As crianças estão estressadas e sobrecarregadas de diagnósticos. E agora? A psicóloga Biancha Angelucci explica o fenômeno da patologização da infância
Questões sociais e culturais que afligem as pessoas frequentemente são convertidas em problemas dos indivíduos, que são medicados em nome de uma normatização de conduta. Esse fenômeno tem nome: patologização. Vamos falar sobre a relação disso tudo com a infância? Confira a entrevista com a psicóloga Biancha Angelucci sobre o fenômeno da medicalização da vida, em um mundo em que as crianças estão cada vez mais estressadas, hiperestimuladas, e sobrecarregadas de diagnósticos como déficit de atenção e transtorno de déficit de atenção.
Na escola, Joana passa duas horas tentando escrever o próprio nome. Miguel se levanta da cadeira a cada dois minutos. Laura passa o dia quieta, e brinca sozinha. Caio grita sem motivo aparente, e só pega no sono com remédios. Os quatro estão em idade escolar, e, portanto, vivenciam a tal “fase peculiar de desenvolvimento”, como preconiza o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), apoiado na Constituição Federal. São crianças. Mas são iguais? Elas são as crianças que os adultos ao seu redor esperam que eles sejam?
Apesar de os nomes aqui serem fictícios, essas são crianças que existem e que muitas vezes são enquadradas como hiperativas, disléxicas e uma série de outros rótulos científicos por apresentarem comportamentos que desviam de regras culturalmente construídas.
O sofrimento das crianças pode sim demandar o apoio de diferentes profissionais ou intervenções. “As situações que causam sofrimento a uma criança podem ser de diversas ordens, inclusive orgânicas. Discutir medicalização da vida no campo da saúde não significa negar a criança seu direito ao atendimento, mas sim pensar qual a função desses atendimentos, do diagnóstico e o quanto o excesso de diagnósticos responde a uma situação que angustia os adultos que não sabem nomear o que se passa com as crianças, sem necessariamente cuidar do sofrimento da criança”, explica a psicóloga Isabel de Barros Rodrigues.
É no limiar entre essas duas prerrogativas – a de reconhecer o sofrimento da criança e de seus cuidadores, e de não reduzir o sujeito a um diagnóstico – que se situa afinal o debate sobre a despatologização da infância. E é sobre este tema que vamos tratar nesta matéria, um assunto que muita gente pensa desconhecer, mas que está mais perto do cotidiano com as crianças do que podemos imaginar.
O Brasil desponta nas estatísticas de saúde como um dos maiores consumidores de pretensos diagnósticos e seus supostos tratamentos. Por consequência, é um dos maiores consumidores de fármacos como Ritalina e derivados.
Referência nesta área de estudo no Brasil, a psicóloga Biancha Angelucci, professora doutora no Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação na Faculdade de Educação da USP, nos ajuda a definir, perspectivar e questionar conceitos fundamentais quando falamos de saúde da criança e como as famílias, escola e comunidade podem se posicionar diante deles.
“[Na lógica da medicalização] Condições humanas viram transtornos que devem não só ser tratados, mas medicalizados”
Antes de pensar nos porquês da despatalogização, cabe entender o que é, afinal, patologizar em si. A patologização diz respeito ao ato de patologizar, que é transformar em doença ou anomalia, ou seja, o efeito de considerar patológico/doentio, ainda que não seja.
O que tem por trás desse nome complicado de dizer sem tropeçar na própria língua é muito mais simples do que aparenta: a urgência de entender a saúde como uma pulsão de vida, e não como pura e simplesmente ausência de doença. Além disso, traz para o centro da conversa a necessidade de trazer para o debate público o que é do nível social, no lugar de responsabilizar os indivíduos por condições que eles só apresentam por estarem inseridos em um determinado contexto – social, cultural, político.
No Brasil, há diversos grupos e fóruns – pessoas físicas, organizações da sociedade civil, e também vinculados a grupos de pesquisas de universidades – que se dedicam a estudar, divulgar e mobilizar ações em torno do tema da despatalogização. Um deles é o Despatologiza – Movimento pela despatologização da vida, de Campinas (São Paulo), que teve início quando profissionais da medicina, educação, psicologia e fonoaudiologia, parceiros de pesquisa e serviço, viram a necessidade de enfrentar, coletivamente, processos de patologização que transfiguram diferenças em doenças, para ocultar as desigualdades que assolam nossa sociedade.
