Um coelho de batom e saia, uma coelha de gravata? Afinal, de onde vem a ideia de que algumas coisas são "de menino" ou de "de menina"?
Um coelho de saia e batom. Uma coelha de gravata. Cheio de imagens simbólicas, o livro "Pode Pegar", da ilustradora e escritora Janaina Tokitaka, reflete sobre a construção social do preconceito de gênero.
É grande a responsabilidade de qualquer criação direcionada à criança – seja uma peça publicitária, uma roupa, um brinquedo. Com a literatura infantil, não seria diferente. Os livros ajudam a construir a identidade da criança, suas primeiras referências de herói e heroína e ainda simbolizam a primeira oferta de fantasia que os pequenos recebem. Em outras palavras, os livros têm um potencial formativo que não pode ser ignorado.
Diante disso, o que a escolha de uma história em detrimento de outra significa para o desenvolvimento da criança? Quando só oferecemos contos em que o personagem principal é menino e as meninas cumprem um papel secundário e fatalmente associado a fragilidade e dependência, que referenciais de mundo estamos ajudando a reforçar?
A editora Boitempo, por meio de seu selo infantil Boitatá, acaba de lançar o primeiro título nacional da casa – os anteriores são os espanhóis “Livros para o Amanhã”, sobre política, e a dupla “Monstro Rosa” e “Pássaro Amarelo”, de Olga de Dios -, é o livro “Pode Pegar”, da escritora e ilustradora paulistana Janaina Tokitaka. A história de dois coelhos irmãos que emprestam roupas e acessórios um para outro e deixam de lado as reduções de gênero.
“Um coelhinho de saia, batom e sapatinho de salto. Outro coelhinho de botas, calça e gravata. Assim fica fácil saber quem é menina e quem é menino! Mas e quando a menina quer usar botas pra atravessar o riacho? E quando o menino precisa do salto pra ficar mais alto? Batom serve pra desenhar? E esse chapéu, é de quem? Trocar de roupa é divertido! E agora, como faz pra saber quem é menina e quem é menino? Bom… Mas isso importa mesmo? – Sinopse do livro “Pode Pegar” (Boitatá, 2017)
Com um minimalismo de palavras e imagens, “Pode Pegar” é singelo e bem-humorado, e faz uma abordagem sutil, discreta e ao mesmo tempo muito assertiva sobre os estereótipos de gênero e como eles são percebidos pelas crianças. Com um detalhe: ao invés de colocar como protagonistas personagens que combatem os padrões sociais, Janaina escolhe retratar a questão de um ponto de vista anterior, o da criança, que muitas vezes ainda não introjetou os preconceitos dos adultos.
Na história, toda vez que um dos coelhinhos é convidado a exercer algum papel que poderia ser entendido como coisa de menino” ou coisa de menina”, ele é acolhido pelo outro coelho. Um jeito divertido de demonstrar como as crianças sabem lidar com a diversidade de uma forma mais aberta e intuitiva.
“Pode Pegar” é um livro que diz “está tudo bem, pode ser como você quiser”. É propositadamente uma mensagem acolhedora e libertadora, porque eu acho que a gente vive em um mundo hostil, repressor e chato demais”
Confira o bate-papo que tivemos com a autora sobre o assunto:
Lunetas – Como meninos e meninas podem se sentir representados em “Pode pegar!”?
Janaina Tokitaka – Espero que as crianças ( e os adultos também!) possam se sentir representados como indivíduos livres e respeitados por suas escolhas. “Pode Pegar” é um livro que diz “está tudo bem, pode ser como você quiser”. É uma mensagem deliberadamente acolhedora e libertadora, porque eu acho que a gente vive em um mundo hostil, repressor e chato demais.
Lunetas – Arrisco dizer que este é seu livro mais político, você concorda? Qual a importância de naturalizar os papéis de gênero e identidade sexual para as crianças?
Janaina Tokitaka – Concordo, e a igualdade de gênero é uma bandeira que levanto sem o menor medo, dúvida ou constrangimento. Não é à toa que quando os coelhos do meu livro estão vestidos de acordo com o esperado para cada gênero, as roupas parecem antigas, datadas.
“Eu realmente acho muito importante respeitar as escolhas das crianças sobre quem e como elas desejam ser”
“Protagonistas de livros infantis não devem ser exemplares no pior sentido dessa palavra – inócuos, bonzinhos, obedientes, inocentes. Ao contrário: não conheço ( ainda bem!) nenhuma criança assim, e personagens desse tipo só fazem com que crianças saudáveis, agitadas e questionadoras se sintam desinteressadas ou, pior ainda, inadequadas. É, aliás, sintomático e muito triste que justamente as personagens femininas dos livros infantis obedeçam a estes estereótipo”, afirma a autora em um artigo publicado no blog “Agora é que são elas”, da Folha.
“Parece óbvio dizer isso, mas se tornar um indivíduo é algo difícil, e a infância é uma fase que permite que essa construção de identidade seja feita com leveza e prazer”
Lunetas – Personagens femininas na literatura infantil há muitas. A questão é como elas são retratadas. Por que os grandes heróis dos livros para crianças ainda são meninos?
Janaina Tokitaka – Infelizmente, vivemos em um mundo que ainda associa coragem, autonomia, ousadia e outras características de protagonismo com o gênero masculino. Já ouvi editores alegando que livros com protagonistas femininas alienam leitores meninos, ou seja, que leitores do gênero masculino não se interessam por livros que contam histórias “de menina”. Bom, eu realmente acho isso uma grande bobagem.
“Quem produz livros, tanto o autor quanto a editora, tem que se responsabilizar e produzir conteúdo com personagens interessantes que possam representar outros heróis que não sejam meninos europeus ou americanos, ricos e brancos”
O lançamento do livro “Pode Pegar” em São Paulo será neste domingo, 19 de março, das 15h às 17h, durante o festival de publicações independentes “Feira Plana”. Haverá sessão de autógrafos com a autora, e de quebra, ela vai desenhar coelhinhos personalizados para quem passar por lá. Clique aqui para confirmar presença e saber mais.
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