Ouricuri é um município de aproximadamente 70 mil habitantes, no sertão de Pernambuco. Quem nasceu ali garante que a terra “já fez mais água”, como a trabalhadora doméstica Jakeline Dias da Silva. Quando a terra faz água é sinônimo de plantio em novembro e dezembro, tradição que garante as colheitas para consumo das famílias da região nos meses seguintes. Mas estamos em 2021 e há tempos a chuva não segue mais calendário ou traz boas notícias.
“Tem ano que nem chove”, lamenta Jakeline. Talvez o filho Edras, 10, não saiba explicar com detalhes a origem da intensificação da seca, mas teve de aprender a lidar com as consequências. A água que chega em sua casa é distribuída pela companhia de saneamento do estado, por meio de adutoras, a partir do rio São Francisco. Mas a renda da família só garante que isso aconteça dez dias por mês. O açude, que em outros tempos ajudaria a suprir as demandas da zona rural, não espelha o céu como antes.
Em 2020, 18 famílias da região foram beneficiadas com o sistema Bioágua, implementado pelas organizações ActionAid e Caatinga. Apesar da pouca idade, Edras explica como uma tecnologia de fácil construção, manutenção e manejo mudou sua rotina, despertando um novo olhar para possibilidades de gestão consciente de água. Isso porque o sistema reaproveita as águas do banho e da lavagem de roupas e louça para a irrigação, com auxílio de um filtro de decantação com camadas de seixo, brita, areia lavada, serragem e húmus.
Se antes o menino via porcos e galinhas (para consumo próprio) serem vendidos por falta de comida e a terra descoberta de horta, hoje, o reuso da água permite que a pequena produção familiar de grãos, raízes, legumes e hortaliças – que tem o coentro como carro-chefe – resista até mesmo aos períodos anuais de estiagem. “As árvores também começaram a dar frutos”, observa Edras, que ajuda a mãe a irrigar a plantação e colher no quintal a comida que vai para a mesa.
Sua história, fruto do sertão, é a esperança de que o ser humano entenda que água, alimento, criança e vida são sinônimos de uma mesma coisa, que também atende por natureza.
A crise hídrica e os impactos às infâncias
As crianças compõem um dos grupos sociais mais afetados pelos processos migratórios por falta de recursos ou eventos climáticos extremos. Também são elas que, ao lado de suas mães, muitas vezes assumem tarefas do cotidiano, até desacompanhadas, tendo que buscar e carregar baldes de água limpa a quilômetros de distância de suas casas. Isso significa que enfrentar a crise climática e buscar soluções inteligentes para a gestão da água é devolver às crianças o tempo de, simplesmente, serem crianças.
“O momento de ser criança, de estar na escola, de brincar e ampliar as possibilidades de desenvolvimento é negado quando não há acesso à água limpa” – Junior Aleixo, ActionAid Brasil
A falta ou contaminação da água no campo e nas cidades traz implicações diretas para todas as crianças, mas, especialmente, para aquelas que se encontram em estágio inicial de desenvolvimento: se há redução de água, há menos alimentos e, consequentemente, insegurança alimentar. Na prática, essa insegurança se traduz como perda da disponibilidade ou acesso permanente a alimentos de qualidade, com alto valor nutricional. Além disso, outra série de direitos essenciais para a infância são negados, como moradia, lazer, educação e saúde.
Em agosto de 2021, o Unicef em parceria com o movimento Fridays for Future lançaram a primeira análise abrangente que discute o risco climático a partir da perspectiva da criança. O documento, intitulado “A crise climática é uma crise dos direitos da criança: apresentando o índice de risco climático das crianças”, revela que os locais onde as emissões de gases de efeito estufa são geradas com mais intensidade não coincidem com aqueles onde crianças e adolescentes estão sofrendo danos mais significativos. Ou seja, os 33 países classificados como de “risco extremamente alto” são responsáveis por apenas 9% das emissões globais de dióxido de carbono. Enquanto isso, dez países representam 70% das emissões globais – sendo apenas um considerado de “risco extremamente alto”.
Estes riscos se referem a ciclones, doenças transmitidas por vetores, poluição por chumbo ou ondas de calor. De acordo com o relatório, 920 milhões de crianças e adolescentes estão altamente expostos à escassez de água e outras 330 milhões expostas a inundações ribeirinhas. Um dado alarmante é o de que uma em cada três crianças e adolescentes no mundo vivem em áreas onde, pelo menos, quatro desses riscos climáticos e ambientais se sobrepõem.
“Chamamos de ‘injustiça climática’ o fato de populações mais afetadas serem as que menos contribuem para a perpetuação desse modelo de destruição”, afirma Junior Aleixo, especialista em Justiça Climática na ActionAid Brasil e doutorando de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. É o caso de crianças, mulheres, povos tradicionais, periféricos e de baixa renda, que, por se encontrarem em contextos mais vulneráveis ao modelo econômico vigente e às mudanças climáticas, devem se tornar prioridade em serviços essenciais e políticas públicas.