Para quem deseja aprofundar a pesquisa sobre o tema, o livro “Medicalização de crianças de adolescentes – Conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos“, do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, é uma boa leitura. A obra faz uma análise do processo de medicalização da sociedade a partir da profusão de diagnósticos de dislexia e TDAH, e também do aumento da distribuição de medicamentos como metilfenidato a crianças e jovens.
A despatologização da infância passa por entender que crianças e adolescentes que apresentam algum tipo de dificuldade de aprendizagem ou socialização não necessariamente são doentes e demandam tratamentos e intervenções medicamentosas.
Quem é mãe, pai, professor, ou cuidador de crianças no dia a dia, frequentemente se depara com situações em que nossos instintos mais primários de como cuidar de uma criança são colocados à prova.
“Se procuramos um profissional da saúde para nos ajudar, muitas vezes nossa pergunta é ‘será que meu filho está doente?’, porque percebemos uma alteração que nos leva a estranhar o que está acontecendo. Entretanto, nem tudo que nos causa incômodo é doença”, afirma Isabel.
“É importante reconhecer que a distinção entre o que é da ordem da saúde e o que é da ordem da doença permitiu o desenvolvimento de um campo de terapêutica e assistência que reduziu significativamente a mortalidade na modernidade. Porém, essa mesma distinção, tratada com suposta objetividade, também nos conduz a um atendimento que reduz a queixa a uma questão individual, quando, muitas vezes ela é maior que isso”, pondera Isabel.
“É importante que a lógica de cuidado que se estabeleça ali [entre profissional da saúde e família] seja de parceria e escuta”, defende Isabel
Para começar a conversa, vamos às definições de cada conceito.
Desde os anos 1970, importantes teóricos trabalham esse conceito. O médico e sociólogo norte-americano Peter Conrad é um dos mais reconhecidos nomes nessa área. Antes de mais nada, é preciso tomar cuidado para distinguir os termos “patologização” e “medicalização”, que frequentemente são utilizados como sinônimos, mas apresentam características distintas.
Para Conrad, a medicalização é o processo de redução de questões sociais a fenômenos biológicos. “Assim, eles que passam a ser tratados pelo campo biomédico, geralmente a partir da lógica da doença”, explica Biancha.
“O termo patologização muitas vezes tem sido utilizado como sinônimo de medicalização. A utilização desse termo visa tentar desfazer a compreensão equivocada de que ser contra a medicalização é ser contra o uso de medicamentos ou contra a categoria profissional dos médicos”, afirma a psicóloga.
Exemplo disso seriam os inúmeros estudos acerca dos chamados transtornos do comportamento, no qual se enquadram o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), um dos mais repercutidos por profissionais de saúde, pais e professores como causa de mau comportamento da criança, sobretudo na escola.
“É o processo de transformação de um incômodo da ordem da moralidade (ou seja, criança não se comporta como desejado) como um tema da saúde”
Conforme explicitado acima, é essencial frisar: entender todos os fatores do que leva a criança ao sofrimento, para além do diagnóstico, é fundamental para colocá-lo à luz de um contexto amplo que deve ser levado em conta. Os diagnósticos são nomes criados de formas padronizadas com fins classificatórios que, em sua origem, serviam como estatística para a elaboração de políticas públicas e promoção de direitos. Os diagnósticos não representam integralmente os sujeitos.
“A ciência hoje está limitada a um conjunto de pessoas que foram autorizadas a dizer o que é a vida”
Dois dos mais importantes desses documentos são o Manual Diagnóstico e Estatístico de Saúde Mental, organizado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e a Classificação Internacional de Doenças, organizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que passa por constantes revisões, e está em sua 11ª versão. Vale ressaltar, porém, que possuir uma classificação universal de doenças tem um papel importante na elaboração e manutenção de políticas públicas para a saúde e, portanto, na promoção de direitos.
“A própria palavra medicalização convida a muitos desentendimentos”, ressalta Biancha. Ela se refere a um erro induzido pela própria palavra. ‘Medicalizar’ pode remeter facilmente a medicamento, no entanto, não necessariamente um processo de medicalização passa por intervenção medicamentosa. O conceito se refere mais a uma imposição de pensamento, ou seja, como pensamos a saúde e, por consequência, também a vida.
