Ensino domiciliar: o que está por trás dessa discussão?

Conversamos com especialistas para esclarecer as principais dúvidas em relação ao projeto de lei que regulamenta o homeschooling

Raquel Paula Sheila Ana Calgaro Publicado em 25.05.2021
Criança, de pele negra, vestindo roupa branca, está escrevendo em um caderno com um fone de ouvido, em modo de educação domiciliar
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Resumo

Em um país com desigualdade no acesso aos direitos básicos, quem defenderá e garantirá os direitos de todas as crianças? Conversamos com especialistas para entender o que está por trás do debate de regulamentação do ensino domiciliar.

Imagine uma sociedade em que cada família pudesse decidir o que acha melhor para si? Afinal, eu tenho o direito de escolher o que considero mais apropriado para meu filho e ensiná-lo, segundo meus valores e crenças, certo? Agora imagine se essa sociedade fosse desigual e segregada, sem muita oportunidade de se conviver com as diferenças. Como seria?

Toda sociedade de alguma maneira precisa de coesão para existir, senão seríamos apenas indivíduos. A Constituição Federal, por exemplo, é uma das bases para uma nação coexistir: é ela que organiza e sistematiza um conjunto de preceitos, normas, prioridades e preferências que a sociedade acordou. É um pacto social constitutivo de uma nação.

A partir dessa premissa, questionamos: será que a família pode ocupar o lugar de instituição total e escolher formato de ensino e por quais espaços a criança deve circular? É possível garantir a aprendizagem de todos, defendendo um ensino inclusivo e de qualidade, sobretudo dos mais vulneráveis, na educação domiciliar?

O que pensam as crianças?

Antes de começar qualquer discussão entre nós, adultos, precisamos ouvir crianças. O que elas acham de aprender em casa em vez de ir à escola? Com a palavra:

Liz, 9 anos
“Eu acho que ia ser um pouco triste, porque eu não ia conseguir ver meus amigos e meu professor, e eu amo eles!”

Clara, 7 anos
“Eu acho que aprendo mais na escola, e seria muuuuito chato [aprender em casa]”

Gracyane, 8 anos
“Eu não acho legal, eu sentiria muita falta dos meus amigos, da minha professora. Eu prefiro ir pra escola.”

Maria Clara, 7 anos
“Chato, porque a mamãe não tem paciência e a professora tem. Aí a mamãe teria de ter mais paciência como a professora tem”

Pelos relatos, as crianças revelam a falta que faz a presença dos amigos, dos professores, do ambiente de trocas e convívio entre pessoas diversas. A escola é o espaço onde a criança se desenvolve como sujeito e amplia o seu universo de relações para além do âmbito familiar. É também um lugar de construção do sentimento de pertencimento, de percepção das diferenças, do desenvolvimento de empatia, do pulsar das emoções na relação com o outro e na existência em comunidade.

Os principais ‘porquês’ da educação domiciliar

A partir de dúvidas dos nossos leitores sobre a educação domiciliar, conversamos com especialistas das áreas de pedagogia e psicologia para nos ajudar neste debate: Raquel Franzim, pedagoga e diretora de educação do Instituto Alana, Luciana Alves, pedagoga e diretora de escola, e a psicanalista e pesquisadora na área da infância Ilana Katz, que também é colunista do Lunetas.

  • Os pais têm direito à escolha pela educação domiciliar ou escolar para seus filhos?

Raquel Franzim – “Não se trata de uma discussão de liberdades: o direito à matrícula é do estudante, e não da família, previsto na Constituição Federal. Todo direito envolve deveres: se o direito é da criança de estar na escola regular, há também um dever, e este dever é partilhado pela família, Estado e sociedade.”

Ilana Katz – “A escola é historicamente construída como serviço de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Esses direitos envolvem ações de segurança alimentar, fomento à cidadania, ampliação da participação e inclusão social, promoção de saúde mental – esta última radicalmente ligada à ideia da vida em sociedade, do encontro com as diferentes formas e modos de vida que a escola oferece.

