“O que é uma palmada?”, pergunta a mãe, Andressa Reis, para a filha Maria, de 5 anos. Instantaneamente, a menina bate palmas com as mãos e sorri. Outra pergunta é feita para o filho Caetano, 3, “Você sabe o que é castigo?”. O menino faz bico de dúvida sem saber do que a palavra trata. Na legenda do vídeo publicado nas redes sociais, a criadora de conteúdo desabafa “minha criança interior sorri quando ouve a corrente do ciclo sendo quebrada”. A publicação alcançou mais de 700 mil curtidas e acumulou muitos comentários de adultos relembrando o quanto sofreram com castigos quando criança.
“Se tivéssemos sido criados mais pelo afeto dos nossos cuidadores do que pelos seus traumas, provavelmente não precisaríamos nos curar de tantas feridas para não ferir.” – Andressa Reis
Mesmo diante da obviedade de que violência não combina com educação, muita gente defende o castigo como uma opção para impor limites aos filhos. Se por um lado, a calma e o acolhimento são as principais estratégias para mudar a rota da criação violenta, por outro, a realidade ainda assusta. De acordo com a ONU, quase metade de todas as crianças no mundo sofre algum tipo de violência regularmente. No Brasil, mais de 80% dessas práticas são cometidas dentro de casa por familiares ou pessoas próximas.
O assunto diverge opiniões, mas especialistas explicam que punições que agridem fisicamente ou psicologicamente as crianças não ajudam em nada na educação. A educadora parental Maya Eigenmann, autora do livro “A raiva não educa. A calma educa: Por uma geração de adultos e crianças com mais saúde emocional”, explicou, em entrevista ao Lunetas, que as punições dadas às crianças confirmam o poder de uma pessoa mais forte sobre outra mais fraca. Para ela, isso configura a estrutura do abuso de poder. “A criança não precisa de castigo para aprender. Muito pelo contrário, quanto mais acolhida ela se sentir, melhor será o aprendizado”, explica. O acolhimento, nesse sentido, é necessário para conectar cuidador com a criança, deixando-a confortável para compartilhar o que sente.
Diálogo é sempre a melhor opção
“Tenho lembranças de sentir medo dos meus pais e basicamente é isso que a criação punitiva gera na criança”, conta Camila D’Macêdo, pediatra e mãe de Júlia, 6, e Rafael, 3. Em casa, a estratégia para orientar os filhos é baseada no diálogo e no respeito. “Sempre me abaixo e olho eles nos olhos, ouço o que têm a dizer sobre o que estão sentindo e ofereço acolhimento”, conta.
Estudos sobre a educação positiva ajudaram a mãe a compreender que essa era a melhor estratégia para criar vínculos de confiança com os filhos, além de exercitar a inteligência emocional. “As crianças não possuem maturidade suficiente para conter sentimentos como raiva, frustração e angústia. Elas sentem isso como explosões e cabe a nós, adultos, ter empatia e ensinar”, explica.
O exemplo dentro de casa é fundamental para a construção de um comportamento sem violência. Eigenmann defende que os adultos devem saber gerenciar seus próprios sentimentos priorizando a calma para educar. Quando uma criança fica violenta ou faz “birra” claramente está precisando de ajuda. “Todo comportamento desafiador é uma comunicação e o papel do adulto é entender que necessidade está por trás desse comportamento”, argumenta a educadora parental.
Ao receber um castigo, a criança que está aprendendo a viver e a se comportar em sociedade se sente desamparada. É nessa hora que ela duvida do amor de seus cuidadores, pois o castigo a leva a questionar se é boa o bastante para ser amada, como explica Eigenmann. “Quando eu dou um castigo ao invés de me conectar com a criança, ela entende que só ganha o amor dos pais quando cumpre as expectativas, sendo que esse amor precisa vir gratuitamente, e não como uma moeda de troca”. Para a educadora parental, se essa dinâmica estivesse presente em um relacionamento entre adultos, seria considerado um relacionamento abusivo.
De onde vem o castigo?
Registros históricos revelam que o castigo é uma prática mais antiga do que as palmatórias e os puxões de orelha da época dos avós. No Brasil, a violência foi naturalizada como um instrumento de educação desde a invasão portuguesa, como ressalta o artigo “Um monstro esconde-se em casa. A violência doméstica contra crianças e adolescentes”, da advogada Danielli Freitas. Segundo o texto, há relatos que descrevem que “os índios do Brasil nunca batem nos filhos por nenhuma coisa”.
A escravidão também marcou o castigo físico como forma de punição e as primeiras escolas jesuítas tinham o castigo em sala de aula como método de corrigir as crianças, segundo o artigo, com o uso da palmatória e de surras no tronco. A herança da educação violenta é tão enraizada que o Reino Unido, por exemplo, foi o último país da Europa a abolir os castigos físicos em suas escolas, somente em 1986.
Essa cultura histórica normaliza punições contra crianças até os dias de hoje. Para Freitas, a violência institucionalizada dentro dos próprios lares atinge a sociedade e afeta a segurança pública. Segundo a advogada, a repressão e o silenciamento são os principais efeitos da normalização da violência como “forma de regular as relações sociais e superar conflitos”.
A repetição dos papéis do castigado e do castigador é uma tendência que se estende na sociedade, como argumenta Freitas. “Crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos se tornam indefesas, inseguras e com grandes possibilidades de tornarem-se agressoras de seus futuros filhos”.
Quebrar um ciclo tão antigo e enraizado, que afeta diretamente os cuidadores de uma criança, é uma missão geracional. “Quando nos tornamos pais, podemos reproduzir o modelo de criação que tivemos ou tentar fazer diferente”, sugere D’Macêdo.
“A violência que ocorre dentro de casa consiste em um fenômeno degradante, barbarizante, que anula o ser criança e adolescente, reduzindo-os a simples objetos de maus-tratos.” – Danielli Freitas, advogada
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Lei da palmada
Conhecida como Lei da palmada, a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente, feita em 2014, prevê que as crianças tenham direito de serem educadas e cuidadas “sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante”. O texto determina que os responsáveis, por usarem meios violentos na correção dos menores de idade, sejam advertidos e encaminhados a programas oficiais de proteção à família, e que as crianças vítimas de agressão física ou psicológica recebam tratamento especializado. A legislação é conhecida também como “Lei menino Bernardo”, cujo nome remete ao caso de Bernardo Boldrini, assassinado pelo pai e pela madrasta aos 11 anos, em Três Passos (RS).