Ou seja, a medicalização da infância tem um fundo mais complexo, que é a medicalização da vida. Adultos são frequentemente medicados em sua primeira consulta ao médico, após poucos minutos de conversa com o médico, que no mais das vezes, desconsidera aspectos integrais do indivíduo – onde trabalha, como é sua alimentação, qual a qualidade do seu sono, e outras inúmeras variáveis que incidem sobre a saúde de alguém.
Com as crianças, não é diferente. É comum enquadrar uma criança inquieta como hiperativa, diagnóstico que muitas vezes é motivado pelo fato de que a criança não responde a um padrão social do que é considerado um comportamento correto. Estaremos diante de uma crise da medicina integral, que olha o indivíduo em suas múltiplas dimensões?
Pare para pensar em quantos comerciais de TV você já viu sobre remédios feitos para recarregar a sua energia. Para Biancha, esse tipo de associação de saúde com utilitarismo é fruto de todo um pensamento em ciência do século XX e XXI. “Não é só a indústria farmacêutica que contribui para este cenário, a própria macrobiótica também cria narrativas de medicalização, a diferença é que ela faz isso sem criar uma patologização. Propagandas por exemplo que associam o sono a recarregar energias.
“O discurso da medicalização define a vida como um fenômeno biomédico, como se ela fosse algo instrumental”
“Então, como agir no caso de crianças que não conseguem ir além no processo de aprendizagem?”. Essa é a pergunta que muitos pais, cuidadores e professores se fazem. Afinal, em algumas crianças, fica evidente a diferenciação em relação às outras. Atraso de linguagem, dificuldade de concentração, atitudes agressivas, falta de sono, entre outros “sintomas” preocupam quem toma conta delas.
No livro “The medicalization of society”, Peter Conrad estudou o que é comportamento adaptado e comportamento não adaptado, e concluiu que isso gera dois níveis de efeito: 1- O alargamento do campo da saúde; 2- O reconhecimento social da medicina como quem pode arbitrar sobre o que é ou não adequado. Ou seja, a lógica biomédica determina que a sociedade deve procurar um médico para validar se um determinado comportamento é correto ou não.
“O quanto a medicina se apropria sobre estudos sobre o comportamento de crianças e adolescentes deixa de perceber os contextos socioculturais nos quais alguém produz a sua existência, e passa a fazer julgamentos morais sobre o que é correto ou não”, explica Biancha.
Esse mesmo processo pode ser aplicado a qualquer outro diagnóstico, desde os mais simples, como pressão alta ou diabetes. Mesmo aquilo que achamos que é apenas alvo do ato biológico, também pode ser alvo de um processo de medicalização.
“A narrativa biomédica se apropria de expressões que são do indivíduo, criando o entendimento de que a única pessoa que pode ter entendimento sobre aquele corpo é o especialista”, afirma a pesquisadora.
“Quando a gente não afiança a possibilidade de a pessoa dizer de si, sem que ela tenha o aval da ciência, estamos medicalizando a condição de saúde”
Ainda que reconheçamos médicos como detentores de um conhecimento verticalizado sobre a saúde do corpo e da mente, quando foi que deixamos de validar também os conhecimentos ancestrais, passados de geração em geração, para atribuir somente aos especialistas o entendimento do corpo?
Para a pesquisadora, houve, ao longo do tempo e das mudanças políticas e sociais pelas quais o mundo passou, uma transformação em nossa relação com a prática do cuidado – tanto do outro, quanto de nós próprios.
“’Correto’ acabou virando sinônimo de ‘saudável’, gerando uma desautorização dos indivíduos em relação as práticas de cuidado, ocasionado o desenraizamento das famílias, por questionar valores geracionais do que é considerado legítimo para aquele cuidado”, explica Angelucci.
“A herança cultural e familiar passou a não bastar mais para validar, por exemplo, o que é ser mãe”
No texto “A polícia das famílias”, o autor Jacques Donzelot mostra o quanto a ampliação da vida urbana e a diminuição da presença do médico da família passa a ser realizada pelas professoras. Ou seja, manuais prescritivos de saúde (sexual, alimentar, saúde e infância, amamentação, etc) que são escritos por médicos para uso das escolas. Assim, a função de “polícia” da saúde (aqui utilizado como sinônimo de vigília) passa a ser exercida na escola. Há que se considerar o pensamento higienista em voga nessa época para emergir narrativas como essas.