Com que ideia de família entramos nesse debate? O que a gente pensa sobre alcance, limites, poder e força da família para considerar que a escolarização das crianças deve ser por ela conduzida?

Além disso, quando falamos ‘meu filho’, o que significa? A criança, desde o instante em que nasce, é um sujeito de direitos. O ‘meu’ que se enuncia em ‘meu filho’ representa o adulto de referência no cuidado com esse sujeito, e não do filho como propriedade.”

“Uma escolha individual jamais pode se sobrepor a um direito social”

Luciana Alves – “A educação já foi um projeto individual não no sentido de indivíduo, mas no sentido de família. Houve um tempo em que o pensamento religioso ou mítico dominava o modo como a gente explicava o mundo. Quando este pensamento já não era mais suficiente, surgiram os pensamentos filosófico e científico, e houve a necessidade de ir além do que as famílias sabiam ensinar, para que os sujeitos pudessem compreender o mundo a partir destas novas bases. Aprovar um projeto de ensino domiciliar seria regredir aos tempos da Idade Média.”

Em resumo, o direito à escola é um direito da criança e do adolescente, previsto na Constituição Federal. Não é uma discussão exclusiva de liberdade individual ou de escolha das famílias.

  • Cabe exclusivamente à escola a função da educação?

Raquel Franzim – “A escola e a família são ambientes diferentes de aprendizagem, e isso independe dos pais serem bem intencionados, que é o caso da maioria dos pais que já adotam o ensino domiciliar como prática. A escola é produção de ciência, é conhecimento – físico, cognitivo, socioemocional, social, cultural, natural. As famílias têm grande papel na formação das crianças como cidadãos e na transmissão de valores morais, partilhando isso com as escolas, com a sociedade, com o Estado. Mas é diferente educar, ensinar e aprender a produzir conhecimento científico. É como ficar doente: todos nós podemos nos cuidar em casa se adoecemos, mas isso não substitui o conhecimento dos profissionais da saúde ou não substitui a ida a um serviço de saúde. Ambos são complementares.”

Segundo o artigo 25 da Constituição Federal, a educação é um dever do Estado, mas também da família e da sociedade. Defender o ensino escolar não significa afastar os pais da escola, pelo contrário, é preciso que ambas as partes dialoguem sempre, justamente para lutar por uma educação de qualidade. Sabemos que a educação integral não acontece só dentro da escola, mas na família, na rua, no convívio com o outro – afinal, como diz o provérbio africano, “para educar uma criança é preciso uma aldeia inteira”.

  • O ensino domiciliar é capaz de promover um espaço integral de diversidade?

Luciana Alves – “Uma sociedade não existe se cada pessoa pensa e age a partir de princípios próprios. Nesse sentido, a escola é a instituição principal onde as crianças consolidam não só valores e novos conhecimentos, mas comportamentos esperados socialmente. Ao voltar a um modelo de educação familiar, mesmo em uma família com base sólida de conhecimento científico, perdemos algo indispensável: a convivência com a diferença.”

“Se eu fico circunscrito à minha família e ao meu círculo de convivência, não tenho contato com outras pessoas que pensam e vivem diferente de mim. Assim, acredito que a minha família é o modelo e a régua do mundo inteiro”

“Além disso, há uma discussão sobre as escolas não espelharem os anseios das famílias. Na verdade, as escolas nunca espelharam os anseios das famílias. Este é um discurso que está sendo construído com bases ideológicas e, em alguns casos, religiosas, limitando o acesso da criança a conteúdo sobre gênero, educação sexual, diversidade racial. Isso não só é um projeto retrógrado, em termos históricos, mas em termos sociais.”

