Famílias, estudantes e professores retratam a percepção da inclusão escolar e mostram que, com avanços e tropeços, suas experiências humanizam as estatísticas
Pesquisa publicada em 2019 pelo Datafolha revelou que a maioria dos brasileiros concorda que a inclusão de pessoas com deficiência na escola regular é benéfica para todos os estudantes - com e sem deficiência. Contudo, ainda há muito a se fazer para que a educação inclusiva seja de fato uma realidade. Experiências mostram que é preciso avançar em diálogos e estratégias para alcançar um acolhimento efetivo. Conheça algumas histórias!
Jonathan Braga, 24, traçou a trajetória comum vivida por milhões de pessoas atendidas pelo sistema brasileiro de educação pública, que inicia em escolas municipais e segue para a rede estadual até a conclusão do Ensino Médio. Durante esse período, ele se lembra de ter passado grande parte dos intervalos entre as aulas na companhia dos livros em bibliotecas ou nas salas de coordenação pedagógica das escolas, o que rendeu a ele o apelido de “Harry Potter”, por ter lido, ainda muito jovem, os sete volumes da coleção.
Aos 21 anos, descobriu que tem Síndrome de Asperger, perfil que integra o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Antes disso, outros diagnósticos apontavam para o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), informação que dificultava a qualidade do atendimento escolar e suas peculiaridades, como hipersensibilidade ao som.
“Se eu pudesse deixar um recado à comunidade escolar, pediria mais atenção às crianças com autismo”, diz Jonathan.
E sugere pequenas atitudes que podem impactar diretamente o bem estar delas, como colocar bolinhas de tênis nos pés de cadeiras com armação de metal, evitando ruídos – uma iniciativa tomada pela escola argentina Gaspar Benavento, que se espalhou pelas redes sociais.
Ainda que tenha vivido alguns conflitos em sala de aula, Jonathan reconhece a importância de pessoas com qualquer tipo de deficiência frequentarem a escola regular. Hoje, fala com muita naturalidade sobre cálculos matemáticos, fibra óptica, sistema de satélites e trabalha como inspetor na Escola Municipal Padre Egydio José Porto, mesma instituição em que estudou dos sete aos dez anos, em Franco da Rocha, região metropolitana da cidade de São Paulo. Ele sonha com um mestrado na área de arquitetura da informática e com a carreira de pesquisador, expectativa que só pode ser desenhada a partir de um histórico de inclusão.
“Se eu pudesse deixar um recado ao poder público e à comunidade escolar, pediria mais atenção às crianças com autismo”, diz Jonathan.
Para 86% dos brasileiros, “as escolas ficam melhores quando incluem alunos com deficiência”. Esse resultado aparece na pesquisa O que a população brasileira pensa sobre educação inclusiva, encomendada pelo Instituto Alana ao Datafolha, com o objetivo de traçar um panorama do entendimento da população sobre educação inclusiva. O levantamento, que ouviu 2.074 pessoas, em 130 municípios do país, também aponta que 76% concordam que “crianças com deficiência aprendem mais estudando com crianças sem deficiência”.
Se, por um lado, os resultados do estudo ressaltam um imaginário social favorável ao processo de inclusão dessa população na escola regular, também demonstram que falta informação sobre o assunto – a pesquisa revela que 67% dos brasileiros concordam que os professores não têm a formação necessária para ensinar crianças com deficiência -, restringindo a pauta a um nicho específico da sociedade. Isso cria impasses para tornar a inclusão uma luta coletiva. Não é por acaso que, mesmo com indicativos positivos, 26% das crianças de zero a 14 anos com deficiência ainda estejam fora da escola.
De acordo com o defensor público e ex-coordenador do Núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Paraná, Marcelo Lucena Diniz, este é um tema complexo, que exige diálogo amplo entre várias instituições públicas e grupos da sociedade civil organizada, para que haja tanto uma compreensão comum sobre o problema, quanto uma resposta efetiva à inclusão.
