Papo sobre bullying: Vanessa Bencz conta sua experiência

Conversamos com a jornalista Vanessa Bencz, que sofreu bullying na infância e hoje dá palestras sobre empatia e cultura de paz nas escolas

Mayara Penina Publicado em 27.09.2016
Foto em preto e branco mostra criança sentada sozinha em uma gangorra.

Resumo

Vanessa Bencz escreveu o livro “A menina distraída”, que conta a história de uma menina vítima de bullying na escola que é salva por uma super-heroína. Além disso, dá palestras sobre empatia e cultura de paz nas escolas.

Burra, lixo, desperdício de oxigênio, avoada, cabeça de vento. Esses foram alguns dos apelidos que a jornalista Vanessa Bencz teve na escola. Para a sorte dela e de todos que hoje podem ler e ouvir suas histórias, ela não acreditou em nenhum deles. Além do bullying constante que sofria, ela descobriu aos 15 anos que tem transtorno de déficit de atenção (TDAH), e por isso teve uma trajetória escolar difícil.

O que diz a lei? Sancionada em 2015, a Lei nº 13.185  determina que é considerada bullying toda intimidação sistemática, envolvendo violência física ou psicológica, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima.  Além disso, a lei também determina que é dever da escola assegurar medidas de conscientização, prevenção e combate a prática.

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divulgação

Vanessa também atua como produtora cultural focada no financiamento de projetos criativos, independentes e transformadores.

Vanessa superou essa fase de sua vida e escreveu o livro “A menina distraída”, que conta a história de uma menina vítima de bullying na escola que é salva por uma super-heroína. Hoje, tornou-se uma ativista social em busca de paz nas escolas e desde 2012 realiza palestras sobre empatia de norte a sul do país.

