Diário de Myriam, o olhar de uma criança sobre a guerra na Síria

A história de Myriam foi noticiada no jornal infantil Joca. Depois disso, as crianças enviaram cartas à redação pedindo para saber mais

Da redação Publicado em 25.10.2018

Resumo

O livro "O Diário de Myriam" é fruto das memórias de uma menina de 13 anos, chamada Myriam Rafik. Entre os 6 e os 12 anos, ela anotou em um diário tudo o que via - e vivia - em sua rotina na cidade de Alepo, na Síria.

“Sei reconhecer as armas, sei reconhecer as bombas, mas, principalmente, sei reconhecer a morte”.

O relato acima está no livro “O Diário de Myriam” (editora Darkside), e é fruto das memórias de uma menina de 13 anos, chamada Myriam Rawick. Entre os seus seis e 12 anos, ela anotou em um diário tudo o que via – e vivia – em sua rotina na cidade de Alepo. A guerra da Síria fez parte de sua infância, e sua história compartilha com o resto do mundo como é vivenciar os primeiros anos de vida em um país sitiado pela violência, sem direitos garantidos nem espaço para ser criança.

A história de Myriam foi noticiada pela primeira vez no jornal Joca, voltado para o público infantil. Depois de conhecer a biografia da menina, os leitores mirins enviaram centenas de cartas à redação do jornal, pedindo para saber mais.

“A ideia era informar as crianças e os jovens leitores sobre o heroísmo dessa menina e dialogar sobre o que acontece no mundo. A iniciativa deu tão certo que, depois de alguns dias, a página estava cheia de comentários de crianças pedindo para ler o livro”, conta Stéphanie Habrich, diretora do Joca.

E o protagonismo infantil não parou por aí. Um grupo de crianças do interior de São Paulo, que leram os textos sobre a crise dos refugiados sírios no Joca, organizaram um brechó com suas próprias roupas e entregaram o dinheiro a algumas famílias de refugiados que estão no Brasil. Outras crianças organizaram uma olimpíada após terem lido – também no Joca – sobre o problema da obesidade entre as crianças brasileiras.

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Divulgação

A menina Myriam Rawick tinha 6 anos em 2011, quando começaram as manifestações contra o presidente Baschar Al-Assad, em Alepo, na Síria.

Engajadas e ao mesmo tempo curiosas por essa outra realidade distante, as crianças sugeriram que o jornal entrasse em contato com editoras, apresentando a história de Myriam e solicitando que ela virasse um livro. E assim aconteceu. Hoje, o livro é uma espécie de O Diário de Anne Frank sírio, e chama a atenção do mundo todo para uma realidade que acontece todos os dias em locais que vivem situações de guerra.

O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância fez uma compilação de fatos marcantes sobre violações de direitos de meninas e meninas em zonas de conflito, e por meio deles é possível perceber como as crianças são o alvo mais frágil da violência física e emocional que a guerra impõe. Clique aqui para saber mais sobre esse material.

Em 2018, a editora carioca Darkside traduziu para o português o diário da menina, com histórias colhidas pelo repórter de guerra e escritor francês Philippe Lobjois, que viajou para Alepo em dezembro de 2016, quando a capital econômica da Síria estava em pleno caos político. O livro foi traduzido por Maria Clara Carneiro, com fotografias de Yan Boechat.

“Seu diário, assim com o de Anne Frank no passado, testemunha a violência que ela e tantas outras crianças enfrentaram, sem compreender o que acontecia ao redor”

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“O Diário de Myriam”

– “A Guerra da Síria já deixou quase meio milhão de mortos, e fez com que metade da população síria se tornasse um imenso e desorganizado exército de 12 milhões de refugiados. É pelos olhos de Myriam, na passagem da infância à adolescência, que acompanhamos a rotina de medo – e também de esperança – em um dos conflitos mais devastadores da História recente”, diz a contracapa da publicação.

Leia um trecho do livro “O Diário de Myriam”:

“Meu nome é Myriam, tenho treze anos. Cresci em Jabal Sayid, bairro de Alepo, onde também nasci. Um bairro que não existe mais. Tenho medo de esquecer essas imagens, essa cidade que desapareceu, esse mundo que afundou no caos.

​Outro dia, mamãe me disse que meus olhos não eram os únicos guardiões de minhas lembranças. Eu podia também confiar em meus dedos, meus ouvidos, meu nariz. A volta da escola tem o cheiro do chá de gengibre do café Ammouri; os sábados cheiram a pão redondo e quente da padaria da esquina; os domingos têm o cheiro dos círios da igreja de São Jorge; as caminhadas pelo velho suque, de sabão de azeite e especiarias. Meus aniversários têm gosto de mel; o verão tem gosto de tâmaras; a primavera, de damascos de Damasco; e o inverno, do chá com canela da minha avó.

Até que tudo acontecesse, cresci nesse paraíso de cores, cheiros, sabores. Até que tudo acontecesse, me bronzeei sob o sol de Alepo, bebi a água de Alepo, tomei banhos com sabonete de Alepo.

Adorava minha cidade, meu bairro. Gostava de sentir o calor de suas pedras polidas pelo tempo, de ouvir o canto dos almuadens, de me proteger à sombra das igrejas. Eu era feliz, leve. E não imaginava que a vida pudesse ser de outra forma.

Com mamãe, nós caminhávamos, muito, o tempo todo. De oeste a leste, de norte a sul. Da cidadela que vigia a cidade velha até a igreja de São Elias que parece um castelo.

​No verão, ao final da caminhada, parávamos embaixo dos eucaliptos da praça para tomar um sorvete de creme salpicado de pistache. Ao fechar os olhos, ainda sinto esse cheiro de leite e de flor de laranjeira. Às vezes, quando saíamos de manhã cedo, parávamos em um café da cidade velha. Em um pátio de um caravançarai onde um pequeno restaurante havia se instalado; comíamos tomates, pepino, azeitonas, queijo e pão de azeite e ervas.

Um dia, quando eu era bem pequena, papai disse: “Alepo é a estrela da terra”. E ele tinha razão. Alepo era um éden, era o nosso éden.”

Clique aqui para saber mais sobre “O Diário de Myriam”.

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