Entre as demandas mais frequentes recebidas pela Defensoria Pública, de acordo com Marcelo, está o acesso aos instrumentos de Atendimento Educacional Especializado (AEE) para crianças com deficiência.
O AEE é um conjunto de serviços, recursos e profissionais de apoio cuja função é identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando suas necessidades específicas. Ele trata das especificidades do atendimento da pessoa com deficiência, mas não se caracteriza nem como reforço, nem como substitutivo à matrícula em classe comum de escola regular.
“Cada estado possui um regulamento próprio para o AEE. No Paraná, entendemos que é preciso, além da sala de recursos – que é uma diretriz do MEC e do Conselho Nacional de Educação -, a presença de um professor com pós-graduação que acompanhe cada criança em sua especialidade e possa fazer a mediação do conteúdo do professor regente ao aluno com deficiência.”
Esse tipo de atendimento é realizado no contraturno escolar e não substitui a educação regular, conforme regulamenta a Lei Brasileira de Inclusão, de 2015. No Paraná, como relata Marcelo, há em torno de 1200 professores especializados em AEE, com a tarefa de apoio, número aquém do necessário para atender todas as crianças com deficiência do estado.
Outra barreira para a inclusão efetiva identificada pelo defensor é a falta de acompanhamento da trajetória escolar do aluno, fator que que contribui para a evasão escolar. Muitas vezes, segundo ele, o aluno é “empurrado” a passar de série nos anos iniciais. Quando chega ao ensino estadual, ele acaba abandonando a escola por apresentar um histórico de repetências. “Se houvesse um acompanhamento especializado no modelo da rede estadual, talvez a realidade fosse diferente.”
Para a coordenadora de educação do Instituto Alana, Raquel Franzim, é importante destacar que nem todos os estudantes público alvo da política de educação especial necessitam do atendimento. “Vai depender de caso a caso e das necessidades específicas”, diz.
Raquel explica que é comum se confundir o AEE com um serviço de reforço ou de “solução” de todos os desafios impostos no processo de inclusão. Pode se ainda confundi-lo com um atendimento na perspectiva da saúde. “O papel do AEE está no campo da educação e é saudável que faça relação com outros campos do conhecimento sem, contudo, perder sua potência: investigar como a escola pode ser um espaço em que pessoas diferentes possam aprender”, afirma.
Apesar dos avanços na legislação brasileira ao longo das últimas décadas, a construção dos direitos da pessoa com deficiência passou por fases distintas, que se relacionam diretamente com o estágio de percepção da sociedade sobre o próprio significado de “deficiência”.
O Manual de Inclusão da Pessoa com Deficiência, elaborado pela Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão, do Tribunal de Justiça do Paraná, destaca quatro períodos desse debate: fase da intolerância, fase da invisibilidade, fase do assistencialismo, até chegar à fase dos direitos humanos e inclusão social, com ênfase na eliminação de barreiras para o pleno desenvolvimento da pessoa com deficiência em seu meio.
Marcos na legislação brasileira – Linha do Tempo
1 em cada 10 brasileiros tem alguma deficiência, o que totaliza 7% da população.
Atualmente, o Brasil compreende o conceito de deficiência de acordo com a visão enfatizada pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em dezembro de 2006. O documento ofereceu uma resposta ao histórico de discriminação, tornando-se um marco na elaboração de medidas aos Estados para garantir o exercício de direitos em igualdade de condições com os demais.
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
(Fonte: Artigo 1º da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência)
A Lei Brasileira de Inclusão é de 2015, mas a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva possui mais de 10 anos. Nesse período, a matrícula de estudantes com deficiência em escolas regulares superou a matrícula em escolas ou salas especiais. Houve também um aumento de 70% de matrículas de alunos com deficiência na educação básica.
Atualmente, 92,1% dos estudantes de 4 a 14 anos estão incluídos em classes regulares. É essa convivência na escola comum e cada vez mais nos espaços públicos, no mercado de trabalho ou na imprensa, os responsáveis por criar a percepção dos benefícios da diversidade para todas as pessoas, com e sem deficiência.
