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Os sentimentos de culpa e medo no retorno da licença-maternidade

Foto em preto e branco de uma mulher negra que está com a cabeça encostada num vidro, de onde vemos o seu reflexo. O semblante de cansaço ilustra matéria sobre o retorno da licença maternidade

As cobranças com a maternidade pesam sobre as mulheres antes mesmo da gestação. Ter que engravidar, ser boa mãe, conciliar múltiplas jornadas, nunca deixar os filhos e, se necessário, abdicar de si mesma, para dar conta da família. Calma, respira. São tantas imposições e pressões sociais que o retorno da licença-maternidade, que deveria ser uma transição suave a uma nova rotina, se torna um momento de culpa, angústia e desespero para muitas mães. Sem suporte das empresas ou com medo de deixar a criança sob os cuidados de terceiros, muitas vezes elas lidam sozinhas com essa tensão.

Há dois motivos principais para essa vivência angustiante próxima ao fim do período da licença-maternidade. Um deles está no medo de perder o vínculo estabelecido com a criança, no receio de deixar o bebê sob os cuidados de outras pessoas ou de sequer ter com quem deixá-lo. O outro está na falta de estrutura das empresas para favorecer a manutenção do aleitamento materno e na dificuldade das gestões em apoiar a mulher na dupla função, mãe e profissional, o que culmina em demissões precoces e injustificadas.

A licença-maternidade é um direito previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e na Constituição Federal de 1988, que prevê o afastamento das mães das atividades profissionais por 120 dias, ou seja, quatro meses, a partir do 28º dia da data estimada para o parto. Esse prazo pode ser prorrogado por mais 60 dias, totalizando seis meses de licença, sem prejuízo ao salário, caso o empregador seja participante do programa Empresa Cidadã. Nesse programa, a empresa tem benefícios fiscais em troca de ampliar a licença, uma forma de garantir que a mãe tenha mais chances de ficar ao lado do bebê, completando o ciclo de seis meses recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), para aleitamento materno exclusivo.

Um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas mostrou que, no Brasil, após dois anos da data da licença-maternidade, quase metade das mulheres que gozaram do benefício está sem trabalho. Foi o que ocorreu com a engenheira Mariana Ventura, 35, na primeira gestação. Mariana foi demitida dois dias após voltar da sua licença estendida (6 meses), mesmo trabalhando em uma empresa inscrita no programa Empresa Cidadã. Como a renda da casa dependia também dela, a engenheira buscou e iniciou um novo emprego dois meses depois. Porém, junto com a carteira assinada, veio a culpa. 

“Eu ainda amamentava, tinha uma jornada de 44 horas semanais e comecei a me questionar se poderia estar em casa, cuidar do meu filho, ‘para que fui procurar isso?’”, conta. Mariana começou a ficar ansiosa, a contar as horas para chegar em casa, quando estava no trânsito. Esse é um relato comum a muitas mulheres. De acordo com a psicóloga e coordenadora dos cursos de Gestão de RH e Gestão Comercial da Faculdade Frassinetti do Recife, Izabel Quintas Calheiros, esse comportamento está fundamentado, em parte, nas transformações enfrentadas pela mulher após a maternidade.

“A gestação é uma transformação biopsicossocial”, explica.

“É hormonal, que recai no biológico. É psicológica, porque de repente a mulher se vê grávida de outro ser. É social, porque interfere nas relações. É uma linha tênue entre alegria, medo, expectativa”

No momento do retorno da licença-maternidade, esses sentimentos costumam acompanhar muitas mães que voltam ao trabalho ainda num contexto de puerpério, alterando ações que fortalecem o vínculo com o bebê, como trocar fraldas, rituais de banho ou até de ninar a criança. 

O contato, muitas vezes ininterrupto, se transforma em ausência. Isso é fortalecido porque, em geral, é a mulher que passa mais tempo com a criança, já que a licença-paternidade, de acordo com a legislação brasileira, é de apenas cinco dias. Logo, não há um estímulo à paternidade, e, ao retornar ao trabalho, muitas mulheres acreditam que só elas conseguirão dar conta do cuidado com a criança. E que, longe, o bebê pode estar passando dificuldades. 

“É quase como se a mulher precisasse estar em dois lugares ao mesmo tempo, sabendo da importância de ambos, filho e trabalho, mas sem condições de fazer isso. O medo de como o bebê vai reagir a essa mudança e até mesmo de como será cuidado por quem assumir essa função podem contribuir para essa sensação de culpa”, explica o head de Psicologia da Vittude, Fabio Camilo. Esse é um dos receios da professora Osmileny Oliveira, 29, que precisa conciliar a maternidade com dois empregos.

Ela sempre sonhou em participar de todos os detalhes da vida do filho. Quando engravidou de João Leonardo, hoje com sete meses, estava em um momento de transição na carreira. Funcionária pública, teve quatro meses de licença. A volta para ela também foi um momento de dor. “Eu voltei muito aflita, porque era a hora da introdução alimentar, e eu queria participar. Meu filho é muito apegado a mim, quando eu saio, ele chora. Então é bem complicado. Também tenho receio de deixá-lo com alguém”, conta.

