Pandemia de covid-19 expõe desigualdades entre territórios da cidade e traz efeitos mais intensos sobre as famílias mais pobres, afirma especialista
A escala e os efeitos da atual pandemia de covid-19 varia muito nas vidas das famílias brasileiras. Entre as mais afetadas estão as em situação de rua, as que vivem em ocupações ou favelas, além das chefiadas por trabalhadoras informais.
Às seis horas da manhã, a viagem de ônibus que liga Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, aos bairros de classe média, próximos ao aeroporto de Congonhas, leva aproximadamente uma hora e meia. O trajeto era feito todos os dias por Zenivalda Bonfim, 58 anos, para chegar ao trabalho, até a adoção das medidas de contingenciamento para combater o novo coronavírus. Empregada doméstica em cinco apartamentos, ela não é remunerada por nenhuma das famílias desde o início do isolamento domiciliar. Sua história revela uma face da desigualdade social evidenciada pela pandemia de coronavírus.
Na sua casa moram ao todo dez pessoas que dependem da sua complementação no final do mês: três filhos, uma mãe cardíaca, duas netas, afilhada, marido e genro. “Tenho diabetes e pressão alta, não posso me expor de jeito nenhum. Mas iria trabalhar se não fizesse parte do grupo de risco”, comenta. Zenivalda não tem contrato formal para negociar adiantamento de férias ou outras alternativas diante da chegada da Covid-19.
“Tenho diabetes e pressão alta, não posso me expor de jeito nenhum. Mas iria trabalhar se não fizesse parte do grupo de risco”
O retrato dessa informalidade também é bastante familiar para Marcelo Rocha, morador de Mauá, região metropolitana de São Paulo, um dos autores do “Manifesto das filhas e dos filhos de empregadas domésticas e diaristas”. O documento, publicado dias depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) e autoridades políticas internacionais recomendarem medidas de combate à pandemia de Covid-19, pede quarentena remunerada para todas essas mulheres e dispara: “é pela vida de nossas mães”.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,3 milhões de pessoas prestam serviços domésticos no Brasil.
“Quarentena deve ser um direito de todas as famílias, e não um privilégio”, defende a pesquisadora e professora de direito urbanístico-ambiental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Giovanna Milano. Mas ela sabe que nem todos têm escolha. O marido e o genro de Zenivalda, por exemplo, seguem trabalhando presencialmente, um como funcionário do aeroporto e outro em um hospital, expostos aos riscos da contaminação e de serem possíveis transmissores da doença. Afinal, essa história enreda muita gente que circula entre pontos da cidade com realidades completamente diferentes.
“Quarentena deve ser um direito de todas as famílias, e não privilégio de algumas”
Para a pesquisadora, não é possível pensar a cidade e as diferenças entre as famílias sem levar em conta que existem territórios “diametralmente opostos, mas que se complementam”. O trajeto diário de Zenivalda de casa ao trabalho, por exemplo, traça uma linha da desigualdade de aproximadamente 11 quilômetros.
“Em um ponto, temos pessoas em situação precária de trabalho, ambulantes, empregadas domésticas, atendentes de call center. No outro, temos um espaço que se utiliza desses serviços. Um possui acesso a condições sanitárias desejáveis, o outro não”, descreve.
Segundo ela, a desigualdade urbana se produz nessa lógica complementar: só existem áreas valorizadas porque há outras que continuam precárias. Com a disseminação do novo coronavírus, esses contrastes ficam explícitos. Ela sugere que a situação seja também uma oportunidade para refletir sobre a cidade enquanto espaço de aprendizagem para as crianças, percebendo que as experiências na infância variam conforme as áreas em que habitam.
Ainda de acordo com Milano, áreas de ocupações irregulares e sem saneamento básico levantam mais um problema: as recomendações convencionais de prevenção para evitar a proliferação da Covid-19, embora sejam essenciais, podem ser falhas quando não observam a realidade de uma enorme parcela da população do país.