Se pensarmos nas crianças, fica evidente que elas não são atores de perpetuação da destruição de florestas e exaustão de recursos. Mas também é o caso de diversas comunidades rurais e populações que, cotidianamente, constroem possibilidades e alternativas de sobrevivência nesse contexto – como a família de Edras -, contribuindo para a gestão consciente da água em momentos de escassez.
Cadê a água do Brasil?
O Brasil abriga 12% das reservas de água doce do planeta, o que constitui 53% dos recursos hídricos da América do Sul. Ao todo, possui 83 rios fronteiriços e transfronteiriços, bacias hidrográficas (60% do território nacional) e aquíferos. Com tamanha abundância, o que explica a emergência de uma crise hídrica?
O “Projeto de mapeamento anual do uso e cobertura da terra no Brasil”, do MapBiomas, reuniu cientistas para uma análise de imagens de satélite de todo o território brasileiro entre 1985 e 2020. Os dados mostram que a superfície de água no país reduziu 15,7% nos últimos 30 anos, com perda em todas as regiões hidrográficas, em todos os biomas.
Junior Aleixo explica que existe uma relação direta entre crise hídrica e crise climática. “Para que as chuvas aconteçam, as florestas precisam estar de pé, produzindo os chamados ‘rios voadores’ e funcionando como filtros de emissão de CO2 [dióxido de carbono].” É o que ocorre, por exemplo, na Amazônia, bioma com maior cobertura hídrica no país, com mais de 10,6 hectares de área média, segundo o MapBiomas Água.
No entanto, as queimadas têm convertido as florestas em terras para pecuária e agricultura, aumentando a temperatura local, alterando cabeceiras de rios e nascentes e até mesmo provocando assoreamento de rios e lagos. Essa mesma produção se torna vítima das mudanças climáticas, que modifica o curso e a intensidade das chuvas em regiões distintas.
Entre as consequências desse cenário estão o aumento das queimadas, racionamento de água nos grandes centros urbanos e a perda da produção agrícola. Não à toa, o MapBiomas mostra que o Mato Grosso do Sul, referência para o agronegócio do país, perdeu 57% de superfície de água (basicamente no Pantanal) em 35 anos, se tornando o estado com a maior perda absoluta e proporcional dos recursos hídricos.
O Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, liderado pelos ministérios da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente, prevê uma possível perda de 11 milhões de hectares de terras agricultáveis devido às alterações climáticas nos próximos 13 anos. Aleixo enfatiza:
“Se não há água, não há produção agroalimentar”
A comida está mais cara
No Paraná, a falta de chuvas levou ao atraso da semeadura, fazendo com que produções sofressem impactos de pragas e de geadas fora dos ciclos convencionais. A quebra da produção de milho significou prejuízo para o bolso dos consumidores – 124% mais caros que em 2020, segundo o Departamento de Economia Rural (Deral) da Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento -, além de reflexos na criação de animais que se alimentam desse grão, como frango, peixe e porco. Mesmo sendo o maior produtor de feijão do país, o estado diminuiu 48% de sua colheita nas duas primeiras safras do ano.
No noroeste paulista, 80% da atividade agropecuária foi comprometida. O relatório do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão ligado ao Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovações, divulgado em julho de 2021, alertou para uma situação de “seca extrema” na região, com “risco alto” para a agricultura familiar. Esse conjunto de fatores diminui a oferta de alimentos e encarece aquilo que é disponibilizado no mercado.
O Brasil apresenta uma má gestão histórica da água, segundo Aleixo. Para ele, esse cenário se reflete na ausência de fiscalização direta sobre as atividades do agronegócio e da pecuária, bem como no processo de mercantilização dos recursos hídricos, a exemplo do Marco Legal do Saneamento. Com isso, os territórios de maior escassez acabam se concentrando nas fronteiras agrícolas, onde grandes produções de monocultura para exportação acabam utilizando águas de aquíferos e contaminando solo e lençóis freáticos com agrotóxicos.
Agrofloresta: água se ‘planta’, mas não se planta sem água
Imagine a vida no sertão, onde o clima predominante é o semiárido: longos períodos de seca, rios temporários, caatinga (bioma de menor superfície de água no Brasil). Mas também terra de figo, uva, umbu, maracujá, jaca, manga, taperebá e acerola. Nesse cenário de mitos e contrastes, o agricultor agroflorestal Antônio Gomide vem buscando soluções de produção, a partir de uma agricultura capaz de atuar na recuperação de áreas degradadas. É o que ele chama de “plantar água”.