Hoje, a inclusão no Brasil balança entre o imaginário social positivo e a ameaça política à retirada de direitos conquistados pela pessoa com deficiência.
O governo de Jair Bolsonaro publicou, em novembro de 2020, um decreto com alternativas para que a escola regular não seja a única opção dos alunos com deficiência intelectual ou física, Transtorno do Espectro do Autismo ou superdotação. Caberia a cada família – em parceria com a escola e com a equipe multidisciplinar que já acompanha o estudante – escolher se o estudante vai permanecer na instituição de ensino regular em que está atualmente, se irá ser transferido para uma escola especial ou ainda se ficará na mesma unidade escolar, mas em uma classe especial que poderá ser criada. Em caráter provisório, o decreto da nova educação para alunos com deficiência foi suspenso pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli.
Para a professora da rede pública de Franco da Rocha, Roberta Pimental, a inclusão da filha Eduarda, com síndrome de Down, na escola regular, foi essencial para o seu desenvolvimento.
“Foi na escola que ela saiu das fraldas, aprendeu a falar e ganhou autonomia”, destaca a mãe.
Aos três anos, Eduarda acompanhava seus colegas e concluiu a educação infantil com êxito, conciliando a rotina escolar com o acompanhamento e estímulos de profissionais multidisciplinares fora da escola.
“Mas quando chega no ensino fundamental, as coisas mudam.” O estágio de alfabetização, que passa a exigir mais dos alunos, do ponto de vista intelectual e físico – como a apresentação da letra cursiva, por exemplo – evidencia algumas dificuldades. “Foi quando sentimos que ela regrediu e começou a fazer rabiscos”, relata Roberta. Nesse período, a escola começou a fazer outras atividades com Eduarda, separadas das aulas com os demais alunos.
No ensino fundamental, Eduarda passou por uma fase difícil, em que ficava muito tempo sozinha e se trancava no banheiro da escola. “Montamos um esquema com a família e amigos para ligarmos para ela no recreio e ficávamos conversando por WhatsApp.”
Foram muitas idas e vindas nos 16 anos até o dia da formatura de Eduarda no ensino médio. Roberta conta que algumas escolas negaram a matrícula da filha, alegando que não tinham estrutura para recebê-la.
O que fazer se escola se recusa a matricular estudantes com deficiência?
Escolas regulares são obrigadas a matricular estudantes com deficiência, sejam elas públicas ou privadas, como estabelecido na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. A recusa da matrícula, inclusive, é considerada crime segundo o artigo 8º da Lei 7.853/89.
“Você vai escutando coisas que vão te machucando ao longo dos anos”, lamenta a mãe.
Apesar das dificuldades, ela garante que a escola regular foi importante para que a filha estabelecesse vínculos afetivos e de convivência.
De fato, Roberta vai ao encontro dos resultados da pesquisa do Datafolha, que afirma que 87% dos pais de crianças com deficiência têm medo de que seus filhos sofram preconceito na escola. Isso porque ela sabe que incluir não significa apenas apresentar e exigir em reuniões com a direção da escola para que as leis sejam cumpridas, mas é preciso enfrentar impasses sociais e culturais, que possam gerar maior acolhimento e evitar constrangimentos.
“Nosso termômetro sempre foi a felicidade dela e o quanto se sentia bem na escola. E ela ama esse ambiente”
Eduarda tem Síndrome de Down. Estudou em escolas regulares, em Franco da Rocha, região metropolitana da cidade de São Paulo, e se formou no ensino médio aos 16 anos.
A história do cineasta Daniel Gonçalves, 36, encontra-se em alguns momentos com a de Roberta. Morador do Rio de Janeiro, Daniel passou por três escolas privadas desde a pré-escola.