 Leia a entrevista com Vanessa Bencz

  • Lunetas: O bullying é um problema sério e real, mas sua definição legal é recente e só ganhou status de lei no ano passado. Até então, era comum que queixas das vítimas do problema fossem taxadas de exagero ou o famoso “mimimi”. Como você viveu isso?
  • Vanessa Bencz: Quando eu era criança, realmente não existia o nome bullying e muito menos a consciência de que isso era errado. Aos 10 anos, após ser humilhada na frente da turma por uma professora, eu me tornei muito tímida e insegura. Eu acreditava que de fato merecia ser humilhada por não ser boa o suficiente. Me transformei em uma pessoa medrosa que se escondia em roupas comuns, em hábitos comuns, em mentiras. Quando finalmente tive contato com ajuda psicológica – isso aos 14 anos – tive muito trabalho para descobrir quem eu era. Por baixo de medo, de raiva, de insegurança e de tristeza, descobri que eu era uma garota forte, apaixonada por literatura e curiosa por pessoas. Depois disso, comecei a gritar a minha dor para que outras pessoas se identificassem e entendessem que não mereciam passar por isso.
  • Lunetas: Um dos conceitos que você defende é que “O que acontece na infância não fica na infância”. Pode falar um pouco sobre isso?
  • Vanessa Bencz: Gosto de usar a seguinte analogia para descrever as pessoas: somos quebra-cabeças. Juntamos as peças de quem somos desde o momento em que fomos concebidos – ou até antes, considerando que nosso histórico familiar também interfere na nossa personalidade. A infância que tivemos é a base desse quebra-cabeça que é a nossa trajetória. Tudo o que aconteceu lá atrás, quando éramos criança, reflete em nossa história durante a vida. A criança que foi amada, acolhida e protegida tem grandes chances de ser um adulto psicologicamente e socialmente saudável. Já a pessoa que teve uma infância problemática com abandono, violência e negligência tenderá a lutar contra – ou até repetir – essas memórias se não tiver acompanhamento profissional.
  • Lunetas: No contexto da família, é comum que pais e mães encarnem o discurso do “dominador”, incentivando os filhos a revidar os assédios da mesma forma recebida. Como educar os pais, cuidadores e responsáveis para evitar isso?
  • Vanessa Bencz: É uma das partes mais difíceis. A cultura do “olho por olho, dente por dente” é uma forma rápida de satisfazer a necessidade do retorno por justiça. Considero este um falso valor maquiado de justiça e que na verdade se trata de vingança. Conscientizar pais, mães, professores e cuidadores é questão de primeira necessidade e, ao meu ver, precisa surgir de forma efetiva e responsável dentro das escolas. Escola não educa apenas a criança: educa sua família também.
  • Lunetas: Da mesma forma, o bullying ainda está muito ligado ao machismo, já que muitos meninos são educados em uma cultura de falsa superioridade sobre as meninas. Você acha que isso tem mudado?
  • Vanessa Bencz: Constato uma mudança sensível nesse sentido. Vejo muitas meninas questionando o discurso da superioridade masculina. Observo também meninos convivendo sem o carrapato do machismo. Isso me anima, mas ainda não é o suficiente. Estamos em 2016 depois de Cristo, temos um oceano de informações à nossa disposição, e ainda assim somos uma sociedade que tem dificuldades em olhar para a pessoa ao lado com equidade.
  • Lunetas: Que situações ajudam pais, mães, educadores e responsáveis a detectar o bullying?
  • Vanessa Bencz: É preciso treinar o olhar observador de detetive. Onde tem fumaça tem fogo; então, uma criança ou adolescente que chega da escola triste, desmotivado ou com atitudes diferentes das que ele costuma ter, é preciso conversar. Ele pode estar sendo vítima; mas conseguir essa confissão por parte o jovem pode ser uma tarefa difícil. Existe vergonha, raiva, medo da exposição. Já o agressor é mais complicado de diagnosticar em casa, porque ele – ou ela – é seguro e confiante. É preciso ficar atento nos comentários que este jovem faz durante o almoço, durante uma conversa, durante um programa de televisão. Pequenas pistas fazem a diferença. Os pais devem ficar atentos também para um filho ou filha que está fazendo o papel de expectador em uma cena de agressão. É preciso orientar para que esse expectador fale com professores e argumente para que a escola interfira.
  • Lunetas: Em suas palestras, você defende a empatia como a “ferramenta social mais poderosa do mundo”. De que tipo de poder estamos falando? Como o empoderamento infantil influencia na sua vida em sociedade?
  • Vanessa Bencz: Uso a expressão “poderosa” no sentido de poder transformador. Eu vivi uma geração de crianças que eram vistas como massinhas de modelar, sem direito ao questionamento e à escolha. Eu fui uma criança curiosa que se tornou tímida por ter sido exposta e humilhada por professores sem paciência. Meus professores exigiam que nós, estudantes, nos encaixássemos em padrões de comportamento estereotipados. Não sei pelos meus colegas, mas eu não conseguia sentir identificação com isso. Eu tinha dificuldades de sentir simpatia – e muito menos carinho – por professores que pareceram nunca ter sido crianças e nem terem sentido dúvidas e insegurança. Por consequência, eu e muitas pessoas repetimos esse comportamento egoísta com as pessoas ao redor. A minha teoria e a minha briga é que a empatia é um músculo que todos nós temos. É um software instalado na cabeça de todo ser humano; mas muitas vezes não é exercitado, não é aplicado. E a empatia precisa ser colocada em prática na sala de aula, a partir dos professores. Aí é que começa o fortalecimento desse valor que trata-se, basicamente, de olhar a pessoa ao seu lado,  entendê-la e respeitá-la como diferente.
