“Disseram que eu não podia mudar o mundo, que não valia a briga, mas uma vozinha soprou em meu ouvido… talvez você consiga.” A partir desse sussurro, a protagonista de “Talvez você consiga” (Pequena Zahar), de Imogen Foxell, acredita na potência de uma semente. Aos poucos, ela acompanha uma árvore dar frutos, os rios se recuperarem e a natureza ser novamente habitada por “bichos, aves, abelhas tantas.”
A possibilidade de acompanhar do que a vida é capaz quando há cuidado investido é uma sabedoria ancestral que os povos originários têm defendido manter. Proteger a natureza significa proteger sua casa e de onde podem acessar seus direitos básicos de saúde e alimentação, por exemplo. Por isso, o que eles mais temem é que os projetos de destruição dos territórios habitados por milênios sejam concretizados.
“Nossos antepassados sempre nos falaram dos surgimento das plantas, rios e animais. Mas, agora, o STF [Supremo Tribunal Federal] quer apagar a nossa história”, diz Alessandra Korap Munduruku, líder indígena e vencedora do prêmio Goldman de Meio Ambiente, em seu pronunciamento contra o marco temporal.
Nesse mesmo sentido, o escritor e ativista Daniel Munduruku considera o marco temporal “uma aberração”, porque fere os direitos da existência indígena. “Não apenas para as crianças, mas para toda a população que é guardiã do território e da riqueza ambiental do país e faz a diferença no mundo todo.”
O que é o marco temporal?
O marco temporal propõe uma série de condições aos direitos dos povos indígenas em ocupar suas próprias terras. Conforme o texto, apenas as terras habitadas desde 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal, seriam, de fato, propriedade indígena. Além disso, prevê a revisão de terras demarcadas após a mesma data.
“[O marco temporal] vai roubar o futuro das crianças, atingindo imediatamente as crianças indígenas”, afirma Daniel Munduruku. Para Alessandra Munduruku, o marco temporal não faz sentido. Isso porque “vivemos há milhares de anos; a gente não nasceu no dia 5 de outubro de 1988″, diz. “Então, apagar a nossa história é apagar também o que está acontecendo com o planeta, que está doente e ferido.”
“Eles arrancaram nossas folhas, quebraram nossos galhos, derrubaram nossos troncos. Mas, esqueceram do fundamental: arrancar nossas raízes!” – Maninha Xukuru, liderança do movimento indígena
Como as crianças podem ser afetadas pelo marco temporal?
Sem demarcação, toda a rotina da criança fica comprometida. É o que afirma Dineva Kayabi, professora da escola indígena da TI Juporijup, no Mato Grosso, e vice-coordenadora do Centro Amazônico de Formação Indígena (Cafi). Por isso, ela explica que garantir os direitos básicos da infância é também garantir que meninas e meninos cresçam em um território seguro, sem invasões e conflitos violentos. “Com território, as crianças têm o lugar delas para pescar, viver o dia a dia com os pais e saber os pontos sagrados da conexão com a natureza.”
A partir do que Dineva Kayabi, Daniel Munduruku e Alessandra Korap Munduruku relataram ao Lunetas, destacamos seis pontos fundamentais para entender melhor como o marco temporal atinge os direitos básicos das crianças indígenas.
Veja 6 pontos:
- 1. Saúde
Contaminação por doenças e epidemias estão entre as implicações na saúde da comunidade causadas pela presença de não indígenas nos territórios demarcados. Malária, pneumonia, desnutrição crônica e doenças evitáveis como a diarreia são as principais causas de mortalidade infantil nas terras indígenas. Só entre os yanomami, 570 crianças com menos de 5 anos perderam a vida desde 2018. - 2. Alimentação
Quando garimpeiros e mineradoras invadem terras indígenas, por exemplo, desmatam e contaminam as águas dos rios com mercúrio e outros metais pesados. Nessa perspectiva, vidas são ameaçadas desde o ventre, quando mulheres grávidas se alimentam de peixes contaminados. Além disso, a água para consumo deixa de ser potável e a terra fica improdutiva para o plantio, o que leva a população indígena a incluir produtos ultraprocessados na alimentação de suas crianças.
“A gente quer beber água limpa, ver a floresta em pé e ver nossos filhos saberem a nossa cultura, as línguas, as danças, as histórias. O marco temporal não pode apagar a nossa história” – Alessandra Korap Munduruku
- 3. Educação
O Ministério da Educação assegura uma educação escolar indígena diferenciada, laica, bilíngue, de qualidade e que o funcionamento das escolas sejam no interior das áreas indígenas. Além disso, propõe adequação dos conteúdos curriculares e materiais didáticos. Mesmo assim, nem todas as crianças aprendem na escola a língua materna de seu povo ou precisam se deslocar para as áreas urbanas para estudar.
“Na escola, elas aprendem a teoria. No território, elas estão aprendendo a ser livres. Aqui, a gente não ensina a disputar poder” – Dineva Kayabi
- 4. Cultura e saberes
Com a abertura das terras indígenas para outras atividades, o choque cultural pode ocorrer em vários sentidos, desde o questionamento de suas identidades até as implicações de saúde. Com isso, os saberes tradicionais e a perpetuação da cultura entre as gerações ficam ameaçadas.
“As crianças já estão impactadas pela chegada das cidades em seus territórios. Com o marco temporal, a continuidade dos saberes fica comprometida porque isso vai impactar na autoestima, nas escolhas e nas possibilidades das crianças” – Daniel Munduruku
- 5. Moradia e convívio familiar
A revisão de terras já demarcadas pode influenciar no direito à moradia segura e ao convívio familiar de crianças indígenas. Isso porque, caso os territórios sejam reduzidos, muitas famílias terão de mudar de casa, o que pode separar crianças de seus avós, bisavós, tios e tias. Ou então, elas podem ir morar em ambientes mais populosos, o que muda as condições de vida com as quais já estavam habituadas.
“Vai voltar ao tempo em que nossos avós e pais foram tirados das terras à força. Isso é muito triste, porque ser tirado de um território para ir para outro é como ser tirado dos braços de uma mãe” – Dineva Kayabi
- 6. Brincar livre
Crianças indígenas brincam no rio, na floresta, nos quintais de casa. Junto de seus parentes, nas comunidades, a liberdade é uma garantia quando os territórios não estão ameaçados. Porém, a presença de pessoas não indígenas põe em risco a segurança dessas crianças. Casos de violência com as disputas de terra e abusos sexuais são cada vez mais frequentes.
“As crianças estarão fadadas a não ter mais um território para chamar de seu. Além disso, elas correm o risco de crescerem infelizes” – Daniel Munduruku
Neste 30 de agosto, o Supremo Tribunal Federal retoma a votação do PL 2.903/2023, chamado de marco temporal, que estava suspenso desde junho. Em contrapartida, diversos movimentos sociais indígenas e não-indígenas participam de uma mobilização nacional pressionando o STF para uma votação contrária ao PL. Isso porque, se aprovado, o projeto afetará 1,7 milhão de indígenas do país, sobretudo a vida das crianças.