Já Foucault, em “A história da medicalização”, aborda a dimensão do poder do indivíduo sobre o corpo, defendendo que cada pessoa pode se apropriar do jeito certo de viver.
Qual a influência da indústria farmacêutica na produção desses diagnósticos? O jornalista americano Robert Whitaker estuda essa relação, demonstrando como os lobbys feitos pela indústria contribuem para a manutenção e permanência das doenças e dos transtornos. Whitaker é autor do livro “Anatomia de uma epidemia – Pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental” (Editora Fiocruz), Aqui, vale a observação de que transtorno é diferente de doença, e denomina um não saber definido sobre aquilo, ou seja, a própria medicina não sabe precisar de onde veio aquela condição.
Biancha Angelucci explica que o debate ético então poderia ser sobre não somente procurar evidências que norteiam as nossas tomadas de decisão, e lidar com as consequências dela.
Em 2006, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a reconhecer medicinas holísticas, e oferecê-las gratuitamente à população: são as chamadas práticas integrativas e complementares. O próprio nome – integrais e complementares – diz muito sobre qual visão de visão elas promovem, não mais de um único aspecto do corpo ou da mente, mas da integralidade do sujeito.
Dentre elas, estão serviços como aromaterapia, terapia de florais, yoga, bioenergética, medicina ayurvédica, entre outras. As benzedeiras do SUS, que em 2012 foram reconhecidas como agentes de saúde, no Paraná, por exemplo, não partem de verdades científicas, e sim de uma outra lógica de pensar a saúde, menos empírica, e mais holística.
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares foi criada no Brasil em 2006, após aprovação unânime pelo Conselho Nacional de Saúde. Seu o objetivo é implementar tratamentos alternativos à medicina baseada em evidências na rede de saúde pública do Brasil, através do Sistema Único de Saúde.
A psicóloga defende que “para entender o fenômeno da medicalização, é preciso entender antes o que é o capitalismo”. Para ela, a lógica capitalista coloca a saúde e a doença como commodities que têm valor financeiro no mercado. Somado a isso, há que se considerar também a instrumentalização do conhecimento, moldada pela racionalidade da ciência e tecnologia do século XX e XXI.
“O sujeito passa a perceber a vida a partir de uma lógica instrumental, e perde-se a dimensão da fruição da vida em si só, ou seja, da própria existência”
“Exemplo de medicalização: quando você vende uma pasta de dente que combate sete problemas bucais, e não cinco. Quanto mais você incide sobre a função instrumental de uma coisa, mais ela se torna interessante. Toda vez que você cria um produto que reduz ou aumenta as chances de adoecer ou ficar saudável, você está alterando aquele produto”, pondera Biancha.
Slogans de propaganda como “Um danoninho vale por um bifinho”, de acordo com a psicóloga, são mecanismos que aplacam a consciência e fazem efeitos na mentalidade social. “É um jeito de pensar que é a cara da racionalização instrumental que rege a forma de fazer ciência nos nossos tempos”, explica.
Por isso, quando queremos contribuir para a desmedicalização, é preciso pensar que esse processo retira do campo de importância os efeitos sobre nossas tomadas de decisão, não só como indivíduos, mas como sociedade.
“A medicalização induz a um processo de desresponsabilização pela vida. E, quando falamos de infância, estamos falando da necessidade de debate – na arena pública – sobre as coisas que a gente não sabe”
“Quando um neurocientista se autoriza a olhar para um exame de imagem e afirmar ‘isso é o cérebro de um disléxico’, ele está fazendo ideologia, e não ciência, afirma Angelucci.
“A confusão sobre o déficit de atenção, por exemplo, já começa pelo nome, “comportamento desviante”, ou seja, é uma categoria moral, pois parte do princípio de que o cientista está autorizado a definir o que é moral ou não”, diz.
De acordo com ela, nos últimos tempos, especialmente no último século, a ciência produzida foi muito pautada na lógica da medicalização; segundo a pesquisadora, é preciso fazer um debate real de como esse pensamento influenciou o que hoje entendemos como saúde.
Cabe aqui relembrar a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS): “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Vale lembrar também que um dos princípios da organização do sistema de saúde brasileiro, por exemplo é a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral. Assim, a pessoa que procura um serviço de saúde deve ser escutada, não só como quem se queixa, mas também como quem pode dizer, juntamente com uma equipe, sobre os cuidados.
