Brasil é o 5° país no mundo em número de uniões precoces, privando mais de 2,2 milhões de crianças da sua infância
Conversamos com Creuziane Barros, da Plan International Brasil, para entender o contexto cultural, social e econômico em que o casamento infantil acontece, e quais são caminhos e soluções possíveis para esta violação de direitos.
Escolas fechadas, crise econômica, diminuição dos postos de trabalho, aumento dos casos de violência doméstica. Ainda que cerca de 25 milhões de casamentos infantis tenham sido evitados na última década, esses fatores contribuíram para que a pandemia da covid-19 acentuasse o fenômeno do matrimônio na infância. O estudo “Covid-19: A threat to progress against child marriage”, divulgado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), estima que serão mais de 10 milhões de meninas levadas a uma vida a dois precoce, nos próximos 10 anos. O número se soma aos 100 milhões já previstos antes da pandemia e reverte uma queda histórica no índice.
Casamento infantil, prematuro ou forçado é o termo usado para se referir a uniões realizadas antes dos 18 anos. No Brasil, desde a aprovação da Lei 13.811, em 2019, essa é uma situação proibida. Menores de 16 anos, nem com autorização dos pais, têm direito ao casamento civil e religioso. Na prática, porém, fatores culturais, desigualdades de gênero, violências intrafamiliares e vulnerabilidade socioeconômica são alguns dos que ainda levam meninas – e também meninos – a casamentos antes da adultez.
O país é o 5º no mundo em números absolutos de casamentos infantis, com mais de 2,2 milhões de crianças nessa condição, de acordo com o atlas dos casamentos da organização Girls Not Brides (com dados atualizados do Unicef). O ranking mostra que 26% das crianças brasileiras se casam antes dos 18 anos, enquanto 6% antes dos 15. Outro estudo, da Plan International, mostra que, em 2016, havia 109 mil uniões com meninas brasileiras e 28 mil com meninos. Por ano, dos 554 mil casamentos de meninas de até 17 anos, 65 mil são entre pessoas de 10 a 14 anos.
Em todo o mundo, 12 milhões de meninas são afetadas – 23 a cada minuto. Com a pandemia, especialistas acreditam que será difícil cumprir a meta de acabar com essa prática ilegal até 2030, como definido nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da ONU.
Lunetas – Como o casamento impacta a infância?
Creuziane Barros – O casamento infantil é entendido como uma violação de direitos humanos, de criança e adolescente, e afeta sobretudo as meninas. Quando num casamento infantil, elas são isoladas da convivência familiar e comunitária e ficam numa relação de menos poder, em que o uso de preservativo e planejamento familiar são questões inegociáveis, por exemplo. Isso vai impactar no exercício da liberdade delas e na maneira como vão acessar os direitos que muitas vezes sequer conhecem. As meninas, por exemplo, ou casam e engravidam ou engravidam e casam; a gravidez na adolescência é causa e às vezes consequência. E aí abandonam a escola. A gente precisa entender que essa menina é um ser humano em desenvolvimento, não está nem física nem emocionalmente pronta para se tornar esposa e mãe. Um dos inúmeros fatores que levam meninas a se casarem é a violência em casa. Quando elas se casam, contudo, a violência é maior: elas sofrem violência por parte do marido, os trabalhos domésticos aumentam, a responsabilidade pelo cuidado também. Então, essas meninas estão mais propensas a viver na pobreza e têm mais dificuldade de acessar o mercado de trabalho na vida adulta. O ciclo de pobreza e violência tende a aumentar.
Quais são as principais condições responsáveis por o Brasil ser o quinto país do mundo com mais casos de casamento infantil?
CB – O casamento infantil acontece independente de classe, raça, etnia, tanto em contexto urbano quanto rural, mas a maior incidência é nas áreas onde há maiores dificuldades socioeconômicas, com famílias em situação de vulnerabilidade social. Essa menina vive em uma família em situação de extrema pobreza, sendo o casamento visto como uma saída para a questão econômica tanto da menina quanto da própria família. Há também a questão cultural, no sentido de que as pessoas naturalizam muito o casamento infantil, quando uma menina perde a virgindade, quando ela engravida. Principalmente famílias tradicionais, ligadas também à religião, veem uma oportunidade de essa menina não ficar mal falada, é “melhor” que ela se case.