“Nós economizamos água não apenas por consciência, mas também por sobrevivência. Lavar a mão o tempo inteiro não é uma possibilidade”, relatou o ativista e morador do Complexo do Alemão, Raull Santigo em sua conta no Twitter. Desde o início da quarentena, ele mantém notícias e relatos pessoais em sua rede social, por meio do #diariodeumfaveladonapandemia.
Em março, o Instituto Data Favela entrevistou 1.142 pessoas, em 262 favelas de todas as regiões do país para entender o impacto da pandemia nessas comunidades: nessa população, formada por 13,6 milhões de pessoas, um em cada três moradores terá dificuldades para comprar produtos de alimentação e higiene. Para 72% dos moradores, sem nenhum tipo de poupança, uma semana em casa é o suficiente para baixar o padrão de vida. Em virtude dessa situação, a Central Única das Favelas sugeriu ao poder público medidas para enfrentar os efeitos da pandemia como, por exemplo, apoio específico a famílias de crianças que estarão impedidas de frequentar as creches.
Nesse contexto, não só a própria pandemia tem impactos diferentes nas vidas das populações, mas a escala e os efeitos do atual estado de calamidade pública decretado pelos governos também variam muito. Entre as famílias mais vulneráveis estão aquelas em situação de rua, que nem casa têm para isolar-se. “Como evitar aglomerações quando parte dessa população dorme em albergues e já está normalmente exposta a várias outras doenças?”, questiona Milano.
Em São Paulo, a prefeitura calcula que 24.344 pessoas estejam nessa situação, sendo 7.002 delas com mais de 50 anos, segundo informações de 2019. “Esses dados costumam ser subnotificados”, alerta a pesquisadora. De acordo com a estimativa do Movimento Nacional da População de Rua, a capital teria mais de 32 mil pessoas vivendo nessa condição.
Situações comuns do cotidiano das favelas, das ocupações e das ruas se evidenciam nos momentos de pandemia e agravam os riscos do contágio, como precariedade nas condições de moradia, informalidade do trabalho, limitações aos equipamentos de saúde, deslocamento urbano, falta de água, fome e miséria.
“É urgente o direito à saúde, à moradia digna, ao trabalho com maior estabilidade e qualidade. Na verdade, estamos falando de direitos mínimos contra a barbárie”, afirma Milano.
“Estamos falando de direitos mínimos contra a barbárie”
Recomendações emergenciais
Nesse sentido, algumas ações podem apontar um norte para iniciativas no país em relação a medidas urgentes de proteção a famílias vulneráveis. No Paraná, a Defensoria Pública (DPE-PR), por exemplo, recomendou ao Município de Curitiba que locais públicos educacionais e esportivos, com espaço amplo e que estejam fechados temporariamente, sejam liberados para atender a população em situação de rua, para que possam tomar banho e realizar higienização. Outras recomendações da DPE-PR incluem:
O Governo do Estado do Paraná publicou outra série de decretos e medidas com o objetivo de minimizar os efeitos causados pela pandemia, como a manutenção do abastecimento e distribuição de produtos necessários e essenciais, incluindo merendas escolares na rede pública de ensino.
Se a Covid-19 tem impactos mais intensos sobre as famílias pobres, também é possível considerar que seus efeitos são sentidos de maneira diferente por homens e mulheres. Essa percepção levou a Agência das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), a publicar, no dia 17 de março, 14 recomendações sobre como incorporar mulheres e igualdade de gênero na gestão da resposta à crise na América Latina e no Caribe.
“As mulheres constituem 70% da força de trabalho em serviços sociais e de saúde em escala global, o que as posiciona na linha de frente do combate à pandemia”, afirma a advogada de família e doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Lígia Ziggiotti de Oliveira. Além disso, ela reforça que a entrada das mulheres no mercado profissional se dá por meio de serviços informais, sendo o trabalho doméstico recordista no país. “Se estão sem trabalhar, como garantir a percepção de seus direitos, inclusive à remuneração? Se são forçadas a continuar, como protegê-las do contágio?”, questiona.