Ilana Katz – “Nosso melhor possível é com os outros: com as diferenças pequenas, com as dificuldades maiores. Sem o outro, não há pertencimento. Uma comunidade se tece pelo interesse comum, e não entre iguais. A escola é um espaço privilegiado de alargamento do mundo e de construção de uma coletividade.

Portanto, a discussão sobre permitir que a criança ou o jovem frequentem ou não um espaço público não cabe aqui. Não se trata apenas do que você supostamente poderia fazer com o seu filho, mas do impacto que isso tem no tipo de sociedade que queremos. Outorgar esse poder à família reduz a experiência da criança ao seu controle. É, de alguma maneira, tomar a família como uma instituição total, autorizá-la a circunscrever o espaço de circulação da criança.”

“A primeira experiência de socialização não pode ser a última. A aprendizagem é uma experiência que se faz com os outros, a gente aprende a viver no exercício complexo da vida”

“As crianças e jovens são atores indispensáveis para a transformação do mundo na direção de uma sociedade mais justa, e a escola é o espaço privilegiado para isso.”

Entendemos que o movimento de pais que adotam o ensino domiciliar não compreende isolar os filhos em casa: há um esforço para promover trocas e convívio social. No entanto, uma das questões mais importantes para o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças que frequentam ambientes coletivos é poderem, ao mesmo tempo, aprender sobre si mesmas: quem são, o que as identifica perante o outro, como é conviver com as diferenças. É dever da escola promover um ambiente cada vez mais rico em experiências, afeto, oportunidades e vivências para valorizar a infância.

  • Como podemos garantir educação de qualidade se as escolas têm vários problemas de infraestrutura e métodos de ensino?

Raquel Franzim – “Há um universo grande das famílias educadoras que é contra esta escola que está aí, em que o projeto, o currículo, as metodologias, a avaliação não dialogam com as singularidades dos estudantes e, muitas vezes, os limitam e os excluem da incrível jornada que pode ser a educação escolar.”

“A gente precisa reconhecer que a escola não é, em essência, nem boa, nem ruim. A escola que temos é a escola real. E a escola real é problemática. Estas críticas precisam ser enfrentadas não com a exclusão da escola, e sim com sua transformação”

“A qualidade da educação, na grande maioria das pesquisas, tem a ver principalmente com qualidade relacional, técnica e profissional dos professores. Ser professor exige estudo e formação, é uma categoria profissional. Sabemos que ter professores mal formados significa impactos negativos para os processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, portanto não podemos ter nenhuma política que induza que pessoas não formadas em pedagogia ou com licenciaturas específicas, sem um sistema público de acompanhamento e formação continuada, que só é possível dentro da escola, venham a assumir a função da docência, que é profissional.”

Luciana Alves – “É um debate delicado, porque também há famílias muito bem formadas que veem na escola o oposto: a escola como instituição que vai diminuir o potencial das crianças – por causa de limitações curriculares e orçamentárias – e preferem educar seus filhos sozinhas. Embora talvez estas famílias deem conta da construção de um conhecimento com bases científica e filosófica, possivelmente elas não terão a outra parte, que é esta necessidade de se relacionar com as diferenças numa instituição que não é regida pelo afeto familiar, mas por regras sociais isentas destas paixões familiares.”

Os problemas que as escolas apresentam devem estar no centro da discussão. Nós, como sociedade, precisamos defender a revisão do currículo escolar e a proposta pedagógica, o investimento em infraestrutura das escolas, a formação docente qualificada, aspectos da avaliação, entre outros. Devemos exigir uma educação para todos, libertadora, que respeite as diferenças. Uma escola capaz de trabalhar uma proposta político-pedagógica alicerçada a uma pedagogia crítica, capaz de desafiar o educando a pensar criticamente a realidade social, política e histórica.

  • O homeschooling como política pública pode impactar a verba destinada à educação básica?