Seu ponto de partida é a cidade de Crato, no Cariri cearense, onde, a cada ano, as secas se tornam mais severas e as chuvas mais intensas. Quando chegam, lavam a vegetação dos solos e deixam a terra exposta aos períodos de sol agudo, fazendo “ferver” a temperatura da região, que já alcançou a marca de 47ºC.
Nada disso impede que Antônio Gomide e sua família vejam o quintal verdejar. “Mesmo com falta de água, é possível apresentar às pessoas novas formas de produzir, utilizando os próprios mecanismos da natureza”, defende. Ele acredita que esse seja o momento ideal para criar referências de educação agroflorestal para as próximas gerações, um modelo que combina a produção de alimentos orgânicos com o plantio de espécies de árvores, restaurando florestas e contribuindo para manter a capacidade de retenção de água no solo. Ele levanta a reflexão:
“É a água que permite a perpetuação da vida ou é a presença da vida que traz de volta a água?”
Presidente do Movimento de Agricultores de Inclusão Sintrópica (Mais) e pai da Naiá, de um ano, Antônio lamenta que o que restou da caatinga esteja se transformando em grandes manchas de desertificação. As armas que possui para enfrentar a seca são palma forrageira, sisal, mandacaru e piteira – reservatórios naturais de água -, usadas como alternativas de manejo, picotadas nos alicerces das hortas: “A única forma de cicatrizar o semiárido é restabelecendo o solo.”
Apesar do anúncio de boas colheitas, o agricultor não romantiza o próprio trabalho. “O canto dos pássaros e o luar do sertão podem ser poéticos, mas, na prática, o que existe por aqui é caça e destruição.” Se uma sociedade que não soube lidar com a fartura saberá gerenciar a escassez de água a partir daqui, apenas articulações futuras dirão.
No entanto, para que um modelo de produção agrícola à base de monocultura, agrotóxicos e transgênicos – que prejudica, sobretudo, as crianças -, perpetuado ao longo de muitas gerações, dê espaço a novas formas de plantio, não basta apenas boa vontade das famílias, mas incentivo por parte do Estado. Por isso, Antônio defende que o conhecimento agroflorestal ganhe incentivos públicos e seja disseminado para pequenos, médios e também grandes produtores, capazes de criar referências que gerem impactos em maior escala.
Diversidade alimentar, regeneração dos solos da caatinga e segurança hídrica. Este é o futuro de esperança que o agricultor projeta para as crianças de sua família, que moldam suas dietas de acordo com os ciclos de cada cultura. Em casa, a alimentação saudável é um horizonte: não se compram alimentos industrializados, com excesso de açúcar, hidrogenados ou cheios de conservantes. “As crianças consomem o que tem na mesa. Filhos não agirão de forma diferente de pais e mães que não estejam buscando transformações diante de um cenário de crise”, defende Antônio.
Na agricultura familiar, a garantia de água para plantio é indispensável, pois a produção gera um saldo positivo na alimentação básica, fortalecendo a segurança alimentar. Em espaços coletivos de trabalho com a terra, é muito comum que as crianças aprendam com os mais velhos, desde cedo, a lidar com as colheitas, desenvolvendo mais autonomia: frutas são desidratadas, mandioca vira farinha, brotos vão para a conserva, frutos se transformam em óleo – conhecimentos de manipulação de alimentos passados de geração em geração. Sem acesso à água, essas heranças se apagam, deixando as crianças à mercê de um processo em escala industrial, do qual estão excluídas.
“Uma dieta mais simples pode ser muito mais nutritiva do que uma falsa variedade de produtos sem valor nutricional”, alerta o agricultor.
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Insegurança alimentar
O Brasil enfrenta a pior seca dos últimos 91 anos, de acordo com dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Com a baixa da água nos reservatórios das hidrelétricas, o governo aciona termelétricas, mais caras e poluentes, ou acaba importando energia do Paraguai e Uruguai, impactando diretamente o preço da conta de luz. Mas esta não é a única preocupação.
O atual sistema alimentar, que deixou de solucionar o problema da fome para se tornar um grande investimento, ameaçando a biodiversidade, é protagonista da crise hídrica, bem como uma das principais vítimas de seus efeitos. A falta de água atinge as principais regiões produtoras de alimentos no país, causando problemas no desenvolvimento de plantas por falta de irrigação. O feijão, o café e a laranja, partes do cardápio básico do brasileiro, já sofrem prejuízos, pois a falta de chuvas atrapalha a florada dos frutos e o enchimento dos grãos. A seca também diminui a qualidade das pastagens, silos e fenos, promovendo danos à alimentação das vacas leiteiras e do gado de corte.
Juntas, as crises climática, de obesidade e de desnutrição estão associadas ao sistema alimentar e representam um dos principais desafios atuais da humanidade. Saiba mais em “Sindemia global: um olhar sobre o futuro da saúde das crianças”