Comunidade indígena luta para incluir sua cultura no currículo

No Acre, aldeia Huni Kuin está criando a escola Keneya com o objetivo de promover o intercâmbio entre os saberes tradicionais e a cultura urbana

Camilla Hoshino Publicado em 11.11.2022
Um menino indígena empunha um arco e flecha em meio à natureza. Ele veste uma camiseta verde com a estampa de um macaco de óculos e boné amarelo. A matéria é sobre cultura no currículo e fortalecer o povo Huni Kuin
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Resumo

Se por um lado os intercâmbios fortalecem laços de solidariedade com os Huni Kuin, por outro, grande parte das relações externas carregam vícios das cidades. A escola é um lugar essencial para as crianças no diálogo entre saberes tradicionais e urbanização.

“A luz chegou na aldeia e a estrada também vai chegar. Não fui eu quem chamei, mas a cidade já está passando por cima da gente.” O pajé Txana Ixã Huni Kuin, liderança na aldeia Ni Yuxibu, às margens do Rio Tarauacá, no Acre, sabe que a distância já não é uma opção: cada vez mais, o contato com a sociedade não indígena interfere no destino dos povos que habitam regiões cercadas por floresta. Então, como preparar as crianças Huni Kuin para essas relações? 

Para uma população de fronteira que viveu nos cativeiros dos seringais durante décadas de extração da borracha, o acesso das novas gerações à educação também é sinônimo de melhores oportunidades de vida. Mas não apenas a educação do português e da matemática, mas aquela que coloca a ancestralidade Huni Kuin no centro dos aprendizados. É por isso que hoje aproximadamente 50 crianças da aldeia vivem a experiência de construção da escola “Keneya”, fruto de uma aliança entre indígenas e voluntários. 

O retrato da antiga escola municipal da aldeia se assemelha ao de escolas rurais em diversas regiões do Brasil: falta de verba para merenda, capacitação insuficiente dos professores e ataque de cupins. Sem atenção da prefeitura, as lideranças resolveram pedir ajuda por meio de financiamento coletivo, reunindo cerca de R$ 30 mil para levantar uma estrutura adequada.

Atualmente, as crianças têm aulas todos os dias no período da manhã, com dois professores indígenas contratados pelo município, Shane e Tuin Huni Kuin. Além das aulas, é ali que elas aprendem música, artes e ofícios como tecelagem, cerâmica e plantio.  

A segunda etapa é construir uma sala redonda para que as crianças possam aprender ao redor do fogo, equipar a cozinha e garantir densidade nutricional”, afirma Guto de Lima, articulador do projeto “Ni Shunpin” (“floresta limpa”, na língua materna Hãtxa Kuin), em parceria com o pajé Txana Ixã e outros nove voluntários. Juntos, o grupo tem buscado apoio para suprir as demandas do território que não conseguem ser atendidas pelo Estado, como gestão de resíduos, construção de santuário indígena para preservação de saberes ancestrais e geração de renda para a aldeia.

Hoje, o povo Huni Kuin (que significa “gente verdadeira”) tem uma população de aproximadamente 14 mil pessoas, divididas em 12 terras indígenas e 102 aldeias, em cinco municípios, de acordo com a Federação do Povo Huni Kui do Estado do Acre (Fephac). A aldeia Ni Yuxibu está localizada na Terra Indígena Seringal Independência, próxima ao município do Jordão. O território, que faz fronteira com o Peru, é uma das regiões mais ricas em biodiversidade, onde se encontra o Vale do Juruá, na Amazônia Ocidental.

Diálogo intercultural

Txana Ixã e Guto sabem que, se por um lado visitas e intercâmbios culturais fortalecem laços de solidariedade e mobilizam defensores da Amazônia, por outro, grande parte das relações externas carrega vícios e violências que espelham a vida nas cidades. “Se não aprendermos a lidar com essa cultura, vamos ficar com o pior exemplo [das relações de exploração]”, diz Ixã. Diante disso, as crianças também precisam estar preparadas para abraçar as oportunidades e enfrentar as ameaças da urbanização, por meio de uma educação indígena que valorize a própria cultura e o território e esteja em pé de igualdade com os modelos curriculares oferecidos a elas

“Essa aliança também surge em um contexto em que os Huni Kuin buscam reconstruir a sua própria história, marcada por um processo de aculturação e assédio das igrejas e da dinâmica dos seringais”, diz Guto. Ele conta que o povo Huni Kuin se prepara para viver aquilo que chamam de “xina benã”, que seria uma espécie de “novos tempos” ou “tempos de direitos”, com o papel central das crianças no diálogo intercultural. 

Com isso, o grande desafio da aldeia passa a ser a aprovação pelos órgãos governamentais da Base Estadual Curricular Comum Huni Kuin (BECCH), projeto político pedagógico construído com professores de 12 terras indígenas Huni Kuin, no Acre, desde 2014. O projeto apresenta nove áreas do conhecimento desdobradas em disciplinas, que incorporam conhecimentos tradicionais do povo Huni Kuin e que podem ser ministradas na língua materna Hãtxa Kuin ou em português. A partir dessa concepção, a escola passa a ser entendida como centro de trocas intergeracionais, com base no fortalecimento da cultura Huni Kuin e longe do paradigma de transferência de conhecimento “de fora”. 

Educação escolar indígena

Vale lembrar que o direito de permanência das línguas, culturas e tradições indígenas no contexto da educação escolar indígena é garantido pela Constituição Federal desde 1988. Apesar da ideia de uma educação diferenciada e intercultural para os povos indígenas ser apontada no Decreto nº 6.861/2009, sua aplicação ainda enfrenta uma série de barreiras na prática. 

De acordo com o levantamento realizado pela iniciativa De olho nos planos, grande parte da estrutura que existe hoje nas escolas indígenas do país é fruto de mobilizações e iniciativas comunitárias. Os problemas mais comuns identificados nessas escolas foram: falta de acesso à água, saneamento básico, energia elétrica, merenda, transporte escolar, salas multisseriadas, bibliotecas, laboratórios e internet, além da desvalorização das professoras e profissionais da educação.

“A escola Keneya será o espaço de uma nova pedagogia Huni Kuin, alinhada com o ‘xina benã’ e com os desafios da chegada da urbanização” – professor Tuim Huni Kuin

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