Em que aspectos a pandemia influenciou no aumento desse índice? Como ficou a atuação de programas contra a situação neste período?
CB – A pandemia afetou bastante, influenciando nas questões de violência e no exercício da sexualidade. Principalmente no que diz respeito às meninas, porque elas ficaram mais tempo em casa. Hoje, existem programas que atuam nas causas e consequências, mas não voltado diretamente ao casamento infantil. Com a escola fechada, por exemplo, que é um espaço onde a criança tem acesso a informações e pessoas de confiança, perdeu-se o espaço de fazer uma denúncia. O mesmo ocorreu nos espaços de saúde.
Por que o casamento infantil ainda existe em nosso país, embora seja uma prática ilegal? Que esforços têm sido feitos para coibir e reverter a situação?
CB – A lei de 2019 e os ODS foram grandes esforços. Agora o que a gente precisa ainda melhorar são as ações, trabalhar em mobilizações, fazer campanhas, pesquisas, cruzar melhor os dados com outras variáveis, como educação, saúde, violência. Colocar o tema em evidência tanto dentro das escolas, quanto das unidades básicas de saúde. A gente ainda precisa atuar em várias frentes, inclusive com políticas públicas adequadas. Sociedade civil e poder público precisam agir de forma conjunta, ter uma agenda ampla em comum de disseminação do tema. A lei é importante, a gente precisa cumprir o que diz o ODS 5, na meta 5.3, que trata sobre casamentos infantis, mas também fazer isso reverberar na prática. Trazer o tema para as escolas, como mostra a nossa pesquisa “Tirando o véu”, e trabalhar a capacitação dos profissionais: professores, conselheiros tutelares, conselheiros de direitos.
A legislação brasileira protege essas crianças que se casam precocemente? Como elas são amparadas pela lei?
CB – A gente tem a Convenção sobre os Direitos da Criança, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o código civil e a lei sobre casamento infantil. Essa lei ainda não é a ideal, mas já é um grande avanço por proibir o casamento antes dos 16 anos. O código civil permitia o casamento por gravidez ou por estupro, e o violador poderia se livrar desse processo, dessa culpa. Só que a gente sabe que a lei proíbe o casamento formal e o número de casamentos informais é gigante, com dados subnotificados. Por isso, é necessário que as leis fechem essas brechas. É preciso ter intervenção nas políticas públicas e mobilização social, para erradicar questões culturais que sustentam esse fenômeno, muito ligado a questões de gênero.
Apesar de ser mais comum casamentos arranjados para as meninas, existem também meninos afetados? O que isso nos conta sobre sociedades patriarcais e desigualdades entre gêneros?
CB – A problemática do casamento infantil acontece muito por conta dessa desigualdade de poder, de gênero. Nossa sociedade valoriza mais os meninos, incentiva-os a estudar, a ser líderes, a brincar na rua. Então, encontramos casos de casamento infantil com meninos, mas são bem menos. Já o papel das meninas é definido a partir do cuidado com a casa, com o esposo e com os filhos. A sexualidade delas é restrita em interações e o sexo é visto como algo vergonhoso. Quando as meninas querem se sentir um pouco mais livres, elas veem no casamento uma oportunidade de ter relações sexuais. Outra questão é que as meninas sofrem mais abusos dentro de casa, isso também as leva a encontrar no casamento uma oportunidade de sair de uma situação de violência. Então, essas normas sociais de gênero, que não são abordadas com tanta abertura na escola, criam um distanciamento entre meninos e meninas.
Há um “perfil” recorrente para descrever quem é esse “noivo”?
CB – Esse noivo é um homem mais velho, com uma variação de idade de cinco a 14 anos, que geralmente tem um certo poder aquisitivo, uma condição financeira melhor. São homens que já passaram por uma experiência de casamento e têm mais instruções, o que coloca essas meninas em posição de desigualdade e sujeitas a violações de gênero.
Qual é a importância das meninas serem protagonistas de suas histórias e poderem assumir suas próprias escolhas? Como incentivar essa transformação?
CB – As meninas, conhecendo seus direitos, saberão que são capazes de chegar a qualquer espaço e alcançarem qualquer nível. Por isso, a educação é fundamental. Com esse conhecimento e trabalhando a autoestima, já que muitas vezes é preciso fazer um trabalho de dentro para fora, podem se empoderar e se munir de informações. Esse é o caminho.
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