Quanto maior for o número de narrativas diversas, mais completa será nossa compreensão sobre determinado assunto
Com a descolonização dos currículos escolares, ambiente escolar fica muito mais plural e democrático. Confira a conversa com a pesquisadora Mayana Nunes.
Do que estamos falando quando falamos em descolonização do currículo? O que é isso, afinal? “Quando rejeitamos a história única, quando nos apercebemos de que nunca há uma história única sobre nenhum lugar, reconquistamos uma espécie de paraíso”. Esta fala encerra uma palestra da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, em 2009, no TED (Technology, Entertainment, Design), conferência que promove a troca de experiências e ideias entre personalidades de diferentes áreas.
A escritora nigeriana reflete sobre como criamos a imagem que temos de cada povo. Nosso conhecimento é construído pelas histórias que escutamos, e quanto maior for o número de narrativas diversas, mais completa será nossa compreensão sobre determinado assunto. O que a ativista propõe é que diversifiquemos as fontes do conhecimento e não aceitemos ouvir somente uma versão da história.
E como tudo isso se relaciona com o que acontece dentro das escolas? A historiadora Mayana Nunes interpreta que a “colonialidade do saber” faz com que os alunos dos cursos de licenciatura aprendam uma visão única de conhecimento e de mundo, baseada na perspectiva eurocêntrica. A mesma que exclui e marginaliza as populações negras e indígenas.
Em entrevista ao Lunetas, ela explica que a proposta de descolonização do currículo não significa apagar o conhecimento europeu ou substituí-lo. De acordo com ela, é necessário possibilitar que outros conhecimentos estejam no currículo escolar, contemplando diversos olhares sobre o mundo.
Lunetas – O que significa descolonizar o currículo e por que esse debate é relevante?
Mayana Nunes – O debate sobre a “descolonização do currículo” é resultado dos esforços teóricos e epistemológicos dos povos subalternizados/colonizados da América Latina, Ásia e África em mostrar que existe toda uma produção de conhecimentos historicamente invisibilizada em favor de uma ciência europeia ocidental que se construiu como a única capaz de produzir saberes objetivos, neutros e que se propõem enquanto universais. Alguns autores definem esse processo de apagamento como resultado da colonialidade do saber, ou seja, epistemologias e cosmologias das regiões do mundo “não-ocidentais” foram e são consideradas inferiores em relação ao conhecimento produzido pela Europa.
“Como resultado dessa marginalização, a educação brasileira e o currículo escolar do país têm priorizado as culturas hegemônicas, reforçando o que chamamos de ‘racismo epistêmico'”
Por isso trata-se de um debate importante e necessário, uma vez a descolonização do conhecimento questiona as estruturas que constroem o mito de que a ciência moderna ocidental é a única que tem legitimidade, nos ajudando a perceber o desenho geopolítico que coloca certos países e regiões do globo como produtores de cultura, enquanto outros são posicionados apenas como consumidores, e traz à cena as narrativas e saberes produzidos pelas populações negras e indígenas “não-ocidentais”. Assim, os currículos passam a ser um dos territórios de enfrentamento e de disputa entre grupos hegemônicos e grupos subalternos, pois ao descolonizar o conhecimento, os currículos escolares também serão descolonizados, oportunizando que o ambiente escolar seja muito mais plural e democrático a partir da emergência de leituras de mundo plurais.
Como formar crianças e jovens capazes e reconhecer experiências históricas e contribuições dos diferentes povos que formaram a nação?
MN – Isso é possível mediante um compromisso real da sociedade e do Estado brasileiro ao formular as políticas públicas no campo da educação básica, ou seja, é preciso construir leis e práticas que reconheçam o lugar de negros e indígenas na História, na Arte, nas Ciências, e em todas as áreas do saber. Nesse sentido, a lei 10.639/03 (que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio), foi um primeiro movimento importante nessa direção, pois abriu caminhos para a construção de uma educação antirracista, e propõe uma ruptura epistemológica que torna possível a emergência desses saberes silenciados.
