Glauber Piva, especialista no tema autonomia infantil nas cidades, alerta: "precisamos devolver a cidade às crianças"
"Como uma criança que só vê a cidade pela janela do carro vai poder interferir e atuar na vida pública?", questiona o cientista social Glauber Piva, especialista no assunto autonomia infantil nas cidades.
– Tio, o que você está fazendo?
– Estudando.
– Estudando o quê? Matemática, ciências… essas coisas?
– Não. Estou estudando sobre a relação entre as cidades e as crianças.
– Cidade, tio? Mas cidade não existe. Cidade é um lugar muito perigoso, só tem violência e roubo.
O diálogo acima aconteceu entre o pesquisador Glauber Piva e o pequeno João Pedro, de 10 anos, amigo de seu filho Theo, 9 (Piva também é pai de Nina, 5). Hoje, o cientista social e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana percebe a violência da afirmação “a cidade não existe!”. Para ele, a visão de cidade que impera na sociedade faz com que ela se esgote em seus índices de violência urbana, como se não fosse nada além de um espaço a ser evitado e temido.
Para discutir o impacto dessa realidade no desenvolvimento das crianças, Piva conversou com o Lunetas sobre infâncias na cidade contemporânea. Mas, afinal, o que isso quer dizer?
Antes de mais nada, é preciso refletir sobre o próprio conceito de infância, e na importância de conjugar essa palavra sempre no plural, uma vez que são várias as infâncias.
“Pensar na autonomia infantil nesse contexto é pensar em várias autonomias, vários recortes de pluralidade”, defende.
O próximo passo é refletir sobre o conceito de autonomia infantil. Para o especialista, o termo muitas vezes é interpretado como algo que colocaria as crianças em risco.
“Ao mesmo tempo em que existe uma fetichização do que seja a autonomia, ela é bem diferente de deixar a criança completamente solta na cidade”, afirma. De acordo com Piva, o modelo de grandes metrópoles constrange as infâncias, pois as cidades não incluem a criança no planejamento urbano nem se coloca como um lugar convidativo para se estar. Basta pensar em quantas crianças caminhando sozinhas você costuma ver na rua, sobretudo se é um bairro central de cidades de grande ou médio porte. Entre os fatores que ajudam a explicar por que isso acontece está a falta de políticas públicas específicas.
“A criança, embora esteja no orçamento público, não aparece como tema nas campanhas políticas, nem na aplicação prática dessas políticas”, pontua o pesquisador, que estuda as relações entre as cidades contemporâneas e as formas de expressão das crianças.
Para Glauber, a noção de contemporaneidade está diretamente associada ao desejo de “privatização da vida”. Ou seja, ao fato de que as pessoas buscam cada vez habitar espaços privados e adotam um um estilo de vida pautado pela valorização do que é privado em detrimento do público: morar em condomínios, estudar em escolas particulares, frequentar locais como shoppings, lojas e espaços culturais atrelados a marcas, por exemplo.
“Como as crianças que crescem em condomínios percebem a cidade e a esfera pública?”, questiona o pesquisador. “Muitas veem as ruas e avenidas como meros conectores entre espaços privados, como a casa e a escola, e não como lugar para se estar”.
“Para muitas crianças, o espaço urbano não é uma experiência tátil, porque elas não sentem a cidade com a sola dos pés”
O problema disso, segundo o cientista político, é que a noção de cidadania desse indivíduo vai se formando prejudicada pela falta de pertencimento e conexão com os espaços de convívio comum.
“Como uma criança que só vê a cidade pela janela do carro vai poder interferir e atuar na vida pública?” Essa é uma das questões que norteia o trabalho de Glauber e daqueles que se interessam por analisar como a vida na cidade afeta o desenvolvimento infantil.
Para explicá-la, Glauber propõe um exercício de imaginação. “Visualize a lembrança mais feliz da sua infância. Como ela é?”. A partir desses elementos – onde se situa essa lembrança, com quem estamos, o que estamos fazendo – temos pistas sobre quais são os valores que uma criança dá para suas experiências de vida e como ela vê o espaço em que vive.
“As memórias mais felizes das pessoas costumam estar associadas a uma vivência autônoma, de brincar ao ar livre, longe da supervisão dos adultos”, explica.
“É na completa autonomia que somos mais potentes e por isso mais felizes. Quanto mais a criança é controlada, menos autônoma ela é”
Portanto, uma vivência plena da cidade, entendendo suas qualidades e suas falhas, permite à criança construir repertório de diversidade e pensamento crítico em relação ao contexto social, considerando que os pequenos têm um olhar atento e sensível a tudo que os cerca. Por que há pessoas morando na rua? Por que há bairros com mais parques e praças que outros? Quem são os privilegiados da cidade? Quais são os pontos fortes e fracos da cidade? Uma vez que essas interrogações podem povoar a percepção infantil e somam positivamente em sua formação como cidadã e sujeito de direitos, por que isso não é valorizado?
Piva lembra como é recente a noção de criança como um indivíduo que interfere na cultura. “Criança sempre houve, mas infância nem sempre. A concepção de infância ganha força a partir dos séculos XVII e XVIII, a partir da estruturação da lógica de produção e de fortalecimento das cidades como centro da vida em sociedade”. O pesquisador recupera também a etimologia da palavra “infância”, que quer dizer aquele que não fala ou cuja voz não é reconhecida. Ou seja, a criança não era alguém ativo no jogo democrático.
