‘Brincreto’: quando entulho e lixo urbano viram brinquedos

Projeto reúne crianças em um terreno em Paraisópolis para brincar duas vezes por semana

Renata Meirelles Publicado em 04.06.2018
Um menino de óculos com armação azul remexe a terra com uma enxada pequena

Resumo

Em sua primeira coluna, a pesquisadora Renata Meirelles conta a experiência do Brincreto, projeto de três jovens que se encontram com crianças para brincar sem planejamentos, sem ser aula de nada. Brincar por brincar! "De alguma forma, ali a revolução se faz".

Com uma pá de jardim, um menino de sete anos me convidava a furar os pneus do enorme trator estacionado perto do barranco. A paisagem havia mudado drasticamente com a chegada da enorme máquina. Dias antes o menino escavava a terra seca, dura e resistente, na retirada dos entulhos encravados no solo. As batidas eram firmes, decididas, e o morro cedia liberando pedaços de concreto. O suor lhe escorria nos óculos, enquanto batia a pá com persistência ou arranhava a unha nessa labuta arqueológica, de separar a terra do concreto. A vinda do trator destruiu aquele pedaço de chão erguido e desmobilizou seu trabalho; sua busca de ir no dentro do dentro.

O espaço é um estacionamento provisório em um vasto terreno no coração de Paraisópolis, zona sul da cidade de São Paulo. Os vestígios esquecidos no local, apontam que antes havia ali uma casa de luxo. Sobraram algumas paredes tomadas de mato, escombros de banheiros cobertos de lama, destroços da piscina, um portão de madeira maciça revestido por eras e, poucas árvores frutíferas que não foram derrubadas. Para fora desses muros, o metro quadrado é habitado por uma altíssima densidade demográfica e uma intensa ocupação territorial. Pode-se considerar que um pedaço de chão desnudo, com terra manuseável, é algo distante para as crianças do bairro. Desorganizar um chão desses é, portanto, desorganizar lembranças perdidas há gerações. Segundo a autora Jay Griffths, atualmente as crianças estão sofrendo do mais novo estado de abandono, o abandono da terra mãe.

Abandono sensorial, onde o corpo da criança já não mais se relaciona com o corpo da terra, em diálogo com o que há de interno em ambos.

Iguais ao menino, mais quinze crianças entre seis e 13 anos, se reúnem nesse terreno duas vezes por semana, sob coordenação de quatro jovens, Beatriz Olival, Carla Otta, Letícia Borges e Sofia Olival que criaram o Coletivo Laboratório Urbano de Brincadeiras (LUB) e acreditam no brincar como ação estruturante da infância. Deram o nome de Brincreto para essa iniciativa em Paraisópolis, e passaram a se encontrar para brincar sem planejamentos, sem ser aula de nada. Brincar por brincar! De alguma forma, ali a revolução se faz.

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Entulhos eram geniais para brincar de pique esconde e chutar a lata.

Nas primeiras semanas de Brincreto o desafio das crianças é conviver com o nada  que elas têm ao seu dispor. O encontro com o tempo livre, chega a ser uma provocação, um desconforto. Os mais velhos veem com corpos desacordados para o agir. Cabeça e membros pesados, quase ancorados na terra. Sentam, olham para longe na busca de pescar uma intensão. Já os pequenos (entre quatro e nove anos), amanhecem mais despertos e criam o brincar em poucos minutos. Vê-se claramente que a autonomia e acesso aos próprios desejos, têm lhes sido roubadas ano a ano, muito pelo excesso de direcionamentos, informações e objetos que chegam por todos os lados. Um receber de fora ensurdecendo um perceber por dentro.

A cada encontro as crianças, espontaneamente, retomam vivências anteriores, puxando o fio do já vivido, para então, desenrolar um pouco mais o novelo do inusitado, do inesperado e ir galgando gestos mais autônomos e refinados.

No Brincreto o já dasabituado brincar livre, é re-acordado com o esvaziamento de propostas diretivas ou qualquer objeto que possa se parecer com um brinquedo. Ali é preciso caçar o que fazer, literalmente.

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Cada metro quadrado é ocupado por todo tipo de construções, muros, asfalto, carros, gente, barulho.

