Desde que nascemos, a alimentação está associada ao cuidado. Somos acolhidos neste mundo através do leite e da função materna. Por isso, alimento, memória e afeto fazem parte da gente.
O significado social e afetivo do alimento está de alguma forma também contemplado no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que estabelece, entre as suas principais diretrizes, a aquisição de gêneros alimentícios produzidos em âmbito local, com prioridade para as comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos. Entretanto, trazer esta norma para a realidade de crianças e adolescentes brasileiros é como abrir uma trilha na mata desconhecida por muitos, principalmente por aqueles que produzem os alimentos nas roças, a partir de saberes, fazeres, memórias e tradições.
“A legislação sanitária brasileira para alimentos manteve a agricultura familiar e comunitária numa espécie de limbo, ou seja, tentaram marginalizar e criminalizar certas cadeias produtivas artesanais, em benefício da indústria de alimentos ultraprocessados”, destaca Rodrigo Noleto, coordenador do Programa Amazônia do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
Rodrigo explica que as realidades de produção da agricultura familiar e tradicional não foram consideradas na elaboração da lei e que, mesmo com os avanços, a prática da fiscalização prosseguiu criando obstáculos para a comercialização da produção agroextrativista. “As alterações sempre foram feitas sem diálogo com as populações rurais, permanecendo formas de fiscalização que priorizavam as estruturas dos estabelecimentos ao invés de modos tradicionais e qualificados de produção”, justifica.
Na contramão dos movimentos que invisibilizam comunidades rurais na pauta de políticas públicas relacionadas à alimentação está a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa). Constituída em 2016 para solucionar a falta e a inadequação da alimentação escolar nas aldeias indígenas, a Catrapoa tornou-se um fórum permanente que catalisa ações, articulações e debates em torno da temática da alimentação tradicional no Amazonas, com o objetivo de melhorar e adequar a alimentação escolar destinada a indígenas e povos tradicionais. Reúne instituições dos governos federal, estadual e municipal, movimentos sociais, lideranças indígenas, quilombolas e agroextrativistas, e organizações da sociedade civil.
A Catrapoa inovou na forma de operacionalizar a política pública ao habilitar a compra de proteínas e produtos vegetais processados diretamente do produtor, próximo às escolas nas aldeias e comunidades. Pelo menos 350 produtores indígenas, 20 mil estudantes (quase 30% do total do Amazonas) e respectivas aldeias foram beneficiados entre 2019 e 2020.
A Escola Estadual CETI Pedro Alves da Silva, no município de Carauari (AM), recebe semanalmente uma cesta de produtos in natura da Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc), fruto da articulação construída pela Catrapoa. Antes, a escola recebia apenas produtos industrializados para alimentar os seus 578 estudantes, de 9 a 18 anos, matriculados na escola em turno integral. O gestor Ricardo Porfiro Vieira relata que a merenda vinha de barco a partir de Manaus, uma viagem de seis dias e uma noite. “Havia atraso na entrega. Muitas vezes, os produtos chegavam estragados ou em quantidade insuficiente, com prazo de validade vencido e até com cheiro de diesel”, conta.
A qualidade da merenda melhorou com os produtos da agricultura familiar (abóbora, macaxeira, polpa de cupuaçu, farinha de tapioca, polpa de açaí e filé de pirarucu, por exemplo) e faz gosto preparar as três refeições diárias (café da manhã, almoço e lanche da tarde) oferecidas aos estudantes, diz Lívia Valente, merendeira da escola há sete anos. “A gente não tinha o privilégio de ter muitas verduras. Nem cebola a gente recebia. Agora, os estudantes estão aceitando mais o cardápio, pois a comida está mais temperada, o suco é natural e os ovos são daqui mesmo da região”.
A merenda escolar é para muitos estudantes a única oportunidade de acesso à alimentação. “Se estivessem em casa, não teriam o que comer”, acrescenta Ricardo. “Nossos estudantes vivem na região suburbana de Carauari, vêm de comunidades ribeirinhas, as famílias têm muita dificuldade de sobreviver na área urbana.”
A compra direta de alimentos locais, frescos e constituidores da cultura dos povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas e quilombolas promove a soberania e segurança alimentar e nutricional, e valoriza a biodiversidade e as especificidades e vocações dos produtores tradicionais. Resulta também na redução de custos logísticos, maior controle social, além de gerar renda e autonomia para as comunidades.
Entraves e direitos negados
A Catrapoa surgiu por iniciativa do Procurador da República Fernando Merloto, do Ministério Público Federal do Amazonas, após receber denúncia de que crianças e adolescentes yanomami estavam sem receber alimentação escolar, o que fere o princípio da universalidade previsto no PNAE.
A situação dos yanomami, entretanto, não é um caso isolado. Pelo contrário, tornou-se recorrente no contexto atual de enfrentamento à pandemia da covid-19 e diante do processo de desarticulação das políticas públicas que envolvem a implementação do PNAE. “Houve um esvaziamento total das políticas voltadas para povos indígenas e quilombolas no orçamento público federal, o que impacta diretamente o PNAE”, sinaliza Mariana Santarelli, que integra o Comitê Gestor do Observatório de Alimentação Escolar.
