Em 2020, nos inspiremos nas experiências comunitárias das favelas

Em 2019, vimos o futuro sequestrado. Em 2020, aposto na construção de um mundo em que a infância tenha lugar como diversidade.

Ilana Katz Publicado em 05.02.2020
Imagem de uma quadra de futebol em uma favela para representar experiências comunitárias. Um menino negro está jogando bola
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Resumo

Vivemos em um país que assassina crianças. O que esperar de 2020? Nossa colunista Ilana Katz sugere que nos inspiremos nas experiências comunitárias das favelas e aprenda mais rápido a ser aldeia para as crianças.

Nesses primeiros dias de 2020, desejo, para cada criança, o exercício diário do seu poder de transformação da vida: da sua, e dos seus adultos. Que instituam as suas políticas de resistência inventiva no cotidiano das cidades, do campo e da floresta. Desejo também que cada uma dessas crianças encontre seu Emicida, aquele tipo de adulto que ri de si com elas, e que se autoriza algum maravilhamento diante da criança.

Desejo às crianças o exercício da singularidade e, sobretudo, que sejamos capazes de lhes oferecer a experiência do pertencimento. Em 2020 aposto, ainda, na construção de um mundo em que a infância tenha lugar como diversidade.

E sei que será preciso trabalhar muito pra isso. Vamos?

2019 foi o ano que nos deixou ver que o futuro estava sequestrado.

Seis crianças foram assassinadas no contexto de operações policiais nas periferias da cidade do Rio de Janeiro.

Em São Paulo, em uma única operação policial, nove jovens que estavam numa festa em Paraisópolis, morreram.

Lembro aqui apenas dos casos emblemáticos, esses que são capazes de interromper nossa rotina atribulada entre muitos compromissos e alguma diversão, e nos obrigam a reflexão sobre o mundo que estamos construindo.

Foi assim que 2019 estendeu à categoria “pessoas matáveis” à infância, e estampou nas capas dos jornais as “crianças matáveis”, já mortas.

A maioria dessas crianças vive na região periférica das mais ricas cidades do Brasil. A grande maioria dessas crianças é negra, e vive em famílias monoparentais, chefiadas por mulheres. São os ‘filho-só-de-mãe’. E nada disso é por acaso. A esse respeito, recomendo a leitura do Atlas da Violência, que demonstra como as diferenças sociais, perversamente articuladas à raça, constituem a vulnerabilidade de determinadas populações. Recomendo também a entrevista de Daniel Cerqueira, pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que coordenou essa pesquisa.

O recém-lançado Relatório de Progresso dos Direitos das Crianças no Brasil soma-se ao primeiro documento para apontar os efeitos violentos que tais diferenças imprimem sobre a experiência das crianças hoje.

Para lidar com essa situação e diante do horror que o assassinato de crianças suscita, inventamos nossas saídas e respondemos, consternados, que as crianças expostas às condições de vulnerabilidade social não têm infância, ou, no melhor dos casos, dizemos que essas crianças não têm garantido o direito à infância.

A realidade, porém, é incontornável: estas crianças estavam vivendo suas infâncias, junto a suas famílias, e referidas às suas comunidades de origem. São crianças e tinham infância, num país de infâncias. Isso quer dizer muitas coisas e muitas considerações devem ser feitas, mas nenhuma delas nos livra do fato de que vivemos em um Brasil que, enquanto constrói desigualdades, assassina crianças. Para aqueles que já sabem como vão viver e morrer, o futuro está corrompido em sua potente e fundamental condição de indeterminação do que ainda está por vir.

São crianças e tinham infância, num país de infâncias.

O boletim Direito à Segurança Pública na Maré apresenta dados alarmantes, que traduzem a desigualdade em números: em 2019, devido a operações policiais na região, as escolas da Maré ficaram fechadas por 23 dias. Isso equivale a nada menos do que um mês letivo inteiro sem aula.

Se a escola é, na cultura na qual vivemos, o lugar das crianças, o que constatamos é que esse lugar não está garantido para todos da mesma maneira. É assim que participamos de uma organização social em que algumas crianças têm acesso a direitos fundamentais e outras, não têm garantia nenhuma.

Vivemos em um Brasil que, enquanto constrói desigualdades, assassina crianças.

Foi também em 2019 que enfrentamos ameaças e retrocessos violentos com relação às politicas para as Pessoas com Deficiência. O ano começou promovendo a desarticulação das políticas para essa população do âmbito dos direitos humanos, e terminou com ameaças concretas a perspectiva inclusiva da educação, através do anúncio da publicação de uma revisão da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), que a desconfigura substancialmente. (Não deixe de ler: Educação Inclusiva: acolhendo crianças com deficiência na escola)

Em 2019, crianças perderam a possibilidade de frequentar a escola, porque tem bala no caminho ou porque alguém terá amparo legal para decidir que seu corpo ou o seu jeito de funcionar não cabe no ambiente escolar. É como se houvesse o direito de decidir que as pessoas com deficiência não fazem parte desse mundo, que para elas é preciso que exista um espaço separado no mundo.

Essas duas realidades, juntas, nos informam que estamos tirando das crianças nada menos do que o espaço público e a possibilidade de perspectivação da vida. Estamos separando mundos e trabalhando na direção contrária do pertencimento.

Roubamos encontros, extraviamos a vida.

É por essas, e também por tantas outras razões, que em 2020 será absolutamente necessário trabalhar duro pelo resgate do futuro. Será preciso que organizemos nossas ações para que o laço social suporte a diversidade da experiência humana. Precisaremos, portanto, da responsabilidade das pessoas grandes. Que sejamos adultos. E, como adultos, que sejamos capazes de escutar as crianças e respeitar seu espanto diante do acontecimento da vida.

O espanto da criança é sua boca aberta diante do que a gente acha que já conhece ou que já se acostumou. É também sua euforia e a sua indignação, suas diferentes intensidades. É isso que veicula um tipo de saber sobre a vida em relação ao qual perdemos acesso porque nos esprememos num determinado modo de conhecer. Espantar-se diante da vida não é, e nunca foi, ingenuidade.

Ingênuo é o adulto que pensa que uma criança não sabe o que diz. Ouçamos Greta Thunberg e, mais ainda: escutemos a irmã de Denys (assassinado em Paraisópolis) dizer sobre o que ele já sabia da vida. Escutemos, em pé, as cartas das crianças da Maré.

Quem sabe assim, nesse ano de 2020, a gente se inspira nas experiências comunitárias das favelas e aprenda mais rápido a ser aldeia para as crianças.

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