Raquel Franzim – “No Brasil, faltam estudos isentos sobre os impactos no desenvolvimento e educação das crianças que estudam em regime domiciliar. A mídia comunica casos individuais e específicos de pessoas que estudaram na modalidade domiciliar e que têm acesso ao ensino superior. Estes precisam ser reconhecidos, contudo não podem ser base de discussão de política pública em educação.

A partir do momento que uma lei é regulamentada, Ministério da Educação e secretarias de educação terão de supervisionar e acompanhar essas famílias que adotam a educação domiciliar – isso tudo gera ônus ao Estado. De onde virão os recursos, não só financeiros mas operacionais, se passamos por uma diminuição brusca de investimento destinado à educação?”

Ilana Katz – “Se as crianças e jovens não vão usar a escola, com que argumentos vamos reivindicar o já tão escasso investimento em educação?

Quando a escola é desinvestida, a corda estoura primeiro do lado de quem precisa mais que o Estado atue na defesa de seus direitos e na construção de equidades para possibilitar o acesso a direitos civis. Essas são as populações vulnerabilizadas, negligenciadas e que sofrem por não acessarem direitos que deveriam estar garantidos.”

“Precisamos de programas e políticas que incentivem a busca ativa de crianças e jovens que estejam fora da escola e que possam também fazer da escola um lugar acessível, saudável e viável para todos”

Será preciso investimento público para criar um sistema de acompanhamento das famílias do ensino domiciliar. O que está em discussão no momento é de onde sairão estes recursos: possivelmente do mesmo fundo destinado à educação básica, que vem sofrendo muitos cortes nos últimos anos, prejudicando ainda mais a qualidade do ensino público.

  • Por que a educação domiciliar pode aumentar as desigualdades educacionais no Brasil?

Luciana Alves – “Com a pandemia, as famílias ficaram responsáveis por regular a educação dos filhos, desde os equipamentos utilizados até a sua mediação/interação. As famílias com menos condições, seja financeiramente ou com baixa escolarização, não deram conta e não têm que dar, porque isso não é responsabilidade só da família, mas da sociedade. Se as famílias que estão reivindicando o homeschooling não tiverem um preparo adequado, teremos uma geração inteira de pessoas com defasagens enormes em termos de construção de conhecimento e de habilidades de trato social. E a gente sabe quem são estas famílias: são as famílias pobres e as famílias negras.”

Ilana Katz – “A produção de desigualdades tem efeito direto sobre toda a sociedade, e mesmo aqueles que supostamente poderiam ter uma escola de excelência, apesar do desinvestimento estatal na educação, terão de viver em um espaço público regulado pela existência das desigualdades e das negligências. Como diz Roberta Estrela Dalva: ‘Se a paz não for para todos, não será para ninguém.’”

Como é possível pensar a implementação de uma política pública de ensino domiciliar, considerando a diversidade brasileira e o cenário de desigualdades em que vivemos? A maioria das famílias brasileiras passa por jornada exaustiva de trabalho, instabilidade financeira e até situação de fome. É na escola que essas crianças brasileiras encontram oportunidade de convívio com outras crianças, acolhimento, segurança alimentar e proteção contra possíveis violações ou violências.

A escola traz o senso de pertencimento, de possibilidades, de encontros

Cada um de nós é único. Então, como a diversidade faz parte do ser humano, a escola é um espaço não só de convivência com essas diferenças, mas também um lugar para pensar criticamente a prática educadora. Para garantir que a educação esteja realmente alinhada aos interesses e às necessidades de aprendizagem dos estudantes, é preciso garantir a possibilidade de fazer junto.

“Fico me perguntando que contrapé é esse que estamos encenando para considerar, a despeito de toda a história da humanidade, que a vida segregada construiria qualquer tipo de qualidade para nós? Se ainda não aprendemos que a segregação é a mais radical violência que o humano pode produzir – porque isso culmina com a decisão pelo valor da vida dos outros – precisamos voltar rápido pra escola.”Ilana Katz

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