No vídeo abaixo, a médica de família Júlia Rocha fala sobre humanização e cuidado em saúde, e sobretudo sobre a saúde como um direito universal de todo indivíduo. Ela aborda a questão da escuta, que vem sendo perdida no encontro médico-paciente e que se relaciona intimamente com a medicalização.
“Antes do SUS, saúde era caridade. Ele nasceu no fim da década de 80, e fez uma revolução: transformou saúde em direito”
O CID (Código Internacional de Doenças) 10 elenca transtornos escolares diversos. O Transtorno de Déficit de Atenção é apenas um deles; ao seu lado, estão condições como dislexia, disgrafia, discalculia, entre outros tantos. Cada um desses transtornos vem acompanhados de uma série de características, como dificuldade de concentração e memorização, distúrbios de fala, problemas motores e outras disfunções.
A discussão sobre a patologização não passa por negar os problemas de aprendizagem e o que decorre deles, mas sim considerar que tais questões são fruto de todo um contexto social, cultural, político e afetivo em que a criança ou o jovem estão inseridos.
“Problematizar essas questões não se trata de negar que existem, sim, transtornos e doenças, mas sim de chamar a atenção para a corresponsabilidade por eles. Ou seja, é entender que as demandas sociais são capturadas e acabam criando uma outra coisa”, esclarece a pesquisadora.
Biancha cita o assassinato em massa que ocorreu na Escola Estadual Professor Raul Brasil em março como um exemplo de apropriação mal-sucedida de demandas sociais sobre a saúde mental. De autoria do deputado Márcio Nakashima, o Projeto de Lei 326/2019 defende a implementação de serviços de atendimento psicológico nas redes públicas de ensino – o que é de fato uma demanda real e urgente. No entanto, o entendimento dos especialistas em saúde mental é que o texto da lei faz um desserviço, ao responsabilizar individualmente os estudantes que praticarem bullying, por exemplo, chegando a propor medidas punitivas de correção. Assim, o documento desconsidera que a questão é muito mais ampla, e que contempla diversas dimensões da vida escolar e social. No último dia 15 de abril, o PL deu entrada na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, na Câmara dos Deputados.
“O caso de Suzano, que gerou o Projeto de Lei, é um caso ilustrativo disso, uma vez que parte de um dado de realidade que comoveu a sociedade para criar legislações que não dão conta de tratar a criança em sua multidimensionalidade, e sim reforçam, neste caso, visões reducionistas sobre o que é saúde mental.
“Verdadeiramente ético é se perguntar o que fazer diante de cada situação singular, e diante de cada criança ou adolescente”
Para Biancha, o único caminho possível para investir em uma perspectiva que efetivamente considere as múltiplas dimensões do indivíduo em relação com o meio social, cultural, histórico e político, é de ampliar o debate sobre saúde integral no nível público. No caso da escola, é questionar constantemente o projeto político pedagógico da instituição e estreitar laços com a família. Na família, cabe sempre ampliar as possibilidades de interlocução, a fim de não centralizar a saúde da criança a um único especialista ou narrativa, e observar verdadeiramente quais são as questões pelas quais aquela criança passa.
Assim, poderemos questionar qual o papel de cada um para minimizar seu sofrimento, quando ele efetivamente existir. “A gente reconhece que existem diferentes corpos, e barreiras sociais são o que impõe os limites. Dizer que tudo o que uma criança precisa é brincar não é só romântico e idealista, mas sim um desrespeito à infância”, pondera a profissional.
Comunicar erro“Precisamos reconhecer que as crianças sofrem, e reconhecer que somos nós que as fazemos sofrer”
“Hoje em dia, o sofrimento e a tristeza, que são sentimentos comuns, normais e gerados pelo modo como a sociedade se organiza, estão sendo transformados em problemas médicos. Um bom exemplo da medicalização da vida pode ser visto nas escolas. Se tem dificuldade de aprendizado, a criança é rapidamente diagnosticada com TDAH. Muitas vezes, ela não tem nada, e os seus problemas de aprendizado estão relacionados à política educacional do país e à falta de qualidade de muitas escolas. Um problema coletivo (a educação brasileira) pode ser transformado em um problema pessoal (a criança é diagnosticada com um transtorno mental).”
(Fonte: Universidade Federal de Minas Gerais)