Incomodada com a forma como as pessoas com deficiência eram expostas na mídia, a administradora e mestre em políticas públicas, Mariana Torquato, 31, decidiu protagonizar outra narrativa. Hoje, o “Vai uma mãozinha aí?”, seu canal no YouTube, tem 166 mil seguidores. A influenciadora faz parte das 18,6 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Essa população representa 8,9% dos habitantes do país com dois anos ou mais.
Mesmo sendo um público tão expressivo, durante muito tempo, essas pessoas viveram à margem das políticas públicas e sequer tinham a presença percebida. Ou eram, inclusive, vistas como seres “incapazes” e “inferiores”. Embora esse tipo de discurso reverbere até hoje, é cada vez mais comum falar sobre diversidade, um movimento que rompe com um ciclo histórico de apagamento e invisibilização das pessoas com deficiência.
Torquato, que nasceu sem um dos braços, em decorrência de uma má formação, só passou a ter contato diário com pessoas como ela na vida adulta, quando, então, começou a trabalhar em um órgão público que distribuía carteirinhas de gratuidade no transporte estadual. “Trabalhar ali começou a abrir meus olhos para a imensidão que é esse assunto”, conta. Mas, quando era criança, na década de 1990, cansou de ver as pessoas perguntando à mãe dela quando iria usar uma prótese.
“Antes de eu me entender diferente, as pessoas já apontavam para mim e diziam: ‘Ei, tem alguma coisa aí com você’”, conta Torquato.
Além das redes sociais, as pessoas com características antes consideradas “diferentes” estão ocupando espaços na televisão, seja por meio das telenovelas, dos reality shows ou do jornalismo, e inclusive têm protagonizado filmes infantis, como “Luca” e “Float”, da Disney. Para Torquato e outras pessoas com deficiência, isso fortalece o vínculo dessa população, molda uma narrativa positiva sobre a deficiência e pode influenciar na forma como toda a sociedade os enxerga. Contudo, recomendam cuidado, para que essa exposição reforce a representatividade, sem alimentar preconceitos.
Mudança de discurso
Sociedades que supervalorizavam o corpo, como os impérios Grego e Romano, eram intolerantes às diferenças físicas e intelectuais. Na Idade Média, existia a ideia de que a deficiência se relacionava a “castigos” e “pecados”. A mudança na forma de lidar com a deficiência é uma conquista atrelada à evolução dos direitos humanos, sobretudo à Declaração dos Direitos de Pessoas com Deficiência Mental, criada em 1971 pelas Nações Unidas.
Atualmente, exaltar a diferença negativamente tem nome: “capacitismo”, um crime, de acordo com o artigo 4 da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146). “Essa visão negativa começa a mudar quando as famílias não aceitam mais que seus filhos fiquem escondidos. Quando elas começam a lutar pelo espaço na sociedade”, explica a coordenadora da Escola da Inclusão da Universidade Federal Fluminense (UFF), Fernanda Serpa.
Além disso, o movimento de exaltação da diversidade nos diversos espaços de poder se fortaleceu. “O mundo está mais preocupado com as pessoas que são mais discriminadas de uma maneira geral. Mas, não sabemos até que ponto por uma questão de marketing ou responsabilidade social”, pondera a psicóloga clínica, docente e terapeuta, Priscilla Souza. Independente da finalidade, esses movimentos trouxeram a pauta à tona. E, consequentemente, a vontade de reivindicar a representatividade em todo lugar.
Expor para dialogar com as crianças
Pessoa com deficiência, Souza passou boa parte da infância, adolescência e início da vida adulta sofrendo preconceito. Para ela, a exposição nos espaços públicos é uma forma de conquistar direitos. Assim, a psicóloga usa o próprio exemplo para defender que as pessoas com deficiência estejam nos espaços on e off-line de convivência social. Quando criança, nunca podia andar nas ruas da própria cidade, no interior de São Paulo, por falta de rampas. Na adolescência, decidiu sair mesmo assim. Aos poucos, foi vendo o município se transformar para ela. “O deficiente tem que fazer pós-graduação em cara de pau. As políticas públicas estão aí, mas nem sempre são cumpridas”, afirma.
Torquato acredita que a exposição também é uma forma de falar das pessoas com deficiência sem colocá-las na caixinha do “coitadismo” ou do heroísmo. “Eu só via pessoas com deficiência na TV quando a gente falava de Paralimpíadas ou de Teleton. E eu não me via em nenhum desses estereótipos”, conta. Para ela, o movimento de ter mais criadores de conteúdo deficientes nas redes sociais ajudou a levar a pauta a pessoas de perfis diferentes. “Normalmente, quando querem falar do tema, levam pais ou médicos, psicólogos, pedagogos, mas não as pessoas com deficiência. Isso começou a mudar quando a gente botou a cara na internet. Foi o único lugar onde a gente conseguiu falar”, diz.