No final do verão eram as árvores carregadas de abacates e jacas que transformavam as manhãs em verdadeiras caçadas às frutas. Subiam em caixas e estruturas de ferro, escalavam os troncos, jogavam pedras na conquista das “frutas-troféus”. Um dos meninos achou um pedaço de pau comprido, sentou-se na balança e pediu para que um outro o balançasse bem forte. A balança alcançava altura e ele, segurando a vara em uma mão e a balança na outra, tentava manter o equilíbrio para atingir o abacate que estava a poucos centímetros do seu alcance.

A conquista das frutas era o tudo. Comer comiam algumas ali mesmo, outras levavam para casa nas blusas puxadas para frente criando uma sacola de abacates. Mas o verdadeiro alimento contra a desnutrição ou déficit de natureza cotidiana para essas crianças, era viver em estágio de caçador. Algo tão interno que o impulso persegue o instinto e vai. Quando há adultos por perto cúmplices dessas necessidades, o corpo da criança se mobiliza ao desafio e vive a experiência e a atração pelo risco. E a fruta que parecia ser o objetivo da conquista, perde espaço para a vivência do medo superado e da estratégia calculada. Aí estava o que parecia nutrir de fato essas crianças.

Essa iniciativa tem como referência um movimento internacional por mais riscos para as crianças, que ganha corpo com os chamados Adventures Playgrounds. Nascido na década de 40 na Dinamarca os Aventures Playgrounds são espaços que disponibilizam todo tipo de materiais de grande porte, tirados do lixo urbano, onde as crianças são autoridades máximas no seu fazer. Espaços onde meninos e meninas têm a sua disposição um arsenal de ferramentas para montar e desmontar o mundo a sua própria maneira. Brincam com fogo, serrotes, martelos, estiletes, cordas, água, lama, tábuas, arame, de forma livre. Adultos ali dão suporte e incentivo às iniciativas infantis. O resto é com elas.

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A balança alcançava altura e ele, segurando a vara em uma mão e a balança na outra, tentava manter o equilíbrio para atingir o abacate que estava a poucos centímetros do seu alcance

 

O arquiteto e paisagista dinamarquês Carl Theodor Sorensen, foi o mentor dessa ideia. Em 1943 percebeu que crianças brincavam de forma muito mais livre, ousada e divertida no canteiro de obras de seus playgrounds, do que nos equipamentos arduamente planejados para essa função. Foi à partir dessa observação que criou em Emdrup, Dinamarca o primeiro Adventure Playground. Seu objetivo era elaborar espaços onde crianças urbanas tivessem um ambiente preenchido de objetos em desuso, para que pudessem criar, moldar, sonhar e imaginar a sua própria realidade. Uma oportunidade que ele via apenas em crianças de zona rural.

A ideia se espalhou pela Europa e Estado Unidos e hoje, há milhares de crianças ressignificando o lixo da nossa sociedade, nesses pequenos oásis de liberdade.

Chega a ser irônico vivermos em um tempo onde é preciso criar grades que cerquem um ambiente com entulhos e falta de estrutura, para que nossas crianças possam experimentar em plenitude sua liberdade de brincar. O fato é que até os melhores playgrounds perdem força no imaginário infantil, se comparados a um grande lixão de ricas possibilidades.

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O espaço é um estacionamento provisório em um vasto terreno no coração de Paraisópolis, zona sul da cidade de São Paulo.

Ironias no brincar infantil é o que não falta na história da nossa sociedade. O casal de pesquisadores americanos Iona e Peter Opie, descrevem como os bombardeamentos de Londres na segunda guerra mundial, foram uma benção para as gerações de crianças que se seguiu. Nos escombros e com a falta de supervisão de adultos, crianças acendiam fogo para assar batatas, encontravam tesouros misteriosos, e os entulhos eram geniais para brincar de pique esconde e chutar a lata. O casal passou a defender parques urbanos menos cuidados, afinal, a natureza da criança é atraída por lugares mais selvagens como moitas de grama alta, beiras de água e barrancos.

Voltando ao menino de Paraisópolis, esse local onde cada metro quadrado é ocupado por todo tipo de construções, muros, asfalto, carros, gente, barulho… como aquele trator ousou entrar em seu ambiente selvagem, para impedi-lo de estar com o que mais sente falta: esse tantinho de chão aberto onde a terra, que há muito o abandonou pode, finalmente, ser manuseada?

Por tudo isso, eu e aquele menino tentamos, tentamos, mas a pá não furava os duros pneus de borracha do trator. Desistimos.

 

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