“Se a criança não tem sua fala reconhecida, não é alguém que participa daquilo que funda a política, que é a retórica. Assim, automaticamente, as crianças estão impedidas de participar do debate sobre as coisas públicas em nossa sociedade”.
Apesar de estarmos coletivamente longe do cenário ideal, hoje os direitos da criança são percebidos e garantidos por lei, por documentos como o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e a própria Constituição Federal, devendo ser considerada prioridade absoluta.
Uma questão crucial na discussão sobre autonomia infantil na cidade é pensar que, se enxergarmos a infância no plural, isso nos impõe pensar experiências particulares da cidade, de acordo com suas possibilidades de poder.
Piva exemplifica indicando o abismo que divide a criança acostumada a circular pelo espaço urbano de carro, com janelas fechadas, e a criança em situação de rua, ou aquela que é submetida ao trabalho infantil nos faróis, por exemplo, sendo importante pensar como a criança vê seus pares na cidade.
“A criança que tateia a cidade pela janela de um carro vê a diversidade lá fora – tudo o que é diferente dela – como algo perigoso, que deve ser temido”
Segundo ele, há um pacto social em torno de algumas infâncias invisibilizadas em detrimento de outras. Basta observar a relação das crianças da periferia, por exemplo, com a cidade. Em muitos desses espaços à margem dos centros urbanos, de menor poder econômico e portanto de menos oportunidades de acesso, as crianças circulam sozinhas pela rua apesar da falência do planejamento urbano.
“Há uma negação do direito à cidade como possibilidade, porque a própria possibilidade é vista como algo muito perigoso”
Glauber define o estilo de vida que a condominizalização da vida impõe às pessoas como “monocultura”. Ou seja, uma cultura sem diversidade, em que se convive com quem pensa igual, sem confronto com a complexidade do mundo. Esse dado contribui para a chamada “indústria do medo”, em que as pessoas cada vez buscam se blindar em espaços seguros distantes da realidade. “Quem mora em condomínios é sempre mais ou menos parecido, de classe social e instrução intelectual praticamente idêntica”, pontua o cientista social.
“Negar à criança a experiência da vida pública é negar a ela a diversidade da vida”
Como equilibrar a necessidade de as crianças viverem livres, com espaço para se movimentar e descobrir, com a violência das ruas? Essa parece uma equação impossível de resolver quando falamos sobre infâncias na cidade, considerando também que muitas vezes o medo dos adultos de deixar as crianças em espaços públicos é perfeitamente justificável, dados os índices de violência urbana. Porém, Glauber destaca a importância de entender a criança como uma responsabilidade compartilhada entre Estado, famílias e sociedade civil, além de serem “termômetros” que indicam se uma cidade é saudável ou não.
“As crianças nas cidades são como os canários nas minas de carvão. Se algo vai mal para elas é sinal de que o entorno urbano tem problemas. Se não cuidarmos disso coletivamente, propondo o envolvimento dos movimentos sociais, o comprometimento das escolas públicas e privadas para o “desemparedamento” das infâncias, das famílias que precisam desencastelar suas crianças e aceitá-las em sua plenitude agora, não como vir-a-ser, e, principalmente, dos governos locais, dificilmente vamos avançar”, defende. “Não é apenas uma questão de cada família, mas uma situação mais ampla que tem a ver com os acordos tácitos que nossa sociedade faz em torno de suas infâncias”.
“Precisamos de uma série de pactos para devolver as cidades às crianças”
Tornar uma cidade mais acolhedora, segura e atrativa para as crianças é torná-la melhor para todos e todas. No Brasil e no mundo, há iniciativas que levam as infâncias em consideração desde o planejamento urbano. A revisão do Plano Diretor das cidades, por exemplo, é um dos caminhos possíveis, capaz de criar rotas seguras ligando equipamentos públicos, como museus, centros culturais, praças e parques.
Como exemplo de projetos bem-sucedidos que contemplam a autonomia das crianças na cidade, Glauber cita o Movimento Boa Praça, em São Paulo, e movimentos sociais como o Movimento Sem-Terra, que pautou infâncias há alguns anos, e o Vila Cultural, em Brasília, responsável por um festival de brincadeiras na asa sul do Distrito Federal.
“A Prefeitura de Jundiaí está dando um passo importante ao se aproximar da rede de cidade das crianças. A experiência de Rosário, na Argentina, é muito exitosa. Lá, programas de mobilidade sustentável em ambiente urbano e metropolitano é regulada por lei. Há muitas iniciativas cidadãs, desde grupos de famílias que assumem a responsabilidade pelo cuidado de praças de bairros, oferecendo às crianças a oportunidade de frequentar o sistema de espaços livres da cidade.
“Infelizmente, a maioria é iniciativas isoladas. Se houver mais articulação e escala, o impacto certamente será maior”
No vídeo a seguir, “Caminho escolar – Passos para a autonomia infantil”, as crianças comentam como gostariam que não houvesse tantos carros na cidade e dizem preferir ir a pé para a escola.
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A lei da prioridade absoluta é uma regra constitucional prevista no artigo 227, da CF, e também no artigo 4º da Lei 8.069/90, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), determinando que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”