Limpar, arrumar, cozinhar: brincar de casinha é reinventar a vida

Os rótulos de "brinquedos para meninas" e "brinquedos para meninos” fazem parte das construções de estereótipos de gênero e têm sido cada vez mais debatidos

Camilla Hoshino Publicado em 09.01.2018
Mãos de uma criança brincando com um fogãozinho. Em cima de uma das bocas do fogão, existe uma panela com macarrão e água dentro.

Resumo

Meninos e meninas brincam de casinha no mundo inteiro. O brincar é uma oportunidade de questionar hierarquias e experimentar. O profissional de educação infantil tem o papel de garantir que isso aconteça de forma livre, sem cobranças relacionadas a papéis de gênero.

Lençóis viram paredes, folhas de bananeira protegem da chuva e qualquer punhado de terra pode se transformar em alimento. Tudo é possível quando se trata da imaginação das crianças. Nessa paisagem encantadora da infância, o cheiro da comida recém-cozida pode ser sentido por todo o ambiente.

Todos ficam em movimento e experimentam papéis, pois os sentidos dados às ações são inesgotáveis. Dos tijolos que constroem a fantasia, nos mínimos detalhes, surgem casas inteiras, prontas para receber qualquer visita. Entrem sem pedir licença e fiquem à vontade. Brincar de casinha é um convite universal.

Casinhas no Vale do Jequitinhonha (MG), documentadas por Renata Meirelles e David Reeks, no projeto Território do Brincar, entre 2012 e 2013.


Brincar é muito mais do que uma forma de passar o tempo, mas um verbo que faz parte da gramática cultural da infância. Revela-se como um meio de expressão, uma ponte para o diálogo com outras pessoas, uma possibilidade de se conhecer, se desenvolver e dar asas à imaginação.

Afinal, “brincar é uma linguagem humana”, como resume a assessora pedagógica da área de educação e Cultura da Infância do Alana, Raquel Franzim

Do vocabulário que nasce nos mais diversos tipo de interações do brincar, um substantivo se destaca: a casa. Ou melhor, casinha, uma brincadeira bastante popular e tradicional, de norte a sul do país, entre moradores do campo e da cidade, de várias origens culturais. Como explica Franzim, o simbolismo da casa está atrelado às tarefas de edificar, de construir, de se abrigar e habitar.

“A construção da casa é também um espaço de espalhamento de si. Casas são lugares de acolhida de si próprio e do outro, territórios de vínculos e cuidado. É lugar de intimidade”

Brincadeira tem gênero?

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Território do Brincar

Casas são lugares de acolhida de si próprio e do outro, territórios de vínculos e cuidado. É lugar de intimidade.”

Os rótulos de “brinquedos para meninas” e “brinquedos para meninos” fazem parte das construções de estereótipos de gênero e têm sido cada vez mais debatidos e questionados. Apesar desses papeis serem reforçados pela indústria de brinquedos, de acordo com Raquel Fanzim, as brincadeiras das crianças são possibilidades de reinvenção de sentido.

“Não podemos enxergar o brincar das crianças como uma reprodução literal da vida em sociedade”

Para ela, ao escolher as próprias brincadeiras, a criança tem a oportunidade de experimentar diversas formas de estar no mundo, viver papéis, sentimentos, gestos e movimentos.

“Ao escolher a brincadeira que faz mais sentido para ela, a criança adentra o campo do imaginário. Por isso, os limites e contornos sociais se misturam, se diluem, se alargam ou até mesmo são problematizados”, explica a pesquisadora.

Ao adentrar o universo das brincadeiras de meninos e meninas numa escola municipal de educação infantil, a pedagoga e doutora pela Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), Daniela Finco, observou como crianças escolhem espontaneamente todos os tipos de brinquedo sem constrangimento.

“Meninos participavam de brincadeiras como cuidar da casa, cozinhar, passar roupa, cuidar dos filhos, que são vistas como funções das mulheres; assim as crianças trocavam e experimentaram os papéis considerados masculinos ou femininos durante os momentos de brincadeira”, descreve a pesquisadora no artigo “Relações de gênero nas brincadeiras de meninas e meninos na educação infantil”.

O estudo levou Finco à hipótese de que crianças não possuem inicialmente práticas sexistas ou as reproduzem totalmente da forma como são construídas pela cultura no mundo adulto, mas vão assimilando posição e hierarquia entre os sexos ao longo da permanência na escola.

“As instituições, a partir das concepções naturalizadas e ensinadas pelos adultos, é que “agrupam” as crianças”, defende Daniela

Nesse sentido, para a pedagoga, o profissional de educação infantil tem um papel fundamental para garantir que as relações possam acontecer de forma livre, sem cobranças relacionadas a um papel pré-determinado que meninas ou meninos devem cumprir.

Relações horizontais

O pesquisador, artista plástico e educador Gandhy Piorski, no livro “Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o brincar”, descreve a casinha como um brinquedo que apresenta às crianças questões de semelhanças e diferenças, proporcionando o questionamento de hierarquias.

“Mesmo numa brincadeira de casinha em que pai e mãe têm postos definidos, ocorre uma contínua ruptura dos papéis”, diz Gandhy

Isso porque, de acordo com ele, a brincadeira costuma se estabelecer entre pares – irmãos, amigos ou vizinhos de idades semelhantes – o que possibilita o estabelecimento de relações mais coletivas, participativas e horizontais.

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Território do Brincar

O importante mesmo é que qualquer brincadeira nasça da própria criança, tendo ela a responsabilidade de organizá-la.

“Assim, não há dominados nem dominadores na brincadeira. Quando nascem, tais instituições precisam estar num pacto com todos que brincam. Caso contrário, destitui-se o pai e a mãe é banida. Prevalece a autonomia de cada um nas diferenças. Um campo aberto da diversidade”, relata Piorski.

O papel do adulto, portanto, seja na escola ou em casa, na opinião da assessora pedagógica da área de educação e Cultura da Infância do Instituto Alana, Raquel Franzim, é apenas garantir o espaço para que a imaginação da criança possa se manifestar, para que a criativa seja nutrida. “O adulto pode ampliar o leque de escolha de materiais, por exemplo, deixando que objetos do cotidiano, como panelas, pratos, até mesmo alimentos de verdade, façam parte da brincadeira”, sugere.

Criar de dentro pra fora “O ser humano é humano na medida em que ele cria de dentro para fora: cria pensamentos, sentimentos, ações. E o início dessas criações é o brincar. Impedir ou reduzir o brincar livre e espontâneo significa reduzir o potencial de cada ser de se tornar cada vez mais humano. Além disso, o brincar mistura idades, sexos, povos, culturas — assim, ele se torna contemporâneo. Por isso, o brincar criativo faz parte dos direitos humanos universais.

*Ute Cramer, cofundadora da Escola Oficina-Social Aliança pela Infância no Brasil, no livro Território do Brincar: Diálogo com as escolas.

O importante mesmo é que qualquer brincadeira nasça da própria criança, tendo ela a responsabilidade de organizá-la. Uma outra atitude positiva por parte dos adultos, segundo Franzim, seria convidar crianças a visitar ambientes mais amplos e livres, como os parques ou espaços que possibilitem um contato com a natureza. O convite é bem vindo, mas a palavra final deve ser da criança.

“O brincar é a expressão da capacidade de ser por inteiro das crianças”

“O brincar é estruturante do mundo interior da criança, no entanto, esse mesmo brincar também forma, cria, e reinventa a vida”, conclui a assessora pedagógica da área de educação e Cultura da Infância do Instituto Alana, Raquel Franzim.

 

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