Benefícios para todos
Ao usar humor para trazer informação em seu canal, Torquato acabou criando uma comunidade formada por pessoas com deficiência. “As redes sociais vêm no sentido de promover a equidade. A criança vai ver que uma criança com deficiência vai nos mesmos shows, lê os mesmos livros”, opina Serpa. Além disso, segundo Souza, a exposição de uma criança desde muito cedo às diferenças pode ampliar as chances de que ela se torne um adulto que sabe conviver com a diversidade de maneira natural. “A criança também vai ensinar sobre a diferença aos adultos com quem convive, ao falar sobre os amiguinhos diferentes que tem na escola”, complementa a psicóloga.
Torquato acredita que o benefício é cruzado. Isso porque as crianças com deficiência podem se enxergar no outro e se aceitar mais rápido. “Temos muito mais anos e históricos de exclusão do que de inclusão. O canal foi bom para a minha autoestima e aceitação, para ter orgulho da minha deficiência. E eu sentia muita falta disso quando eu era criança.”
O mergulho no YouTube a fez perceber que existem vários tipos de deficiências e diferenças. Portanto, para ela, “não adianta chamar uma pessoa deficiente para a televisão e achar que isso está bom. A gente precisa de diversas pessoas com deficiência, em diversos locais, fazendo diversas coisas”.
“A gente precisa ter cuidado para não cair no tokenismo, ou seja, ter uma só pessoa falando sobre todas as diferenças”, diz Torquato.
Sobretudo, Torquato, Souza e Serpa ressaltam que nem sempre representatividade significará equidade. Pelo contrário, a exposição pode acabar reforçando estereótipos. “A representatividade significa a presença do diferente entre nós. E ela pode se dar de inúmeras formas, desde uma pessoa com deficiência até uma que tenha superdotação”, afirma. “E não adianta eles estarem presentes nos espaços se não forem atendidos em suas necessidades.”
Quando a exposição a deficiências reforça estereótipos
A médica Liz Helena Pessôa, 39, é mãe de um adolescente de 16 anos com altas habilidades e superdotação, e de outra criança de 5 anos em processo de diagnóstico. Para ela, falar da superdotação na internet, por exemplo, é importante “para autoconhecimento e para combater mitos”. Além disso, pode ajudar na identificação de outras crianças para que as escolas possam se estruturar para recebê-las. Afinal, é no ambiente escolar que as chances de serem vítimas de bullying, bem como de desenvolver problemas de saúde mental, se ampliam. Porém, lembra que existe muito conteúdo sem qualidade circulando e que “é extremamente prejudicial quando a gente vê o reforço dos mitos, como o da genialidade, que acontece geralmente em programas de TV”.
Serpa afirma ainda que, quando o assunto é superdotação, há uma tendência também das famílias de exporem as crianças como gênios. Para ambas, nesse caso, o segredo está no acompanhamento psicológico de toda a família, para entender os limites da exposição e também mediar as expectativas.
“A gente não pode fazer da criança uma vitrine”, afirma Serpa.
Nesse sentido, o cuidado com a quantidade de exposição é importante para não vitimizar uma pessoa ou levá-la a sofrer mais preconceito. “Existem muitos vídeos emocionantes que as pessoas postam expondo uma pessoa na cadeira de rodas no trabalho. Aqueles que trazem perguntas como: ‘do que você está reclamando?’. E isso é capacitismo puro. As pessoas com deficiência são expostas como se seus corpos fossem públicos, e eles não são”, lembra Torquato. No fim, como defende Souza, o grande objetivo deve ser fazer com que adultos e crianças se sintam iguais, apesar das diferenças.“A gente não quer se expor para gerar dó. É para conseguir se igualar como pessoa.”
No Brasil, alguns dos principais influenciadores digitais, como Lorrane Silva (@_pequenalo) e Ivan Baron (@ivanbaron), são pessoas com deficiência. Juntos, eles têm 5 milhões de seguidores, que acompanham temas diversos, que vão muito além da luta pela representatividade. Além disso, as duas últimas edições dos reality shows da TV Globo, “No Limite” e “Big Brother Brasil (BBB)”, também tiveram entre seus participantes e vencedores paratletas.