Ele nasceu com uma deficiência que nenhum médico foi capaz de diagnosticar e foi alfabetizado usando uma máquina de escrever. “Pra mim não foi um problema. Pelo contrário, a máquina fazia um super sucesso na escola. Todos queriam digitar. Com a máquina de escrever eu não passei por nenhum tipo de adaptação de conteúdo.”
Diretor do filme “Meu nome é Daniel”, documentário narrado em primeira pessoa que relembra sua infância, por meio de registros de família, hoje ele diz reconhecer que teve sorte em ter passado pelas escolas que passou.
Tive sorte em ter encontrado pessoas interessadas em fazer minha inclusão de fato
“Eu fui o único amigo com deficiência de muitos. Crescer com alguém que tem algum tipo de deficiência é muito potente. Foi bom para eles e para mim. Eu não me achava diferente deles, eu estava ali. Eu acredito que este seja o melhor cenário. Uma escola inclusiva pode formar pessoas que respeitam as diferenças e acho que a gente cresce aprendendo e vivendo o mundo diverso como ele é. Acho que todo mundo ganha quando estamos juntos.”
Jornalista, morador da zona sul do Rio de Janeiro, nasceu com uma deficiência que nenhum médico foi capaz de diagnosticar. Só estudou em escolas regulares em toda trajetória escolar. É diretor do documentário “Meu nome é Daniel”
Ana Clara Maceno é professora do Centro de Educação Infantil SESC Portão, em Curitiba. Trabalhou com crianças com autismo em sala de aula e compartilha experiências positivas de aprendizado coletivo, que mesclam atividades lúdicas, brincadeiras e trabalhos em grupos.
“Sempre tomamos cuidado para que a criança com deficiência saiba exatamente tudo o que vai acontecer, por meio de imagens que temos na sala, o que também ajuda os demais a se envolverem nas atividades do dia a dia.” Se acontece mudanças na programação, a criança deve ser avisada. Ela explica que essa previsão ajuda a evitar o estresse ou irritação, e permite que os alunos com deficiência sejam incluídos na programação regular.
“Para a escola, é sempre um desafio lidar com o ‘novo’, mas o principal existe, que é abertura e vontade de criar um ambiente cada vez mais rico de experiências, afeto, oportunidades e de vivências para valorizar esse momento único que é a infância”
É comum que, no início da educação infantil, algumas crianças com deficiência não consigam se comunicar por meio da fala, se alimentar sozinhas ou usar o banheiro, fator de insegurança para pais, mães e cuidadores. Por isso, segundo Ana Carla, a parceria entre famílias, escola, atendimento especializado e com os próprios alunos é uma das chaves para transformar a sala de aula em um ambiente de confiança. “Isso se alcança com um diálogo aberto, sem expectativas ou pré-julgamentos e, especialmente, sem comparações entre as crianças, já que cada uma possui seu próprio tempo de desenvolvimento.”
A pedagoga Raquel Franzim, que já atuou como professora, coordenadora pedagógica e formadora de professores, também reforça que é fundamental que os educadores, com o apoio da coordenação, da direção, da comunidade escolar e de toda a rede de proteção social e dos próprios estudantes (com e sem deficiência), se comprometam com a pesquisa, criação e/ou oferta de apoios necessários para efetivar o direito de se estar na escola e se desenvolver e aprender. “Essa não é uma aprendizagem natural – ninguém nasce sabendo – mas é fundamental aprender a trabalhar em rede e de forma colaborativa com atores dentro e fora da escola.”
Com avanços e tropeços, as histórias de inclusão passam a dar nomes, rostos e sentimentos aos números divulgados, que, embora sejam positivos, evidenciam as pedras no caminho da inclusão efetiva. Sobretudo, humanizam as estatísticas, fazendo um convite para que toda a sociedade se envolva na luta pela oferta de oportunidades iguais para o desenvolvimento das potencialidades de cada um.
Colaborou: Mayara Penina
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Jonathan Braga
Tem Síndrome de Asperger e trabalha como inspetor na Escola Municipal Padre Egydio José Porto, mesma instituição em que estudou dos sete aos dez anos.