Direitos da mulher

  • 120 dias de licença-maternidade estipulados pela constituição e pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
  • Mais 60 dias, além dos 120, segundo a lei 11.770/2008
  • Os 120 dias também são válidos para caso de adoção ou guarda judicial para fins de adoção
  • A mulher pode se ausentar, sem prejuízo no salário, para, no mínimo, seis consultas médicas e exames
  • Dois permitidos descansos de meia hora cada um para amamentar o filho, até que o bebê complete seis meses de idade
  • Os períodos de repouso, antes e depois do parto, podem crescer em duas semanas, com atestado médico

Muitas mulheres têm dificuldade em conciliar carreira e maternidade. O motivo não está na divisão de funções, mas na ausência de suporte social e empresarial para elas. Um estudo realizado pelo Talenses Group mostrou que só três em cada 10 empresas brasileiras oferecem a licença-maternidade estendida. Se considerada a licença-paternidade, o número cai para duas em cada 10. Mais da metade das empresas, 55%, não oferece ações ou programas voltados para a jornada da maternidade.

A preocupação com a carreira

Por trás dos dados, há histórias de preconceito do mercado de trabalho com as mulheres mães ou que querem ser mães, o que fica explícito em entrevistas de emprego, em que elas são questionadas sobre esse desejo, ou mesmo nas demissões, como aconteceu com Mariana. Segundo a pesquisa da FGV, a maior parte das saídas do mercado de trabalho das mulheres que tiram licença-maternidade se dá sem justa causa e por iniciativa do empregador. 

Isso aumenta a autocobrança por resultados excepcionais em casa e no trabalho, o que pode retornar em quadros de ansiedade, depressão e burnout. Para quem permanece empregada, por outro lado, há também a ausência de políticas trabalhistas de incentivo, a falta de flexibilidade nas jornadas diárias ou mesmo de infraestrutura para coleta de leite materno, o que torna ainda mais difícil o regresso. As empresas deveriam ter, por exemplo, um espaço para ordenha e congelamento do leite durante o expediente, mas as  Salas de Apoio à Mulher Trabalhadora que Amamenta ainda são uma exceção no Brasil.

A falta de políticas nas empresas leva muitas mulheres a sentirem que a carreira foi prejudicada pela maternidade, seja porque precisaram recusar projetos e promoções, para ter tempo para os filhos, seja por decisão explícita do empregador. 

“Ser mãe é uma opção, nenhuma mulher deveria ser punida por isso”, afirma Izabel.

“Ela deveria ter condições dentro do trabalho para exercer esse papel, porém muitas empresas expõem esse desconforto. Às vezes, os próprios colegas de trabalho não apoiam, o que causa problema nas relações profissionais também.”

Para Osmileny, as mulheres deveriam ter a opção de escolher a data de retorno da licença-maternidade. “Dentro do período de um ano, a gente poderia escolher quando voltar, sabendo que o nosso emprego está garantido. Você não consegue se entregar 100% no trabalho”, lamenta. Por falta de apoio e não por escolha, muitas mulheres acabam deixando a carreira profissional. No caso de Osmileny, isso não está nos planos, mas ficar com apenas um dos atuais dois empregos já é uma realidade considerada. Uma pesquisa do movimento Mulher 360 mostra, por exemplo, que 75% das entrevistadas consideraram não retornar ao trabalho após a licença.

Por parte das empresas, há uma série de questões que podem ser adotadas para suavizar a transição do pós licença-maternidade. Para os colegas, Fabio orienta que é fundamental entender os sentimentos e as dificuldades que a mulher está passando. 

“A liderança não deve fazer comparações com seu desempenho pré e pós-parto, mas ser acolhedora e entender os momentos de preocupação com a criança”

Segundo a pesquisa da FGV, as empresas devem ir além da garantia do emprego, adotando ou lutando por outras políticas sociais, como a expansão das creches. “É preciso pensar na estrutura política, no sistema em que vivemos. Há países em que a licença é de nove meses, um ano. Ainda estamos atrasados na legislação de proteção à mulher mãe que trabalha”, acrescenta Izabel.

Como lidar com a culpa

Logo após entrar no novo emprego e sentir os efeitos da culpa, Mariana Ventura procurou terapia para lidar com a ansiedade. Em conversas com a profissional, entendeu que não era a única mulher a viver aqueles sentimentos na volta da licença-maternidade. O apoio psicológico, além do suporte na nova empresa, foram fundamentais para que ela sonhasse em ter um segundo filho, o que ocorreu durante a pandemia. “Eu comecei a pensar que iria construir uma família, que tenho a minha vida pessoal e tenho meu emprego”, lembra. Hoje, depois de passar pela segunda volta ao trabalho após a maternidade, ela se sente bem mais confortável em lidar com essa mudança. 

De acordo com Fabio, buscar ajuda profissional é um dos passos para lidar com a culpa e conseguir se afastar dela, como fez Mariana. A troca de experiência com outras mães que passaram pela mesma situação, discutindo possíveis dificuldades e, muitas vezes, apenas se colocando à disposição, também é um caminho para enfrentar o problema. Quem está no entorno também tem o papel de ouvir de forma mais atenta e sem julgamentos essa mulher. 

“É importante entender a cultura em que vivemos e que muitos papéis mudam com o tempo. Saímos do modelo de homens enquanto provedores e mulheres como donas de casa para a aceitação de que exercer uma atividade profissional e mesmo ser a principal – ou única – fonte de renda independe do sexo”, explica. Segundo Fabio, outra preocupação deve ser ter consciência das suas escolhas, para que não haja culpabilização da criança na vida adulta. “Não existe certo ou errado, existem consequências”

“A maternidade não precisa e não deve ser um fardo, mas um novo papel na vida, que tem suas vantagens e seus desafios, como tantos outros”

Países com maior tempo de licença-maternidade

Croácia – 58 semanas
Inglaterra, Austrália Montenegro, Bósnia e Albânia – 52 semanas
Noruega – 45 semanas
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Brasil – 17 semanas

Fonte: Organização Internacional do Trabalho (OIT)

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