Vale lembrar que as famílias chefiadas por mulheres vêm aumentando substancialmente nos últimos tempos. O número de lares neste formato dobrou: de 14 milhões, em 2001, para 28,9 milhões, em 2015. Desses, 11,6 milhões são núcleos familiares no “arranjo monoparental”, sem cônjuge. Os dados são da pesquisa realizada pelos demógrafos José Eustáquio Alves e Suzana Cavenaghi, do IBGE, e publicada no livro “Mulheres Chefes de Família no Brasil: Avanços e Desafios”, este ano.
Violência doméstica
O isolamento social como uma das medidas para contenção da pandemia de Covid-19 pode ser especialmente crítico para mulheres para quem suas próprias casas são sinônimo de medo ou insegurança. Como há probabilidade de aumento das tensões nesse espaço, a ONU Mulheres alertou para um possível crescimento nos casos de violência doméstica, incluindo abuso sexual de mulheres e meninas em casa. Em Curitiba, a Polícia Militar (PM) apontou que foram registradas 217 queixas entre os dias 20 e 22 de março, 28 casos a mais que o final de semana anterior (13 a 15 de março).
Segundo o relatório “Estupro no Brasil, uma radiografia segundo os dados da Saúde (Ipea, 2014)“, 24% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos e 32% são amigos ou conhecidos da vítima. À medida que a idade da vítima aumenta, o agressor desconhecido passa a configurar como principal autor do estupro, respondendo por 61% dos casos.
Na análise da advogada Ligia Ziggiotti, entre as providências possíveis para esse contexto está a inclusão de mulheres sensíveis à causa nos processos políticos decisórios acerca do enfrentamento da pandemia, além da ampliação da rede de atendimento às mulheres e às meninas vítimas de violência doméstica. Uma medida que, segundo ela, se choca com o cenário de desinvestimento, desde 2016, nesses serviços especializados.
As situações apresentadas evidenciam duas importantes questões. A primeira é a dos múltiplos cenários de vida da população brasileira, que exigem recortes distintos dentro das medidas de prevenção à epidemia. Afinal, a dinâmica de combate ao vírus não é a mesma para uma família com seis pessoas residindo em 40 metros quadrados e para domicílios onde cada membro tem um quarto e um banheiro à disposição.
A segunda é a da necessidade urgente de garantir políticas públicas: famílias sem saber o que fazer com as crianças em casa sem as babás ou diaristas; babás e trabalhadoras domésticas informais sem salários, com impactos econômicos graves dentro de suas próprias casas; casas sem renda suficiente para comprar sequer um sabonete; e populações sem moradia ou com inúmeras vulnerabilidades habitacionais.
Um avanço nessa discussão foi a aprovação da renda básica emergencial de R$ 600 mensais para famílias de baixa renda feita pelo Senado Federal, nessa última segunda-feia (31/3). O valor pode chegar até R$ 1.200 mensais para mães solo e chefes de família. O projeto de lei é uma resposta à crise econômica trazida pela pandemia do novo coronavírus e pode durar até três meses, sujeito à prorrogação. A medida vai agora à sanção presidencial.
Enquanto isso, Zenivalda Bonfim adota outras medidas de sobrevivência e convivência diante da pandemia. “A situação está ruim, mas estamos economizando para comprar alguns produtos básicos para outras famílias que estão sem o que comer”, conta. Apesar do impacto no seu padrão de vida, ela tem participado de ações de solidariedade junto com outros moradores de Parelheiros.
Comunicar erro
“Minha mãe trabalha desde os seis anos de idade como doméstica e diarista, e a vi muitas vezes ir trabalhar doente para manter seus compromissos. Mesmo falando sobre os riscos do coronavírus, ela não tem como faltar, com risco de ser demitida. As domésticas estão correndo grandes riscos e também são uma grande possibilidade de contágio, principalmente nos transportes nas metrópoles”, relata Marcelo Rocha, no manifesto.