No dia da conversa com Lunetas, no cardápio da Escola Classe 31, em Brasília, teve arroz, feijão, peixe ao molho e abacaxi. Nos turnos da manhã e da tarde, Priscila Maria Xavier e mais três cozinheiras preparam as refeições de quase dois mil alunos. Mas, se hoje os pratos são completos, não faz muito tempo, os estudantes chegaram a receber pipoca e suco industrializado. “Os pais reclamaram e, felizmente, voltamos a preparar comida.”
A escola fica no Sol Nascente, a maior comunidade do país, com mais de 32 mil domicílios. Lá, a 35 km do centro do poder político brasileiro, “muitos não têm o que comer em casa“, diz Priscila. “Eles saem sem tomar café da manhã e chegam ansiosos perguntando o que vai ter no lanche. É triste, a gente se emociona. Ao mesmo tempo, é muito gratificante quando eles vêm correndo dizer ‘tia, hoje está uma delícia.’”
“Recebemos legumes, verduras e frutas. Tudo fresquinho, de acordo com o cardápio da semana.” Enquanto boa parte dos produtos utilizados nas refeições da escola vem da agricultura familiar, a cozinheira também fica tranquila em saber que os dois filhos mais novos estão recebendo “comida fresca e de qualidade” nas escolas públicas onde estudam. “O que eles mais gostam é quando tem galinhada.”
Referência global no combate à fome
Garantir a alimentação nas escolas é uma alternativa viável para combater a fome. Com foco na integração social e econômica dos mais pobres, essa foi a proposta do Brasil ao apresentar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) integrado à agricultura familiar como caminho para sair do Mapa da Fome até 2026, no contexto da Aliança Global Contra a Fome.
“A nacionalização de uma política pública de alimentação escolar nasce para matar a fome, motivada por pesquisas sobre deficiências de crescimento causadas pela desnutrição crônica”, diz a historiadora e pesquisadora Adriana Salay.
Apesar do Pnae ser uma das políticas públicas, relacionadas à segurança alimentar, mais antigas e abrangentes do mundo, ainda há muita desigualdade e incongruências em como o programa é aplicado, afirma Adriana. Isso porque a gestão fica por conta de estados e municípios. Então, há a escola comprometida em oferecer uma alimentação adequada. Há também a escola que sequer tem cozinha e oferece bolacha e sucos industrializados aos estudantes.
Contudo, com a descentralização da administração dos recursos destinados à alimentação escolar, a partir de 1994, a logística melhorou, pois pequenos produtores e comerciantes locais puderam se tornar fornecedores.
Desde 2009, quando a integração de produtos da agricultura familiar para a merenda escolar virou lei, 30% dos recursos devem ser investidos na aquisição de insumos de pequenos produtores.
Além de oferecer aos estudantes uma alimentação diversa e mais saudável, o cardápio se adequou aos hábitos e às diferenças regionais. O incentivo à agricultura familiar também garante previsibilidade para quem produz e melhora a qualidade de vida da comunidade.
No entanto, um dos maiores gargalos dos pequenos e médios agricultores é a distribuição. Outro ponto é a incerteza de não saber se terá para quem vender a produção por um preço justo. As famílias produtoras enfrentam ainda a burocracia e o lobby milionário da indústria, interessada em fornecer a maior parte dos produtos da alimentação escolar. Nessa disputa desigual, políticas públicas fazem a diferença.
Qualidade para quem consome, segurança para quem produz
“Com 11 anos já cozinhava para meus irmãos quando nossa mãe ia trabalhar”, conta Priscila Maria Xavier. Apesar disso, não tinha experiência antes de trabalhar com alimentação escolar.
Cozinheira escolar há 8 anos, ela acredita que ainda tem muito a aprender. Em busca de mais renda e aprimoramento, começou, recentemente, um curso de cozinha profissional pelo projeto social Gastronomia Periférica. Na sequência, pretende fazer faculdade de gastronomia.
Na outra ponta, a agricultora Joice Aparecida Lopes planta mandioca, tomate, abóbora, abacaxi, verduras folhosas, além de outras variedades de acordo com a época. No assentamento Dandara, em Promissão, no interior paulista, as famílias dos 203 lotes têm na atividade agrária sua principal fonte de renda.