  • Lunetas: De acordo com a sua experiência, o que leva uma criança a praticar bullying?
  • Vanessa Bencz: Cada pessoa tem seu machucado. Muitas vezes não se trata disso: às vezes, uma criança ou um adolescente está apenas reproduzindo na escola uma atitude grosseira e destrutiva que viu em casa e não tem referência de bons valores como respeito, tolerância, amizade e empatia. Mas, em geral, uma pessoa pratica bullying porque ela foi vítima no passado. Ou então, pratica porque sabe que é uma vítima em potencial. Fico feliz em constatar o quanto minhas palestras têm sido eficazes nesse diagnóstico: é muito comum que pais, mães e professores me procurarem para relatar um feedback positivo após os bate-papos. Por exemplo: uma maneira bem prática de ilustrar a falta de empatia para estudantes é narrar um cenário de bullying em que o agressor humilha a vítima e as pessoas ao redor dão risadas. Essas risadas, em geral, acabam sendo piores do que a própria agressão, pois enfraquecem a vítima e dão o aval para que o agressor continue com a humilhação. Muitos estudantes vêm me contar que tem pensado duas vezes antes de rir de uma brincadeira – pois não querem de forma nenhuma serem coniventes com a agressão. Isso instiga o potencial empático em cada um e os estudantes refletem esse comportamento em casa. Então, fico muito feliz quando familiares e funcionários de escolas me contam que constatam – e aprovam – essa transformação entre os estudantes.
  • Lunetas: Nas crianças menores, é mais difícil detectar o bullying? Que estratégias de aproximação é possível adotar nesse caso?
  • Vanessa Bencz: De acordo com a minha experiência, percebo que detectar o bullying entre crianças é menos difícil. Durante as palestras, elas próprias têm a atitude de apontar para o agressor e dizer: “Ele me chamou de gorda! Ele me chamou de baixinha! Ele disse que sou feia!” Então, basta tocar no assunto para que elas sejam colaborativas. Já com adolescentes a coisa fica abstrata e muito mais delicada – envolve abuso sexual, vergonha, humilhação e tristeza silenciosa. Não basta tocar no assunto: é preciso observar muito de perto.
  • Lunetas: É comum que as discussão enveredem sempre pelo lado de quem sofre (por questões compreensíveis, claro). Como acolher e cuidar também da criança que pratica?
  • Vanessa Bencz:  Costumo dizer que o agressor é a primeira vítima. E, como toda e qualquer vítima, o agressor precisa de acolhimento também. Somos uma sociedade obsessiva por punição, por julgamento, por finais supostamente felizes em que o mocinho será recompensado no final e o vilão será punido. Bom, sabemos que isso não tem nada a ver com a realidade. É preciso entender os motivos do agressor e curar sua ferida antiga.
  • Lunetas: Como você acha que o tema evoluiu nas conversas no ambiente educativo e familiar?
  • Vanessa Bencz: O tema evoluiu porque estava difícil de explicar o alto número de suicídio entre jovens de 10 a 14 anos e toda a violência crescente. Claro que a quantidade de informações a nossa disposição também contribuiu para o debate: pesquisas feitas em universidades do exterior ajudaram a batizar essa violência de bullying e, quando uma coisa ganha nome, fica mais fácil de enxergá-la. Mas a minha teoria é que, no Brasil, começamos a falar sobre isso porque a quantidade de estudantes machucados começou a ficar inexplicável.
  • Lunetas: Como a sua trajetória pessoal fez você enveredar por esse lado?
  • Vanessa Bencz: Eu sou uma pessoa introvertida e observadora. Desde pequena ficava ouvindo a conversa dos adultos e reparando no tom em que falavam um com o outro. Reparava em como falavam para brincar, para ironizar, para esbravejar. E eu adorava o jeito inocente e bondoso que minha mãe usava para conversar com minhas tias – e usa até hoje. “Roubei” essa forma de falar para mim e percebi que se tornou uma peça importante no meu quebra-cabeça pessoal. Eu não escolhi esse jeito da minha mãe ao acaso; isso se encaixou em mim porque comecei a agir de uma forma a ajudar os outros a não passarem pelo que passei lá atrás. Acho que o jeito materno de falar me deu um tom de irmã mais velha às crianças e adolescentes. Foi algo natural que, sinceramente, não sei como explicar.
  • Lunetas: Falando especificamente do livro “A menina distraída”, como foi o seu contato com outras pessoas/leitores que passaram por situações parecidas?
  • Vanessa Bencz: Colho depoimentos sobre violência há quatro anos. Cada história me machuca como se fosse um soco. Não consigo me acostumar a ouvir casos de bullying, de violência e de irresponsabilidade. Sempre fui sensível a essas narrativas e, no começo, elas me faziam mal. Eu me sentia desesperada e passava noites sem conseguir dormir. Admito que ainda hoje me sinto machucada ao ouvir esses relatos, mas construí uma atitude motivadora para ajudar as pessoas que confiam essas histórias para mim.
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