Em Roraima, crianças e adolescentes da etnia Ye’Kwana estão há pelo menos cinco anos sem receber merenda escolar, segundo Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanassedume Ye’Kwana. “Onde moramos não tem estrada. O acesso é caro, só de avião. A gente pede apoio da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], do Exército, mas é difícil”, conta.
“Nossas roças são bem ricas: plantamos banana, abacaxi, macaxeira, milho, laranja, jaca, graviola. Conhecemos muito bem elementos importantes da natureza. Nossa cultura ainda é forte, mas é preciso praticar, não ficar somente no caderno, escrevendo”, ressalta Júlio.
“Pensamos em fazer a roça para as escolas, para as crianças começarem a entender a forma tradicional”
Em 2017, os Ye’kwana fizeram um levantamento da sua produção agrícola para construção do Plano de Gestão Territorial e diagnosticaram que havia uma produção excedente que poderia ser comercializada para benefício da própria comunidade. Por meio da Associação Wanassedume, houve uma tentativa de formalizar produtores rurais indígenas para participarem das compras públicas. Mas ainda hoje crianças e adolescentes Ye’kwana permanecem sem o direito à alimentação escolar garantido.
Segundo Marilia Garcia Senlle, assessora do Programa Rio Negro, do Instituto Socioambiental (ISA), “a política não é estruturada para que os povos indígenas possam participar. Quando os Ye’Kwana vão conversar com os órgãos do Estado, o principal entrave é a dificuldade burocrática de acesso. Portanto, essas iniciativas têm sido um espaço de diluir o preconceito e fomentar diálogo e entendimento”, avalia.
Soluções coletivas
Inspirada na experiência da Catrapoa, no Amazonas, a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil, trouxe, em 2021, um novo ânimo para os Ye’kwana colocarem em prática o seu projeto de oferecer às escolas indígenas das suas comunidades uma alimentação produzida por eles, fresca, saudável e rica em significações culturais, sociais e afetivas.
Formada por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil, a Catrapovos Brasil pretende atuar em âmbito nacional, a partir de soluções e estratégias coletivas para viabilizar a aquisição pelo poder público da produção agrícola de comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas, caiçaras, dentre outras) para a alimentação escolar.
Apesar de recém-criada, a Comissão Estadual da Catrapovos, em Roraima, já deu alguns passos importantes para incluir os povos indígenas. “Foi feito um mapeamento da produção rural indígena e identificadas as escolas aptas a receber esta produção”, informou o Procurador da República Alisson Marugal, do Ministério Público Federal em Roraima, que lidera a Comissão da Catrapovos em seu Estado. “Estão previstos mutirões para organizar a documentação dos produtores rurais indígenas. O desejo é estimular o cultivo tradicional para que estas populações não fiquem numa situação de extrema vulnerabilidade”, detalha.
“Propomos o etnodesenvolvimento que respeita as culturas e as tradições”
Júlio Ye’kwana acredita que o recurso financeiro que virá com a comercialização da produção excedente para a alimentação escolar será útil para aumentar a renda de muitas famílias, principalmente pela ameaça do garimpo ilegal na região, que tem atraído jovens das comunidades para o trabalho. “O garimpo não é bom para trabalhar, está muito violento. Tem morte, prostituição, malária, atuação de facção criminosa…”.
O Ministério Público Federal tem estimulado outros Estados a aderirem à Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil. Roraima e Pará já criaram suas comissões e outros Estados das regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste estão se articulando. “A gente percebe a sociedade civil ávida para se inserir nesse processo. Mas, o Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) têm muita dificuldade de se abrir para essa cultura artesanal. Por isso, é fundamental que órgãos fiscais sejam acionados para integrar essas comissões. Dificilmente o poder público vai priorizar a aquisição de alimentos produzidos por comunidades tradicionais na elaboração de Chamadas Públicas, a não ser que tenha muita vocação”, comenta o Procurador da República Fernando Merloto, responsável pelas apresentações regionais.
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Para destravar o processo de operação da política pública do PNAE, o Ministério Público Federal (MPF) produziu a Nota Técnica nº 3/2020/6ªCCR/MPF, com foco principalmente na Lei nº 11.947/2009, que determina que no mínimo 30% dos recursos financeiros repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) aos Estados e municípios priorize a compra de alimentos em assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas.
A nota reconhece que “os produtores dos alimentos, os estudantes, merendeiras e, muitas vezes, os professores são parte da mesma família extensa”. Assim sendo, “dispensa de inspeção sanitária na preparação, manipulação e armazenamento de produtos de origem animal, vegetal e suas partes, a serem comercializados através de políticas de compras institucionais para consumo familiar, mais especificamente em relação à aquisição de alimentação escolar por programas de governo, sejam federais, estaduais e/ou municipais, como o Programa de Regionalização da Alimentação Escolar – PREME e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE”.