O filho mais novo de Joice estuda na escola do assentamento, que recebe os produtos que eles cultivam ali mesmo. Além da segurança de poder continuar no campo produzindo alimentos que serão comprados por um preço justo, fornecer para o Pnae tem ainda outra grande vantagem. “É muito bom saber de onde vêm e o quê nossas crianças estão comendo.” Ainda assim, nem tudo o que é produzido é absorvido pelo programa. “Aguardamos a chamada pública, e o que não vai para a merenda, a gente corre atrás para escoar.”
Joice faz parte da Cooperativa dos Produtores Campesinos (Coprocam), que fornece produtos para o Pnae desde 2013. Antes de integrarem o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), os agricultores do Dandara costumavam vender a produção para atravessadores por um valor bem inferior ao que recebem hoje. “A garantia de saber que conseguiremos vender o que vamos produzir dá uma segurança. Conheci pessoas que, sem estarem inseridos em uma cooperativa, venderam o lote e se arrependeram depois”, diz.
A “turnê sem Nestlé” em prol da alimentação local na escola
Em julho de 2023, a nutricionista Neide Rigo viajou até Tefé, no Amazonas, com um grupo de nutricionistas a convite do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Por alguns dias, o grupo autointitulado “Turnê sem Nestlé” vivenciou a rotina e os desafios das cozinheiras e merendeiras das comunidades ribeirinhas da rede pública.
“Pensei em um monte de receitas com produtos locais, sem processados, mas esbarramos em muitas dificuldades estruturais. Algumas comunidades contavam com apenas uma merendeira; outras não tinham cozinha na escola”, diz. “Também havia obstáculos relacionados ao ‘fator amazônico’. Isto é, longas distâncias, que complicam a logística e atrapalham o planejamento, além de poucos profissionais para cobrir um território extenso.”
Apesar disso, ela conta que poder utilizar os produtos locais foi bom para todo mundo. “A alimentação escolar fica mais variada, o dinheiro circula no local e estimula a família a continuar no campo, produzindo.”
Segundo Neide, que escreve sobre o assunto no blog Come-se, e tem livros – disponíveis para baixar gratuitamente – sobre agricultura familiar e alimentação escolar, não raro acontece de a comunidade receber uma quantidade de sal, açúcar e farinha para um longo período. Porém, se os insumos acabam, é comum a merendeira repor o que falta do próprio bolso.
Distorções do programa também são frequentes, quando, por exemplo, o município compra um único tipo de produto, como suco de fruta ou geleia, para não desrespeitar a legislação. Ao mesmo tempo, as famílias produtoras também estão sujeitas a lidar com atrasos e calotes na hora do pagamento.
Outro ensinamento que ela traz de sua experiência com alimentação escolar vem de uma viagem ao sul da Bahia, onde realizou oficinas para nutricionistas e cozinheiras. Apesar de o estado ter firmado, no ano passado, o compromisso de utilizar 100% da verba do Pnae na compra de produtos oriundos da agricultura e do empreendedorismo familiar, muitas vezes é preciso fazer um trabalho de convencimento junto à gestão da escola, diz. “Isso porque pode acontecer de acharem que as crianças talvez não gostem das novas receitas.”
Apesar de algumas falhas, a proposta do Pnae de integrar alimentação escolar e agricultura familiar traz inúmeros benefícios para estudantes da educação pública e também para as famílias de pequenos produtores. Para os alunos, ter produtos locais mais frescos, saudáveis e biodiversos é também uma forma de “respeitar as referências nutricionais, os hábitos alimentares, a cultura e a tradição alimentar do território”, afirma Neide. Já a promoção da agricultura familiar, além de “gerar diversificação agrícola, preservação de espécies, cuidados com a terra e sustentabilidade, impulsiona o desenvolvimento da economia local e a soberania alimentar”, mas também promove uma melhor situação socioeconômica dessas famílias e, com isso, traz mais oportunidades para seus filhos.
Todos os dias, cerca de 40 milhões de estudantes se alimentam nas escolas em todo o país. Segundo o Ministério da Educação, em 2023, foram destinados R$ 5,5 bilhões para a merenda de aproximadamente 150 mil escolas públicas. Mas nem sempre foi assim. O direito à alimentação escolar é relativamente recente. Até os anos 1950, não havia uma política pública unificada, ou seja, cada município gerenciava a questão à sua maneira.