Políticas como cotas raciais e sociais, que buscam reparar essa exclusão e desumanização históricas a que negros, indígenas, e populações mais pobres vivenciam, também têm promovido mudanças na educação brasileira, pois quando a Academia se abre para acolher estes sujeitos e suas trajetórias, se torna num espaço transdisciplinar.
São iniciativas importantes, mas ainda é preciso mais. Não é possível defender uma mudança nos paradigmas educacionais, se o currículo permanece o mesmo. Para Nilma Lino Gomes, a descolonização dos currículos precisa ser compreendida como um ganho na construção de uma democracia, que promova de fato a igualdade de oportunidades para os diferentes segmentos étnico-raciais e sociais. Essas mudanças só se tornam potentes se educadores, gestores educacionais, pais e alunos compreenderem que os conhecimentos dos povos de origem africana e indígenas não são mais “um conteúdo a ser ensinado”, mas representam uma mudança epistêmica e estrutural.
Esse tipo de questão pode ser tratada por meio da formação de professores?
MN – Com certeza! Falamos muito que a Educação Básica deve tratar das questões étnico-raciais, mas isso só é possível se os profissionais que atuam nessa etapa da educação estiverem preparados para isso. Assim, primeiro, os cursos de licenciatura do país precisam de um processo de revisão de seus currículos. Como latino-americanos, vivemos a lógica da colonialidade do saber, o que faz com que os alunos dos cursos de licenciatura aprendam uma visão única de conhecimento e de mundo, baseada na perspectiva eurocêntrica. Assim, é necessário que as instituições de Ensino Superior implementem e ampliem a descolonização de seus currículos, considerando questões étnico-raciais. Só assim os profissionais da educação conseguiriam perceber que o modelo de aprendizagem da educação básica brasileira se embasa numa perspectiva racista, que exclui e marginaliza as populações negras e indígenas. Isto não significa apagar o conhecimento europeu, ou substituí-lo, e sim possibilitar que outros conhecimentos estejam no currículo escolar, contemplando diversos olhares.
Investir cada vez mais na formação continuada dos professores, por se tratar de um processo permanente de aprimoramento da prática pedagógica, que possibilita ao docente ampliar conhecimentos que serão fundamentais para gerar impactos no cotidiano da sala de aula.
“Educadores que têm a oportunidade de fazer essa reflexão são essenciais na desconstrução de estereótipos, preconceitos, e no estabelecimento de relações de empatia e reciprocidade na escola”
Quais você acredita que sejam os principais desafios para essa descolonização?
MN – Um primeiro desafio é compreender e reconhecer que o racismo é um problema estrutural do Brasil, desmistificando a ideia de que vivemos uma democracia racial, em que brancos, negros, mestiços, indígenas têm as mesmas oportunidades. Esse reconhecimento é fundamental, pois torna óbvio que todos têm responsabilidade de combater a discriminação e as desigualdades que têm mantido negros e indígenas à margem.
A descolonização do currículo não é uma tarefa simples, é esperado que haja tensões, conflitos, negociações.
“Também não deve ser um compromisso apenas das minorias étnico-raciais, mas de toda a sociedade”
Esse não é um trabalho que possa ser feito de forma isolada, mas demanda uma articulação intersetorial, que exige que os profissionais da educação repensem os próprios objetivos da educação. Nesse sentido, é interessante que a escola estabeleça contato com representantes dos movimentos negros e movimentos indígenas, por exemplo, para que possam compartilhar experiências e pensar caminhos de inclusão das questões étnico-raciais no projeto político pedagógico da escola.
Outro desafio está no professor conseguir se perceber como um mediador e construtor de conhecimentos, e não apenas como alguém que está ali para reproduzir um conhecimento pronto e estático. Ao alcançar essa compreensão, o docente se torna agente central na constituição de uma educação mais humana e emancipadora, e de uma sociedade democrática.
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