro (RJ), e a professora Isabela Vique para sessões do clube de leitura da biblioteca comunitária Thalita Rebouças, parte do projeto “Frida vai à escola”. “Em um dos encontros, falamos sobre a cientista Jaqueline Goes e as meninas ficaram encantadas com a possibilidade de uma cientista ser negra”, lembra Carolina Marinho, organizadora da biblioteca.
“Depois de ouvirem a professora, há uma conversa lúdica sobre equidade de gênero e raça na literatura, no esporte ou na ciência”, explica Carolina. Além do incentivo para que entrem no mundo da leitura, “as crianças também manifestam muita vontade de ilustrar e escrever livros e até ganhar prêmios.” De acordo com ela, “abordar a diversidade e as potencialidades das infâncias a partir da literatura é o ponto central para as interações sociais, o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças”.
“É pela linguagem que (re)produzimos conceitos e preconceitos. Portanto, é também com ela que podemos desconstruir normas sociais baseadas nas exclusões.”
A leitura de autores locais amplia visões de mundo
“A literatura é importante na minha vida desde muito cedo. Minhas tias, avó e mãe costumavam ler histórias para mim antes de dormir. Então, já aos dois anos eu recontava essas narrativas com minhas próprias palavras, ou pelo menos tentava”, lembra a professora Lorena Ribeiro.
No entanto, ela lamenta ter demorado a acessar livros de autores negros, suas principais inspirações. Por isso, acredita ser “imprescindível divulgar as produções negras nacionais e seguir inspirando quem ainda não tem essas referências”. Foi então que sentiu a necessidade de compartilhar as inquietações e as emoções que guardava a cada leitura. Assim, surgiu “Lendo a Bahia”, que reúne presencialmente e virtualmente um grupo que lê escritores locais, em Salvador (BA).
“A ideia inicial era discutir livros de autoras negras em uma livraria. Mas, com o passar do tempo, fomos chamando cada vez mais autores baianos. Isso então moldou o formato que temos hoje”, conta. Nas reuniões, muitos pais leitores costumam levar crianças e adolescentes e eles são sempre bem-vindos.
Segundo ela, perceber o interesse pela leitura durante a infância é um dos principais ganhos do clube. E não interessa o gênero. “É importante entender que histórias em quadrinhos, livros de fantasia, mangás e fanfics não são menos válidos que livros clássicos.” Nesse sentido, a principal dica da professora para estimular que participem de clubes de leitura é a atenção aos gostos desse público e, depois, sugerir outras possibilidades.
“A participação, mesmo apenas como observador, já é uma maneira de formar novos leitores”
Nos meses de outubro e dezembro há programações voltadas especificamente para crianças e adolescentes. “Elas interagem com o grupo normalmente e nós ouvimos o que têm a dizer”, diz Lorena. Umas das experiências foi ano passado, quando discutiram o livro “Os dengos na moringa de voinha”, da escritora Ana Fátima. “Fizemos um exercício de escrita criativa a partir das memórias de infância e casa de vó. Foi lindo!”